28 Julho 2023
Autor de estudos sobre o modo como as percepções de tempo e espaço se alteraram no mundo contemporâneo, o antropólogo francês Marc Augé reflete sobre essas mudanças em uma entrevista especial. "A distância entre ricos e pobres é cada vez mais importante, e a mesma coisa ocorre com o acesso ao conhecimento e à ciência. Eu diria que a globalização não difere muito da colonização. Vivemos um tipo de colonização anônima ou multinacional. A globalização nos emparelhou" afirma.
A reportagem e a entrevista é de Eduardo Febbro e publicada por Carta Maior, 12-10-2011.
Desde 1980, o antropólogo francês Marc Augé propõe uma observação e um relato inédito de um mundo contemporâneo em plena velocidade. Da África à América Latina, do mundo ocidental a uma travessia pelo Jardim de Luxemburgo, uma viagem etnográfica pelo Metrô de Paris ou um ensaio brilhante sobre a bicicleta e o território de autonomia e intimidade que nos oferece, Augé explorou quase todos os recantos da modernidade sem nunca perder de vista o objeto central de seus trabalhos, a saber, os outros, o próximo, o indivíduo.
A originalidade de Marc Augé se inscreve inclusive no lugar de seus encontros. Autor de um delicioso ensaio sobre a impossibilidade de viajar – «A viagem impossível» - e o consequente automatismo que consiste em não vijar por territórios novos, mas sim por lugares consagrados e codificados, o autor francês fixou o local da entrevista em uma estação de trens, a Gare d’Austerlitz. Um lugar de observação privilegiado, situado perto de sua casa, na esquina de um McDonald’s em frente do qual está a entrada do Museu de História Natural de Paris. Uma conjunção urbana perfeita para um intelectual que tem explorado como poucos as noções de tempo e espaço e cujas reflexões precederam o advento de uma modernidade onde o tempo se tornou instantâneo através da velocidade dos intercâmbios e o espaço se estreitou com a catarata de imagens.
No entanto, como assinala Augé nesta entrevista, a instantaneidade e a profusão de imagems não fizeram mais do que criar confusão e mais solidão. Promotor da ideia de andar de bicicleta como forma de recuperar o controle individual da noção de tempo e espaço, agudo descobridor dos «não lugares», inventor do conceito de «etno-ficção», Augé disseca nesta entrevista a realidade de um mundo enfermo de imagens, iludido com um conhecimento de miragens. O antropólogo não propõe nenhuma ideologia de substituição, mas sim uma lúcida viagem pela modernidade, com todos seus escândalos e seus acertos passageiros.
Entrevista publicada originalmente em 13-10-2011, que reproduzimos hoje por ocasião da morte de Marc Augé esta semana, dia 24 de julho de 2023.
Muitos analistas vêm evocando há cerca de dez anos a existência de uma espécie de mal estar generalizado em quase todas as sociedades humanas. Qual é, para você, a origem dessa estranha sensação planetária ?
Creio que o grande mal estar provém da mudança de escala. Quando refletimos sobre o contexto de qualquer acontecimento, esse se situa em escala planetária. Isso leva a que, mesmo em acontecimentos pequenos, o mundo inteiro esteja em questão. Também somos conscientes de que o capitalismo conseguiu sua internacionalização. Estamos encerrados no sistema, enão só no do mercado. As referências locais são insuficientes, os indivíduos são mais individuais, mas ou são consumidores ou são excluídos do consumo. Essa situação provoca uma certa vertigem e, sob certos ângulos, uma vertigem metafísica. Creio, então, que a instalação do sistema planetário nos faz sofrer.
Poderíamos ter uma percepção gloriosa disso tudo e afirmar que todos os seres humanos são irmãos, ou celebrar a humanidade e a universlidade. Mas estamos longe de tudo isso por duas razões : a primeira é porque essas mudanças ocorrem sob o signo da economia; a segunda, porque as transformações provocam resistências que, frequentemente, são opacas e um pouco loucas. Vemos, por exemplo, o desencadeamento dos fundamentalismos mais radicais. Alguém pode se perguntar até onde é preciso olhar para encontrar algo alentador.
Há algo ao mesmo tempo nefasto e tentador na instantaneidade com a qual funciona o mundo. Em um de seus livros, "As formas do esquecimento", você coloca o esquecimento como condição para saborear o presente e o instante, para recuperar o que as formas atuais da instantaneidade nos retiram.
A instantaneiddade é hoje a consigna do mundo. Paul Virilio descreveu muito bem esta ubiquidade da instantaneidade. Mas eu me refiro a outro instante, a um instante mais íntimo, o instante da relação conosco mesmo, o instante do encontro com os outros, com um olhar, uma paisagem, uma ideia. Não há identidade individual ou coletiva que possa ser construída sem o outro. A solidão absoluta é impensável. O itinerário do indivíduo passa pelo encontro com os demais. Por isso, quando evoco o instante, é por oposição a tudo o que está marcado pelo passado. Temos uma tendência a encontrar a explicação de todos os fenômenos no passado, seja na perspectiva marxista ou analítica. É claro que não se pode negar a importãncia do passado na construção individual e coletiva, mas eu diria que os momentos de criação são os momentos que conseguem escapar dessa gravidade. Para mim, o instante é justamente isso, um momento no qual o tempo muda de registro, há um tempo que circula, mas que não depende do que pesa sobre ele. Um instante sem culpabilidade.
Você escreveu certa vez que bastava ampliar a distância para que os piores erros se apaguem. No entanto, hoje a distância se estreitou e os horrores se apagam do mesmo modo. A proximidade não nos redime do esquecimento.
Sim, está certo, há um efeito duplo. Quando escrevi isso pensava nesses pilotos de avião que lançam bombas. Para eles, o dano causado era abstrato. Hoje basta ligar a televisão para ver cadáveres em abundância. Mas, de certo modo, o que torna as coisas abstratas é o acúmulo. A visão de proximidade da televisão produz o mesmo efeito que a distância. Creio que não nos damos conta do que ocorre, da gravidade.
Você diria que o relato por meio da imagem nos desumanizou?
De certa forma sim. A imagem é a melhor e a pior das coisas. Estamos orgulhosos porque a imagem nos aproxima de tudo. No entanto, ao mesmo tempo que nos aproxima ela nos distancia. A imagem também tem outro efeito perverso: ela causa a ilusão de que conhecemos porque nos permite reconhecer. Mas o reconhecimento não é o conhecimento. É um jogo perverso, é a ignorância que desconhece a si mesma.
Em seu último livro você faz uma assombrosa recomendação : «Devemos escapar do pesadelo mítico».
Com isso me refiro à fórmula de Walter Benjamin quando conta que, no fundo, a aparição do relato organizado, dos contos onde o pequeno triunfa diante do grande ou do ogro, tudo isso desfaz o impacto dos relatos míticos onde as bruxas devoram os homens e outros horrores mais. O pesadelo mítico são os mitos originais, as cosmogonias, as cosmologias e toda uma panóplia de mitos horríveis e caóticos. Benjamin pensava que a narrativa era uma forma de afastar-se desses horrores. O pesadelo mítico sempre se relaciona com a indistinção, a indistinção entre o bem e o mal, entre os sexos, entre as distintas gerações, etc, etc. Podemos nos perguntar, então, se não há um risco de uma nova indistinção a partir da abundância de imagens.
Essa abundância nos remete a um tipo de ameaça mítica. É preciso ter cuidado. Devemos ter formas narrativas capazes de colocar a imagem à distância para que ela seja apenas o que é, ou seja, uma ilustração e não uma realidade. Os progressos tecnológicos nos levam a tomar a imagem como algo real. O pensamento escrito é muito mais articulado e é isso precisamente o que precisamos: um pensamento articulado frente à enxurrada de imagens. A escritura aporta outra coisa. No entanto, também é lícito interrogar-se sobre a noção de escritura dado que o inimigo se instalou nesse campo. Basta abrir a internet para dar-se conta de que quase tudo que circula ali é oralidade primitiva, primária.
A internet também é, para você, uma espécie de ilusão.
Sim. Acreditamos que a internet é um fim em si mesmo, e isso é uma ilusão. Acredita-se que basta ingressar nesse universo para pertencer à comunidade dos comunicantes. Isso é ilusório. Não pertencemos a coisa alguma. Falava a pouco da ilusão do conhecimento. Com a internet ocorre algo similar. Em nosso computador, temos toda a ilusão do mundo, mas esse conhecimento só é útil para aqueles que já sabem algo.
Parece que o mundo moderno é uma sinfonia de ilusões. Você sugere, por exemplo, que a própria ideia de comunidade é ilusória.
Há palavras por trás das quais já não se colocam conceitos. Essas palavras funcionam como códigos para passar. Quando dizemos cultura, quando dizemos diferença, quando dizemos comunidade, eu me pergunto: de que estamos falando? Por exemplo, quando se diz «sociedade multicultural» não sei do que está se falando. Trabalhei durante um tempo em uma localidade muito pequena da Costa do Marfim. Ali havia uma multiplicidade de grupos com culturas diferentes. Suas referências eram distintas e seus idiomas também. Em cada cultura, cada indivíduo tem uma relação diferente e desigual com essa cultura, a multiplicidade da referência cultural é enorme.
Quando falamos de sociedades multiculturais estamos nos referindo à coexistência de culturas no sentido mais impreciso, mais opaco. O que são a cultura africana ou a cultura asiática senão um conjunto de lugares comuns que não dizem grande coisa? A noção de multiculturalismo é abstrata. Em resumo, cada vez que falamos de coletividade estamos recorrendo à linguagem da ilusão. Coloquemos as coisas ao contrário. Seria preciso dar voltas a partir do indivíduo, que é nossa única referência concreta. Não se trata de uma sociologia do egoísmo ou do egocentrismo. Não há indivíduo sem relação. Por isso de pode estudar a elaboração das relações entre os indivíduos.
Isso está no coração da democracia, a qual deve fixar a maneira pela qual nos relacionamos com o outro. A soberania do indivíduo está limitada pelo fato de que ele não está sozinho. A solidão absoluta conduz à loucura. O mesmo ocorre com a totalidade imposta, que também conduz á loucura. O papel da democracia deveria consistir em elaborar um compromisso para conciliar a individualidade e a alteridade.
Você introduz um conceito hiper moderno em sua definição dos blocos do mundo. Tomando como base o famoso artigo de Francis Fukuyama no qual, com o triunfo da democracia liberal, Fukuyama promoveu a ideia do fim da história, você escreveu que isso conduziu ao esfriamento do Ocidente.
Com isso, eu estava me referindo à ideia de Claude Levi-Strauss sobre as sociedades frias e as sociedades quentes. Quando se afirma que a história terminou então passamos para o lado frio. A ideia sobre o fim da história não significa que os acontecimentos acabaram, mas sim que a fórmula, a receita, foi encontrada: ou seja, mercado liberal e democracia representativa. Mas essa ideia enfrenta muitas objeções. A primeira: o mercado liberal se dá muito bem com regimes ditatoriais. Isso significa que a liberalização dos mercados, a liberdade dos intercâmbios, não garantem o advento da democracia. Há um paradoxo no postulado do fim da história: é uma espécie de marxismo ao contrário. É a ideia de qua organização da produção desemboca em formas sociais. Creio que esse foi o último grande relato que conhecemos.
A segunda objeção é que não nos dirigimos para um mundo de desigualdades reforçadas. A ascensão de alguns estados, os chamados países emergentes, alimenta a ilusão de que o mundo caminha na direção de mais igualdade. É certo que há países emergentes, mas assim como entre os países desenvolvidos, entre os emergentes se constatam fenômenos de desigualdade crescente. A distância entre ricos e pobres é cada vez mais importante, e a mesma coisa ocorre com o acesso ao conhecimento e à ciência. Eu diria que a globalização não difere muito da colonização. Vivemos um tipo de colonização anônima ou multinacional. A globalização nos emparelhou.
O Terceiro Mundo tem problemas que não são muito distintos dos problemas do Ocidente, por exemplo, no que diz respeito à migração. Os migrantes já não vão só do Sul ao Norte, mas também do Sul para o Sul. No Ocidente, há uma tradição de arrogância que não encontramos no Sul, mas não estou seguro de que os problemas sejam fundamentalmente distintos. A globalização criou as mesmas problemáticas em todas as partes. Não acredito que seja oportuno fazer a apologia do Ocidente ou questioná-lo. O questionamento do Ocidente permite às ditaduras locais fabricarem uma virtude por conta própria. Sou mais universalista, creio que todos compartilhamos o horror.
Há, de fato, uma tecno-oligarquia e uma oligarquia financeira que colonizaram o mundo?
Sim, e cada vez mais nos dirigimos para esse modelo de oligarquias. Em alguns lugares do mundo vemos uma concentração muito forte de poder, conhecimento e riqueza. Há então uma classe oligárquica sob a qual encontramos uma classe de consumidores – sem eles o sistema não funciona – e depois vem os excluídos, essas classes que não são necessárias para que a máquina funcione. Esse esquema exclui todo modelo de revolução.
Para que uma revolução ocorra hoje ela deveria se situar em escala planetária. Conservamos uma ideia mítica da Revolução Francesa que também cometeu horrores. Mas conservamos também a ideia de que a Revolução Francesa foi feita em nome de princípios. Hoje já não sabemos quais são os princípios. O que está em jogo é enorme : transformar o planeta em um lugar onde todos os seres humanos se reconheçam é um desafio formidável. Mas a história não funciona assim.
Recordo o livro que você escreveu sobre a bicicleta, no qual aponta que andar de bicicleta é uma espécie de novo humanismo. Deveríamos todos andar de bicicleta para recuperar um pouco de humanidade? Já não é muito tarde frente o avanço da globalização, a pobreza, a especulação, o vazio planetário das imagens?
A experiência da bicicleta me permitiu destacar que tudo está relacionado com o tempo e o espaço. Neste sentido, a bicicleta corresponde à necessária dimensão individual. Quando estamos sentados na frente de nossos computadores estamos mergulhados em um universo fictício de instantaneidade e ubiquidade. Se temos trabalho estamos asfixiados pela maneira como está concebido fora de nós, e se não temos trabalho estamos aplastados como indivíduos. Há uma espécie de totalitarismo liberal muito pesado. Então, o que podemos fazer? Em escala individual, creio que o único meio de escapar à ilusão é ter sua própria relação com o tempo e o espaço. A bicicleta é um bom instrumento: nos remete à infância, à velhice, nos remete à noção das distâncias que é preciso percorrer, ao controle, etc., etc. Quero deixar claro que não acredito que seja possível mudar o mundo por meio da reforma individual e da bicicleta. Como mortais, estamos todos condenados à utopia. Ainda não acabamos de redefinir a finitude do ser humano, a materialidade do espírito e o futuro de história.
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"A globalização é uma uma nova forma de colonização". Entrevista com Marc Augé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU