"A Ontologia da Esperança nos ensina, nas pegadas de Freire, que essa luta acontece na direção da transformação. Assim que tomamos consciência, não se trata mais de uma luta individual, mas de um sonho coletivo", escreve Vilmar Alves Pereira, filósofo, educador ambiental popular, doutor em Educação (UFRGS), Bolsista de Produtividade do CNPq da Universidad Internacional Iberoamericana – UNINI.
Os múltiplos efeitos da grande crise sociopolítica que atravessamos criam sintomas imensuráveis nas diferentes dimensões da vida humana e não humana. Pensarmos a existência em contextos extremos quando a vida é cotidianamente ameaçada cria exigências que apontam por um lado pela finitude e limitação de alternativas que antes considerávamos ser portadoras de sentido e de indicação teleologias seguras que vinham sendo afirmadas e reconhecidas desde o horizonte da ciência e da racionalidade moderna. Por outro lado, em múltiplos contextos de atuação, em plena travessia da pandemia da Covid-19 percebo o quanto somos provocados a busca de alternativas e de horizontes de esperança. A dor da partida de um ente querido, passa a ser a dor coletiva da humanidade.
Resultado do esgotamento de um paradigma civilizatório que adoeceu a pandemia consiste em mais uma patologia socioambiental que desde há muito demonstrava a incapacidade de garantir vida digna no planeta. Mediante a necessidade de redefinição ontológica, sobre o sentido daquilo que estamos atravessando, de reavaliação da forma como vivíamos a vida, de redescrição de nossa história e de reaprendizagem permanente nos questionamos sobre quem somos, o que fizemos, e o que poderemos estar fazendo agora e no amanhã que se avizinha.
Associo a essa reflexão o contexto de múltiplas formas necrófilas que mitigam em alguns casos, em outros, destroem a vida. Elas vêm decretadas no Brasil e no mundo por inúmeras injustiças e ataques ao campo popular ambiental, atingindo populações mais vulneráveis, florestas espaços urbanos de aumento da desigualdade e do agravamento de problemas vivenciados no mundo pré-Covid-19. O modo de ser negacionista, a desatenção com os mais vulneráveis, práticas de mineração, desmatamento e queimadas, o aumento da pobreza, fome, desemprego e a reivindicação pelo retorno a ditadura estampam quadros preocupantes da desigualdade social no Brasil e na América Latina com muitas injustiças socioambientais. Esse amplo conjunto de negação da vida tem em sua raiz o que denomino em outro estudo de ontologias opressoras.
Em minha compreensão, vislumbro dois modos de ser do opressor nas referidas ontologias. Um primeiro é aquele mais conhecido:
Ontologia opressora tradicional: nos referimos aqui àqueles moldes de ação enraizados em nossa cultura ocidental. A opressão que vem junto com as práticas de violência, dogmas e limitação da vocação ontológica do ser. Para sua manutenção, muitas vezes, faz uso da força e de alianças com poderes extremos. Esse modo de ser e de agir foi identificado por Paulo Freire, em todas as formas de opressões em nossa América Latina e no Caribe, nas múltiplas lutas onde a vida foi ceifada e muitas injustiças foram cometidas. Freire sentiu também, na própria carne, quando do seu exílio, pela forma violenta e impositiva num país que não lhe deu nem a oportunidade, como dizia, de um “fica porte” muito menos passaporte como ele próprio considerava. Na base dessa ontologia opressora, estão também todos os fundamentalismos e os conservadorismos. Desse modo, fica mais fácil de percebê-la. Essa ontologia, como Freire identifica, é necrófila pois não está a favor da vida, ao contrário busca o seu aniquilamento.
Novas ontologias da opressão: esse segundo movimento, não menos ofensivo, porém disfarçado. Trata-se de um modo de ser que, na prática, se propõe inovador, emancipador e com vida, mas que, no entanto, não consegue atingir esse propósito. A não consecução de seus objetivos está associada aos compromissos e alianças com o sistema e com as exigências que o orientam. Refiro-me a ontologias hibridas que buscam “servir a dois senhores”. Utilizam-se de roupagem de vanguarda, cujo discurso até possui uma certa atratividade. No entanto, passando os efêmeros recursos discursivos, logo se mostra um projeto vazio, carente de vida e de sentido existencial. Talvez essa ontologia possa ter tantos ou mais efeitos que a primeira. Justifico essa afirmativa considerando que, muitas vezes, sem nos darmos conta dela, temos ou criamos expectativas de emancipação que não vão ser atingidas porque a racionalidade que a sustenta é aquela que Weber denomina de racionalidade instrumental estratégica voltada a fins, cujo endereçamento é o aumento do lucro e do poder. Essa perspectiva ontológica não realiza mudanças profundas porque não se propõe a consegui-las. Mudam-se os discursos, mas não as práticas. Mudanças profundas poderiam permitir processos de libertação e de humanização dos oprimidos(as).
Consideramos ser muito perversa essa ontologia opressora porque vem impregnada de um certo verniz que maquia as possibilidades emancipatórias. Muitos espectadores caem facilmente nesse “canto da seria”, quer seja pelo encanto, quer seja pela acomodação e necessidade de segurança de que “tudo está no seu lugar”. Algumas vezes, é possível identificarmos entidades com propósitos de lutas aliadas a essa ontologia, obtendo benefícios privados na mesma lógica de posse denunciada por Freire. Mediante a isso, muitos “discursos transformadores” se calam, se omitem e, de certo modo, consentem, aceitando os discursos produtores de verdades e de injustiças. De que lado estamos quando nos omitimos mediante a essa ontologia opressora? Somos a favor a dessa lógica neoliberal empreendedora e injusta que, com seu disfarce, assume cada vez mais espaço em nosso mundo da vida? São questões sobre as quais vale muito a pena refletirmos.
Mediante a essa compreensão e a necessidades de enfrentarmos as opressões é que advogamos em favor de uma Ontologia da Esperança. Ela é resultado de esforços coletivos em pensarmos alternativas ao campo Ambiental Popular. Seus fundamentos estão estampados na obra Ontologia da Esperança: a Educação Ambiental em tempos de crise (2020). Nela, a partir dos movimentos sociais populares apresentamos os contornos de uma Ontologia da Esperança que reconhece, por diferentes olhares, esses movimentos opressores e, a partir de uma esperança ativa, crítica e militante, busca encontrar possibilidades de outros inéditos. É nesse contexto que essa ontologia apresenta a necessidade da resistência coletiva; da luta pelo fortalecimento de políticas públicas inclusiva de mulheres negras; de enfrentamento crítico ao feminicídio de mulheres negras; de defesa de processos de reontologização do ser; da atualidade e fecundidade da educação ambiental crítica; de uma Ética Ambiental como fundamento do instante vivido; da racionalidade ambiental na orientação da Ontologia da Esperança; de uma ontologia ambiental como modo de questionamento à sociedade moderna; da defesa da Educação Popular e das Ações Afirmativas no contexto da Universidade Pública.
Essa ontologia aponta para amplos movimentos que denotam, não apenas a extensão da crise, mas, sobretudo, a nossa força e vontade de lutar por um mundo onde os processos educativos sejam de fato humanizadores e libertadores. Nessa perspectiva, a esperança é vista como uma luta (FREIRE,1992).
O convite que faço é que não nos deixemos apequenar, que busquemos pelo processo reflexivo, individual, mas fundamentalmente coletivo dar se conta da nossa vocação ontológica. Essa vocação aponta para as possibilidades de resistência, de superação e de abertura do ser mais preconizado por Paulo Freire. Com ele aprendi que se as opressões buscam nos roubar a nossa humanidade e pela esperança ativa devemos lutar para pegar de volta a humanidade que nos foi roubada. Acredito que nesse momento extremo é um daqueles que pela esperança crítica devemos nos projetar para além dele. Aprendi também que esperança é algo que não se perde pois ela é parte integrante da dimensão do nosso ser. Nessa perspectiva o esperançar é um movimento de imanência e transcendência, pois estando encharcado nesse contexto, ao dar me por conta das condições limitantes devo transcender as situações de adaptação e buscar horizontes de possibilidades. Esperançar é estar aberto a nossa vocação ontológica, ao porvir.
Por isso é fundamental que prossigamos na luta, num momento tão extremo num Brasil e América Latina e Caribe com tantas desigualdades e injustiças socioambientais. A Ontologia da Esperança nos ensina, nas pegadas de Freire, que essa luta acontece na direção da transformação. Assim que tomamos consciência, não se trata mais de uma luta individual, mas de um sonho coletivo. Dessa forma, acreditamos que a Ontologia da Esperança pode, sim, contribuir significativamente com processos formativos que ressignifiquem, a Educação Ambiental Popular bem como a sociedade presente e futura. Finalmente, gostaria de expressar o meu desejo de muito esperançar em suas existências!
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
ANDREOLA, B. Dimensões Antropológicas e Ontológicas da Opressão. In: CHABALGOITY, D. Ontologia do Oprimido. Construção do Pensamento Filosófico em Paulo Freire. Jundiaí: Paco Editorial:2015.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 46. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992b.
PEREIRA, V. A; MALTA, M. C. (Org.). Ontologia da Esperança: a Educação Ambiental em tempos de crise. 1. ed. Juiz de Fora: Editora Garcia, 2020. v. 1. 183p.