11 Agosto 2023
Em seu blog Come Se Non, 10-08-2023, o teólogo italiano Andrea Grillo escreve: “Os eventos ocorridos em Lisboa entre os dias 1º e 6 de agosto suscitaram, como era inevitável, reações diversas. Louvores excessivos e condenações inapeláveis atravessaram a comunicação pública e também eclesial.
“Aqui, gostaríamos de tentar refletir sobre um aspecto delimitado da experiência daqueles dias, ou seja, sobre o perfil litúrgico-sacramental da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Que experiência do sacramento e da liturgia mediou o evento? Em quais categorias podemos enquadrá-lo? Trata-se de uma iniciação, de uma cura ou ainda de uma vocação?
Momentos relevantes de la misa con ángelus en el Parque Tejo, que presidió el #PapaFrancisco con los jóvenes de la #JMJ2023Lisboa pic.twitter.com/gYxfxQkYLq
— Vatican News (@vaticannews_es) August 6, 2023
“Tentamos fazer isso a duas vozes, refletindo no nível da mesma teologia, mas partindo de fora e de dentro. Uma voz (Andrea Grillo) fará considerações olhando o fenômeno de fora, enquanto a outra (Marco Gallo) refletirá tendo feito experiência direta do próprio evento.
“Esse modo de ler os fatos poderá favorecer um reconhecimento recíproco e, com esperança, uma boa forma de reflexão sobre a JMJ de Lisboa, não apologética e não triunfalista, embora limitada apenas ao seu aspecto sacramental. Agradeço a Marco Gallo pelo intercâmbio sério, franco e sereno.”
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Andrea Grillo – A primeira observação, bastante geral, centra-se na JMJ como um possível “oitavo sacramento”. A estrutura do evento, suas formas de convocação, de reunião, de organização e de participação tendem a assumir, como tais, um valor “quase-sacramental”. O fato de ter ido à JMJ, a posteriori, parece se tornar quase uma espécie de “caráter” impresso no jovem e na jovem, que depois se torna uma certa habilitação à vida eclesial, ao exercício do culto, à custódia da fé.
Sem excluir o aspecto da “quantidade sensível”, que continua sendo uma espécie de baixo-contínuo dos comentários (a favor ou contra), a “qualidade espiritual” da experiência parece valer como uma espécie de “recuperação” ou até de “substituição” da iniciação cristã. No entanto, precisamente a sequência dos três sacramentos fundamentais aparece, ao mesmo tempo, em segundo plano e como o verdadeiro ponto de desafio. Fala-se e experimenta-se muito mais penitência (mas aparentemente reduzida à confissão) e adoração monumental do que batismo e eucaristia: aqui, creio que há um primeiro ponto importante a se refletir.
Rise up!! ¡¡Levantaos!!…No tengáis miedo.#JMJ2023 #JMJ2023Lisboa #JMJLisboa #compArte #Ama #evangelio #GodIsGood #mercachifles #nuevaevangelizaccion #Cambiaelmundo #NuevaIglesia #ElSoploIlustrado @ReligionDigit pic.twitter.com/69pVA7s4dy
— Agustín de la Torre (@agustindlatorre) August 6, 2023
Marco Gallo – Sendo um sobrevivente (fora da idade), eu diria que não recebi o oitavo sacramento, mas vivi uma extraordinária reformulação pós-moderna da dinâmica clássica da peregrinação. Acredito que o fato de ter participado não transforma, mas pode transformar: de certo modo, portanto, acho que se deve ler na chave da cura/exploração. Diria que se trata de uma peregrinação antiga, mais do que uma iniciação moderna, porque não a escolhemos para nos tornarmos mais cristãos ou mais católicos: não há menção à retomada do batismo nem à dimensão crismal, e a prática eucarística, a meu ver, é a mais cansativa.
É uma peregrinação sobretudo porque é uma ação única, sui generis (a que ela se assemelha?), tão cansativa que certamente não pode ser escolhida por motivações banais. Por que aqueles jovens estavam lá? Falando dos europeus presentes, aqueles jovens (de famílias abastadas ou não) certamente não aproveitaram essa oportunidade para conhecer o mundo: eles já o percorreram muito mais do que nós, desde pequenos. E não buscavam uma desculpa para estar com os amigos. Estavam lá porque é uma experiência sem igual, que não se assemelha a nenhuma outra, a ser compartilhada e contada. Como toda peregrinação, há um antes e um depois. Nessa chave, parece-me que, mais do que uma oportunidade para viver liturgias, a JMJ é uma liturgia em si mesma: uma peregrinação inclusiva.
Andrea Grillo – A forma que o sacramento assume, no momento em que entra na experiência dos jovens, por um lado, e no olho da câmera, por outro (sem assumir como evidente que elas possam se identificar), parece assumir os movimentos mais clássicos possíveis: fazer penitência torna-se “confissão auricular”; a vida eucarística, “adoração ao Santíssimo”; o seguimento de Jesus, Via Sacra.
Aqui, os recursos da reforma litúrgica parecem dar lugar a um imaginário pelo menos formalmente “tridentino”, junto com as evidências da “religiosidade popular” e das dinâmicas que você, com razão, apontou sobre a peregrinação. Aqui, penso eu, o caráter internacional do evento apela, sem dúvida, a escolhas obrigatórias, mas que não parecem ser escolhas apenas corajosas. Um DJ de clergyman na frente de um mar de jovens ou uma miríade de “confessionários” não são apenas “sinais comuns”, mas também compreensões orientadas e talvez ideológicas da tradição: que a JMJ por um lado assume, mas também relança com um efeito avassalador e não facilmente controlável, tanto na vivência iniciática quanto na dinâmica de cura dos sujeitos envolvidos e daqueles que a acompanham à distância.
Pelo menos de fora, parecem confirmar e quase “blindar” uma confissão pontual sem penitência e uma eucaristia cerimonial e sem ação, ou seja, não os recursos, mas sim os problemas que tentamos superar há 60 anos.
Marco Gallo – Vividas com o corpo combalido do participante, com a formação do liturgista e com a ação do concelebrante, achei as missas atos quase extremos, no limite do suportável. É uma assembleia litúrgica aquela composta por um milhão e meio de pessoas? O ato da presidência resiste ao jogo de olhares entre os telões e o altar físico quase não mais visível?
Na prática, muitos jovens estavam deitados e distantes, participavam apenas da homilia, de alguns cantos e, certamente, da comunhão. Por isso, lida como uma dinâmica de peregrinação, acho que a devoção popular com alguns de seus gestos funcionou muito melhor do que a liturgia.
Na sexta-feira de manhã, confessei dezenas de jovens (que faziam uma espécie de confissão geral!). À tarde, surpreendi-me a ponto de me comover com o ritmo extraordinário da direção da Via Sacra, em que as mesmas dores do mundo juvenil contemporâneo ouvidas pela manhã eram postas em diálogo com a grande trama da paixão/ressurreição de Cristo. Ou o que teria desencadeado um silêncio igual ao que caiu de repente, depois de horas de música estridente, senão a projeção do ostensório na noite da vigília?
Duvidoso em relação ao gesto (já vivido em outras JMJs: de novo, voltados a que nos ajoelhamos, ao telão ou ao palco? Como se faz a adoração se não fomos iniciados?), mergulhei em um silêncio que nem mesmo a escuta ao papa havia gerado (todos com os radinhos para a tradução, alguns deitados, outros fazendo anotações). Ajoelhei-me, mas, para a minha grande surpresa, até mesmo os jovens menos envolvidos fizeram isso sozinhos (“Posso lhe perguntar por quê?” “Sabe que eu não sei? E fazia anos que eu não fazia isso...”), durante minutos, sem um suspiro. Pareciam todos atos que testemunham o fato de que a devoção popular tem uma carne e uma potência que as nossas liturgias são incapazes hospedar (en passant: nem toda piedade popular funciona lá. Um rosário foi dado a cada um, mas se tornou uma pulseira/colar, que eu nunca vi sendo usado durante os dias).
Andrea Grillo – É inevitável que muito tenha sido confiado às palavras: palavras do papa, textos da vigília, textos da Via Sacra. Mas o registro “não verbal”, que certamente funciona a fundo sobretudo com os jovens, foi pensado litúrgica ou sacramentalmente? Se, na memória comum, assim como na representação midiática, restam apenas “confessionários, adoração e Via Sacra”, o que aconteceu com o “estupor litúrgico” que deriva da celebração eucarística, da memória do batismo, da vocação crismal? Em que medida as ações silenciosas, mas diversamente eloquentes, foram objeto de reflexão e de elaboração, e não antes funcionalizadas diretamente à palavra e aos valores?
Aqui, talvez, o próprio conceito de “jornada da juventude” pague um alto preço à pretensão de “reduzir” o tempo eclesial a uma sequência de “temas”. Não se deve esquecer que originalmente a JMJ coincidia com o Domingo de Ramos. Talvez essa “origem devocional” ainda marque muito fortemente a identidade e a própria forma dessas JMJs, que resistem com compreensível obstinação a todo enquadramento no ano litúrgico. A peregrinação, como você notou, tem uma afinidade mais com o lugar do que com o tempo e quase restabelece uma espécie de “primado do espaço sobre o tempo”.
Todos, todos,TODOS. Se puede decir más fuerte, pero no más claro…#JMJ2023 #JMJ2023Lisboa #JMJLisboa #compArte #Ama #evangelio #GodIsGood #mercachifles #nuevaevangelizaccion #Cambiaelmundo #NuevaIglesia #ElSoploIlustrado @ReligionDigit pic.twitter.com/WxXN0oLWnw
— elJartista (@elJartista) August 4, 2023
Marco Gallo – Em certo sentido, eu concordo. Fez-se uma experiência mais sacramental do que litúrgica. Mas eu diria que o não verbal é mais poderoso do que os textos adotados. Eu continuaria a sua análise em dois registros, entre outros: o papel do papa e a experiência da Igreja.
Desde o início, o papa é uma estrela nas JMJs, muito mais do que um presidente e um bispo. Tanto Bento quanto Francisco tentaram interpretar o papel de uma forma bem diferente de João Paulo II. Mas é assim mesmo. “Esta es la juventud del papa.” Eu escutava e me perguntava: como esses jovens podem gritar tal slogan? Em que sentido eles são “dele”?
Certamente, o Papa Francisco tem uma postura do corpo (ferido), um tom de voz simpático e gentil, e uma linguagem semelhante à de um bom avô, que eu diria que é acolhido com profunda ternura. No lado oposto, eu colocaria o riquíssimo e raro monólogo do Pe. [Luigi] Ciotti, que ele gritou na festa dos italianos, completamente fora de frequência para os jovens (“Padre, por que você está gritando?”). Portanto, acredito que a experiência da confiança concedida ao papa deve ser sempre merecida in loco desde o princípio: eu falaria, portanto, de uma sacramentalidade do episcopado/papado ad personam.
Por fim, parece-me que os participantes fizeram uma experiência imersiva de catolicidade. A JMJ (que não tem uma dimensão ecumênica nem inter-religiosa) não permite caminhar rumo a uma Igreja sinodal, mas sim fraterna e universal. Eu diria que é uma experiência profética extrema (e apenas indicativa, não de projeto) de povos que se tocam e se abraçam (pobres japoneses!), se entendem e se estimam; de pessoas com deficiência cada vez mais à vontade, de linguagens que não são rejeitadas independentemente de qualquer coisa (incluindo o techno!). Acho que essa imersão excepcional trabalha mais no não verbal e no não conceitual do que nos discursos.
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O sacramento da JMJ: um diálogo teológico entre Andrea Grillo e Marco Gallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU