Uma Constituição para a Igreja Católica.

Foto: PxHere

01 Setembro 2022

 

As consultas sinodais prometem reformas significativas. Nesse contexto, o Instituto Wijngaards para Pesquisa Católica construiu uma proposta de Constituição para a Igreja Católica. Se aceita e implementada, revisaria completamente a maneira pela qual a Igreja opera.

 

O artigo é de John Wijngaards, teólogo e escritor, professor emérito do Instituto Missionário de Londres e fundador do Instituto Wijngaards para a Pesquisa Católica, publicado por La Croix, 30-08-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

A maioria dos Estados modernos em nossos dias são governados por uma Constituição que sustenta suas leis seculares. Uma Constituição estabelece os direitos e obrigações fundamentais dos cidadãos e funcionários. Uma Constituição Católica faria o mesmo para o direito canônico.

 

A questão é: os valores espirituais consagrados no Evangelho já não formam uma espécie de ‘constituição’ para a comunidade de crentes que Jesus ‘fundou’?

 

A resposta é: Não! A Igreja é uma estrutura completamente humana, assim como Jesus, imbuído da presença divina de seu Pai, permaneceu totalmente humano.

 

Para sobreviver, Jesus precisava comer e beber. Ele se cansou e precisava dormir. Ele se abrigaria no sol do meio-dia. Ele falava aramaico, mas precisava de um intérprete ao responder a um helenista de língua grega.

 

Da mesma forma, a estrutura da Igreja é inteiramente humana. Pode sofrer de gestão humana defeituosa. Ela se beneficiará da incorporação dos melhores insights humanos.

 

De fato, nossa Igreja atual sofre muito de doenças institucionais incorridas ao longo dos séculos: dominação masculina e uniformidade excessiva herdadas do direito romano e burocracia de cima para baixo dividida em classes copiada dos reinos feudais para citar apenas alguns.

 

 

A tragédia é que, por causa disso, a comunidade católica de bilhões de pessoas, prejudicada pelas estruturas defeituosas da Igreja, não pode cumprir efetivamente a missão vivificante de Cristo para as pessoas marginalizadas e atingidas pela pobreza do nosso mundo.

 

A ideia de criar uma nova Constituição para a Igreja não é nova. Inspirado pelo Vaticano II, o Papa Paulo VI iniciou em 1965 o trabalho em uma Lex Ecclesiae Fundamentalis (“Lei Fundamental da Igreja”), uma constituição que teria sustentado todo o direito canônico na Igreja Católica.

 

Mas esse esforço cessou em 1981 quando, previsivelmente, talvez, o tradicionalista João Paulo II decidiu engavetar a constituição já concluída.

 

O desafio foi retomado pela Associação dos Canonistas na Igreja, que publicou uma Proposta de Constituição para a Igreja Católica em 1998.

 

A nova Constituição Proposta do Instituto Wijngaards foi baseada nesses dois documentos, mas também em esforços semelhantes na Comunhão Anglicana e na Federação Luterana Mundial.

 

É importante ressaltar que também incorporou elementos de fontes seculares, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas em 1948.

 

Em 2015, o Instituto Wijngaards já havia emitido uma declaração acadêmica pedindo reformas na forma como a autoridade é exercida na Igreja. A declaração foi assinada por 216 professores de mais de uma centena de universidades católicas.

 

A nova Constituição proposta é uma elaboração drástica dela. Seu texto básico foi elaborado por um Grupo de Trabalho interdisciplinar e internacional de 24 acadêmicos de 13 países.

 

O coordenador de pesquisa do Instituto, Dr. Luca Badini Confalonieri, autor de “Democracia na Igreja Cristã” (2012), forneceu uma liderança competente. Além disso, vários outros especialistas foram contatados ad hoc, quando seus conselhos eram necessários sobre questões complexas específicas.

 

Princípios da Constituição proposta

 

Após uma longa introdução teológica, a Constituição compreende 105 artigos distribuídos em 37 páginas. É impossível descrevê-los em detalhes neste breve relatório. Assim, vou me concentrar nos princípios que fundamentam o documento.

 

Igualdade

Todos os cristãos batizados são iguais em dignidade e perante o Direito Canônico, e gozam dos mesmos direitos fundamentais na Igreja, sem distinção de raça, gênero, sexo, orientação sexual, estado civil e condição econômica ou social.

Isso implica, por exemplo, que mulheres como os homens podem se oferecer para a ordenação se possuírem as qualificações corretas para o ministério. Também abole a noção medieval de que o estado clerical, semelhante à nobreza secular, goza de privilégios inerentes não concedidos a “leigos” de baixo nível.

 

Corresponsabilidade

Em virtude de seu batismo comum, cada cristão compartilha a responsabilidade por toda a comunidade. Com esta responsabilidade vem o direito de participar na tomada de decisões.

Todos os católicos adultos, afirma a Constituição, têm o direito fundamental de participar e votar em todas as decisões sobre questões de doutrina, valor, ação e qualquer outra questão relativa ao bem comum de sua comunidade.

Aqui as doutrinas não se referem aos princípios centrais da fé – a Constituição reconhece o ‘depósito de fé’ mantido pela Bíblia e pela Tradição como sua fonte fundamental (Art. 2).

Em vez disso, pense em ‘doutrinas inferidas’ como a proibição de receber juros sobre empréstimos de capital (Papa Bento XIV, 1745), a afirmação de que a escravidão está de acordo com a lei natural e divina (mais recente: Papa Pio IX, 1866) e a recente ensinamentos sobre o uso de anticoncepcionais, a exclusão das mulheres das ordens sagradas e assim por diante.

 

Representação

“O que toca a todos deve ser discutido e aprovado por todos”. Todos os católicos devem estar democraticamente representados nos órgãos de governo e de decisão.

As decisões são preparadas por meio de diálogo aberto e respeitoso, a fim de alcançar ampla unanimidade. Isso se aplicaria especialmente aos conselhos pastorais em todos os níveis.

O papel das pessoas com conhecimentos especializados é plenamente reconhecido.

Se uma decisão exigir conhecimento especializado – por exemplo, em estudos bíblicos, teologia, direito canônico, medicina, psicologia, economia, sociologia, etc. – os representantes e líderes da Igreja, individualmente ou em grupos, têm o dever legal de buscar e levar em consideração conta consultoria especializada e independente” (Art. 68).

Os membros de órgãos consultivos de especialistas independentes devem ser selecionados por meio de um processo aberto e transparente de revisão por pares, cujos critérios de seleção devem incluir experiência relevante, ausência de conflito de interesses, independência dos representantes e líderes da Igreja e boa dentro da comunidade científica relevante” (Art. 70).

Esses artigos rejeitam a prática recente da Igreja de silenciar especialistas que discordam da visão oficial e de escolher apenas simpatizantes nas comissões acadêmicas do Vaticano.

 

Separação de poderes

O poder de governança (ele mesmo dividido entre legislativo, executivo e judiciário), o poder de ordem e o poder de ensinar são separados:

(i) Uma pessoa ou órgão que detenha um desses poderes, com exceção do poder de ordem, não poderá deter concomitantemente nenhum dos outros.

(ii) Os ministros que detenham quaisquer outros poderes além do poder de ordem não devem exercer ordinariamente o poder de ordem salvo e exceto quando estritamente necessário para o cumprimento de seus deveres oficiais.

(iii) Os ministros titulares do poder de ordem não exercerão ordinariamente nenhum dos outros poderes, salvo e exceto quando estritamente necessário para o cumprimento de suas responsabilidades sacramentais” (Art. 39).

Isso tem consequências de longo alcance para a maneira como os escritórios diocesanos são administrados e os departamentos do Vaticano.

 

Participação

Aquele que deve presidir a todos deve ser eleito por todos.

A autoridade legítima na Igreja deve ser baseada no consentimento do povo. A corresponsabilidade implica que a comunidade da Igreja tem o direito de eleger seus líderes.

O clero diocesano, as ordens religiosas e os conselhos paroquiais devem desempenhar o seu papel na escolha do seu bispo.

 

Subsidiariedade

Cada nível decisório na Igreja deve ter o direito e a responsabilidade inalienáveis de determinar quais decisões e ações são de sua competência e o que, em vez disso, deve ser decidido por delegação ou realizado melhor em cooperação com o nível superior.

Isso inverte o atual exercício de autoridade de cima para baixo pelo qual o Vaticano decide as responsabilidades confiadas às dioceses ou conferências nacionais dos bispos.

 

Accountability

Todos os líderes devem apresentar relatórios regulares à comunidade da Igreja sobre seu trabalho, incluindo a apresentação de demonstrações financeiras auditadas de forma independente. Os líderes em todos os níveis da Igreja são eleitos para um mandato limitado.

No caso de graves violações dos princípios e leis cristãs, um tribunal eclesiástico apropriado pode ordenar a remoção de um ministro do cargo.

 

Apoio acadêmico para a proposta de Constituição

 

A Constituição foi submetida à avaliação de comunidades acadêmicas. Uma resposta positiva tem sido esmagadora.

 

Além dos 23 especialistas do Grupo de Trabalho, a Constituição foi, até hoje, endossada por outros 57 estudiosos de 17 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Brasil, Canadá, Colômbia, Espanha, EUA, Filipinas, Índia, Irlanda, Itália, México, Países Baixos, Polônia, Reino Unido e Suíça.

 

Destaco abaixo alguns dos endossos:

 

“Este projeto de Constituição é uma magnífica visão profética de uma Igreja Católica como deveria ser – e como poderia se tornar. Na verdade, esta é uma Igreja Católica diferente, e é disso que precisamos urgentemente. Só assim podemos deixar para trás o Igreja de abuso infantil, homofobia, clericalismo e o exercício repressivo do poder”, afirmou o Prof. Thomas Hieke, de Mainz, Alemanha.

 

“Estou endossando esta proposta porque a vejo como um passo concreto para a Igreja se tornar um ‘discipulado de iguais’ com base na comunhão inclusiva que vimos Jesus realizar durante seu ministério”, disse a Profa. Rachel Joyce Marie Sanchez, de Manila, Filipinas.

 

“O direito canônico atual está bloqueando uma Igreja sinodal que reconheça a dignidade de todos os batizados. Deve-se evitar que a fé e os direitos humanos continuem a entrar em conflito na Igreja Católica. A Igreja precisa urgentemente de uma constituição eclesiástica renovada que respeite os princípios de fé e direitos humanos de forma intransigente”, defendeu o Prof. Toni Bernet-Strahm, de Lucerna, Suíça.

 

“Parabéns! Parabéns! Esta é uma iniciativa fantástica. Muito obrigado ao Instituto Wijngaards”, apoiou o Prof. José María Vigil, espanhol, mas hoje residente no Panamá.

 

“Nestes dias, quando a Igreja Católica está empenhada em redescobrir o antigo carisma da sinodalidade, a Proposta de Constituição para a Igreja Católica destaca as realidades eclesiais que estão no centro da sinodalidade, todos são iguais e têm a liberdade e a responsabilidade de perseguir e aprimorar a missão de Cristo e da Igreja. Essa missão é serviço de todas as mulheres e homens e, em nosso mundo economicamente desequilibrado, como Jesus tantas vezes nos lembrou, particularmente os pobres. Ninguém, não importa que autoridade ele ou ela tenha na Igreja, pode impedir qualquer batizado em Cristo de propagar ativamente essa missão”, enfatizou o Prof. Michael Lawler, de Creighton, EUA.

 

“A constituição proposta visa a convivência (ubuntu), em colaboração, contrariando qualquer exclusão, subordinação ou destruição. Toda a lei se cumpre em um único decreto: ‘Amai ao próximo como a si mesmo’, Paulo, na carta aos Gálatas 5,14”, destacou o Prof. Pedro Paulo A. Funari, de Campinas, Brasil.

 

“Este documento é necessário para a reforma urgente da Igreja Católica, é muito completo, muito bem fundamentado e responde ao que os grupos reformistas católicos de todo o mundo pedem há muitos anos. Espero que sirva para gerar um debate profundo no Sínodo da sinodalidade para que a Igreja Católica possa se tornar credível no século XXI”, afirmou a Profa. Raquel Mallavibarrena, de Madri, Espanha.

 

Como o professor Felix Wilfred, do Centro Asiático de Estudos Interculturais, já declarou em abril deste ano: “Precisamos de uma lei básica e fundamental na Igreja (lex ecclesiae fundamentalis) como as nações que têm uma Constituição. Foi o Papa Paulo VI que, para o pela primeira vez propôs que a Igreja tivesse uma lei tão fundamental. Ela foi colocada em câmara fria. Precisamos urgentemente trazê-la de volta.”

 

Divulgando a proposta de Constituição

 

A resposta entusiástica das irmãs religiosas e de todos os níveis de liderança católica que endossaram nosso trabalho, alguns publicamente, outros em particular, é um sinal positivo para os católicos em todos os lugares.

 

A calorosa recepção recebida no escritório sinodal em Roma é outra forte indicação de que nosso trabalho está sendo lido no coração do corpo do Vaticano que examina o governo da Igreja.

 

Sentimos uma onda de apoio à mudança no nível fundamental de como a Igreja Católica é administrada e oferecemos este projeto de constituição como uma semente da qual uma mudança real pode crescer e ajudar a reformar nossa Igreja global de maneiras que farão uma diferença material para as vidas de milhões de católicos.

 

Ao mesmo tempo, percebemos que a Constituição proposta causará alarme entre os católicos tradicionalistas. Também precisará ser cuidadosamente explicado para a maioria dos católicos que frequentam a Igreja que estão abertos a mudanças, mas que podem pensar que essas propostas vão longe demais.

 

Como primeiro passo, apresentamos o projeto de Constituição a todas as conferências episcopais dos países de origem de nossos estudiosos, tanto os acadêmicos que trabalharam no texto quanto os que o assinaram.

 

Além disso, Miriam Duignan, diretora de comunicação do Instituto Wijngaards, entregou pessoalmente o documento à irmã Nathalie Becquart no escritório sinodal no Vaticano.

 

Publicaremos o texto integral da proposta de Constituição com outros documentos explicativos neste link, no dia 13 de setembro, festa do grande teólogo São João Crisóstomo.

 

Como Jesus nos exorta: “Proclamem sobre os telhados!”

 

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