01 Agosto 2023
"O senhor fuma?" Não. "Pior para você". Gustavo Zagrebelsky é um homem rude com doçura. Em seu apartamento no centro de Turim - piano, violão clássico, uma miríade de volumes alinhados nas estantes de madeira - despeja nas xícaras o café fervente direto da Moka. Declara: “O mundo está sentado num vulcão” e esboça um longo e misterioso sorriso, como se quisesse ver o efeito que causa. Seus olhos brilham, cheios de desafio, mas de alguma forma insondáveis.
A entrevista é de Andrea Malaguti, publicada por La Stampa, 30-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A ideia do encontro seria para falar sobre o espírito dos tempos. Meloni, a Carta, Vox, a justiça. Fazer isso com um homem que aos 26 anos lecionava na Universidade de Sassari e em 2004 era presidente do Tribunal Constitucional obviamente daria um valioso material para reflexão. Porém, Zagrebelsky tem outra coisa em mente. Tem mais intenções. E só um louco tentaria dissuadi-lo de seus propósitos.
No dia de seu aniversário de 80 anos (1º de junho), o professor inaugurou outra fase de sua vida. Uma fase em que, relendo o passado, está pronto para imaginar e propor um mundo novo. A ser construído assim que a dolorosa experiência desta longa temporada de crise acabar em escombros.
Textualmente: "Tento imaginar as coisas que poderemos fazer diante da catástrofe".
Parece a lápide sobre a esperança coletiva, mas é o ambicioso anúncio de um Renascimento de parte de um intelectual que considera proveitosa até a sombra do caos e por isso continua a semear.
Professor, aos 80 anos o senhor se tornou definitivamente sábio?
Não sei se sábio. Espero não definitivamente! Eu sei que desde 1º de junho venho tentando mudar de perspectiva.
O que significa?
É uma data convencional. Há dois meses venho considerando cada dia a mais como um dom. Da providência. Do caso. De sorte. O que quiser. A questão é que, quando recebemos um dom, você ficamos felizes.
O senhor é feliz?
Certamente rejeito a atitude generalizada entre os idosos que começam a sentir-se tristes porque tudo vai mal.
Nem tudo vai mal?
Talvez nem tudo. Mas muito sim.
Não entendo: mais otimista ou pessimista?
Olhe, se não formos ignavos, é inevitável amarrar os pensamentos a uma possibilidade de futuro.
Então otimista.
Não corra. Norberto Bobbio disse que todos os tolos são otimistas, mas nem todos os otimistas são tolos. Uma certa prudência é, portanto, aconselhável para não ser automaticamente incluídos entre os tolos. O que pertence ao futuro é desconhecido para nós, mas há circunstâncias que inclinam, se não ao pessimismo, ao menos a muita preocupação. Você notou como está se espalhando uma sensação apocalíptica, entendida como o desvelamento do que até agora não se via ou se tentava não ver?
Agora que o senhor falou, de fato o noto.
Estamos num mundo onde existe o ‘muro de pedra’ sobre o qual escreve Dostoievski: paramos diante dele e ele cospe na nossa cara. E seria necessário derrubar o muro para enfrentar temas aterrorizantes como a habitabilidade do planeta, as guerras, as centenas de milhares de crianças que nascem e morrem na primeira semana de vida, enquanto nós, observando as fotos de Aylan Kurdi ou de Marie, que aos seis anos perde a vida no deserto da Tunísia ao lado de sua mãe, abrimos os braços. Não só por nos termos acostumado com essas imagens, mas sobretudo por impotência diante do horror.
Pato, Fati e Marie. As duas foram encontradas mortas no deserto da Tunísia (Foto: Divulgação)
Eu estava errado, pessimista.
Corre novamente. As grandes questões e as grandes ideias assumem um significado diferente se quem as avalia vive em condição de privilégio e bem-estar ou não tem nada, a não ser o sofrimento e o medo. Se você passa as férias em Cortina, é uma coisa; se você é uma refugiada em Sfax ou está fugindo da Síria, e outra. Não lhe parece?
Pergunta retórica.
O ponto teórico que prezo é este: de Aristóteles até hoje somos dominados conceitualmente pelo princípio da não contradição e há pelo menos dois séculos e meio a vida no planeta se desenrola tentando eliminar tudo o que não é coerente, exterminando as culturas particulares e empurrando todos para um mesmo modelo de vida. Equalização, homologação. A não contradição é um princípio despótico.
Os custos do Iluminismo e da globalização. Se eu não conhecesse a sua história diria que fala como um reacionário.
Mas eu sou um reacionário! A questão é: 'reação ao quê?'
Fiquei confuso.
O Iluminismo criou sociedades baseadas na linearidade (até mesmo do ponto de vista arquitetônico, urbanístico). O que não está dentro, que está nas laterais, deve ser erradicado ou anulado. O Papa fala com sofrimento de "descartes humanos", um ministro, cinicamente, de "cargas residuais". Essas afirmações, além da crueldade da linguagem, traem um pensamento geral que não funciona mais. Então eu lhe pergunto: você não acha que nossa forma de conceber a existência neste planeta já mostrou todos os seus limites?
Teorias caras também às direitas.
Eu lhe pareço um dos Vox?
Na verdade, não.
Precisamente. Eu sou, ou tento ser, simplesmente realista. E me parece que o mundo está doente, gravemente.
Estamos sem esperança?
Não. Não estou do lado daqueles que, como os ‘negacionistas’ de todos os tipos, afirmam alternadamente que tudo vai bem ou que, de qualquer maneira, não há nada a fazer. Para dar um significado ao tempo restante à minha disposição, apoio-me em dois pilares. O primeiro: o espírito de quem se sente livre para dizer o que acredita sem pensar em quem beneficia ou quem prejudica. O segundo é Albert Camus.
O que Camus tem a ver com isso?
Há um lema de que gosto: numa certa idade já não existe mais tempo e energia para novas empreitadas - eu não me empenharia a escrever um tratado sobre direito constitucional - mas existe tempo e energia para olhar as coisas velhas com olhos novos.
Frase magnífica. Mas o que significa?
Que eu posso revisitar e reconsiderar as coisas que conheci e estudei no passado, tentando ver lados novos, imaginando alternativas.
Não está claro para mim.
Veja, espero ter feito o meu melhor pela democracia.
Inegável.
Agradeço. No entanto, houve um tempo, depois da Segunda Guerra Mundial, em que parecia que a democracia fosse o destino final e universal da humanidade. Mas a democracia é liberdade e diferenciação, defesa das minorias, ou seja, das diferenças. Estilos de vida e culturas. Se não, há asfixia. Agora parece que só pode haver um único modo uniforme de viver e se você for para Hong Kong você se encontra em um lugar que parece Manhattan. A nossa, ressalto nossa, democracia produziu esse resultado?
Talvez seja porque Manhattan é um modelo atraente.
Para nós, talvez. Mas é realmente para todos? E, em todo caso, agora temos que nos perguntar se é um modelo sustentável.
Melhor olhar para o Oriente, ou talvez para o Leste?
Nunca disse isso. E não me faça parecer um putiniano. A globalização definiu as novas regras da economia: acumulação ilimitada que chamamos de desenvolvimento, dissipação dos recursos e ruptura dos equilíbrios naturais, empobrecimento e exploração de categorias sociais e de populações inteiras.
E como se tenta manter tudo isso junto?
Pela força e pela sublimação da força, isto é, as guerras que mandam fazer.
Mandam fazer?
Claro, essa é a definição exata. Putin ou Biden não travam guerra, mas mandam que seja feita por centenas de milhares de outros seres humanos que vão ao encontro da morte. Certamente não por livre escolha. Até a guerra se tornou desumanizada (caso se pudesse pensar em uma guerra "humana"), transformando-se a ponto de destruir vidas, cidades e países sem que se ouçam explosões, mau cheiro de cadáveres ou se vejam escombros ou inimigos direto nos olhos. Mísseis e drones são comandados com precisão milimétrica a milhares de quilômetros de distância e os estrategistas manejam não homens e vidas, mas tecnologias.
Foto: Facebook de Volodimyr Zelensky | Reprodução
No entanto, o conflito desencadeado pela Rússia na Ucrânia parece ter características antigas: uma invasão de campo, o controle do terreno metro após metro.
Mísseis e drones geram o vazio, mas depois o terreno tem de ser ocupado. E aí a tecnologia já não basta mais.
São necessários os homens, como sempre. E os homens, quando se encontram no terreno, se olham nos olhos. Como eles se veem, em primeiro lugar? Como seres humanos ou como animais ferozes?
Olhando-se olho no olho ou não, os homens travam guerra desde sempre.
Sim: homo homini lupus. Aliás, a guerra - dizem muitos - é uma coisa boa porque prepara uma paz melhor. Mas a que preço! Montesquieu, com muitos outros, argumentava o contrário: que a violência, a agressão e o abuso não fazem parte da natureza humana.
O que se deduz disso?
Essa visão diferente demonstra que estamos no campo das ideologias. Aliás, a suposta agressividade natural dos seres humanos como tais, é a ideologia máxima, ou seja, a mais importante intervenção de manipulação das consciências. E, se é uma ideologia, não poderia ser substituída por aquela oposta? Somos nós, não a ‘natureza’, que nos tornamos amigos ou inimigos uns dos outros. Onde está escrito que somos obrigados a fabricar, vender e enviar armas continuamente?
Instinto defensivo de sobrevivência?
Você pensa imediatamente na Ucrânia.
Efetivamente.
Eu entendo. É automático. Mas estou tentando levantar um pouco o olhar e insisto em lhe dizer que a ideia segundo a qual os seres humanos são por natureza inimigos e movidos por instintos agressivos e expansionistas é uma ideia da qual nós mesmos somos os autores.
Desculpe-me por manter ainda meu olhar baixo, mas se você visse alguém agredindo seus entes queridos, o que faria?
Eu pularia em cima dele. Sabe, sou bastante irritadiço e pronto a brigar, até quando alguém rouba minha vaga de estacionamento. Mas essas são reações a um abuso. Aqui estamos pensando sobre a propensão dos seres humanos a um abuso específico que se chama guerra. Eu acredito que começar a guerra seja uma decisão imposta por uns poucos poderosos. Nas capitais dos estados não deveria haver o monumento ao soldado desconhecido, mas para a vítima desconhecida.
Não entendi se você é um visionário ou um utopista.
Olhe, o grande desafio do tempo presente, do qual depende o futuro, é sair dos mecanismos imensamente difundidos da ideologia de guerra. Temos que baixar o nível da violência - que é grande - nas relações individuais, naquelas coletivas e com todos os seres vivos sobre a terra. Que também é um grande ser vivo, ‘um animal’, diziam os antigos.
Seria mais fácil se o mal não existisse. Mas o mal existe.
Claro. Se existe o mal, não deveríamos reagir por todos os meios, opondo violência à violência?
Grande questão filosófica: pode-se ser tolerante com os intolerantes? Eu, mais uma vez com Bobbio, digo que não, porque o intolerante impede que os outros sejam tolerantes.
Portanto, não há saída.
Há. Também aqui entremos no campo das virtudes recíprocas, as mais difíceis de realizar. Poder-se-ia apelar para o princípio da moral kantiana: sempre tratar os seres humanos como fins e nunca apenas como meios. Onde a palavra ‘apenas’, muitas vezes esquecida, é muito importante.
Como é possível não a esquecer?
Vamos recomeçar das relações individuais, vamos ver onde a violência e o abuso se assentam, vamos olhar para as causas e tentar desarmá-las, vamos raciocinar para os nossos filhos e netos. Não nos deixemos enganar. Vemos que a violência é produto das prepotências e, portanto, vamos combatê-las, começando por aquelas pequenas e quotidianas, até as grandes e marcantes.
Olhemos para as coisas velhas com olhos novos - justamente - e se perceberá que recomeçar não é impossível. E, em todo caso, é necessário.
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“A humanidade está sentada em um vulcão, precisa parar de fabricar e enviar armas”. Entrevista com Gustavo Zagrebelsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU