29 Junho 2023
"O tema da salvação coincide essencialmente com a experiência cristã como tal: a existência eclesial (particularmente a prática sacramental) promete para aqueles/as que creem ser tirados/as das consequências do pecado radical, nesta vida e na outra", escreve Fúlvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Esodo, junho-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Não é necessário gastar muitas palavras para destacar a centralidade do termo "salvação" no vocabulário cristão: aliás, desde o Novo Testamento Jesus de Nazaré é qualificado como "Salvador". De quem, do que o ser humano deve ser salvo, para os autores do Novo Testamento, resulta basicamente claro. Segundo Paulo, existe uma culpa radical e pré-moral do ser humano, que condiciona profundamente seu ser e seu agir: o homem "velho" é envolto pela herança do pecado de Adão, do qual só o "novo Adão" pode libertá-lo.
O cristianismo posterior desenvolverá essa perspectiva até chegar à doutrina agostiniana do pecado original.
Na Idade Média, Anselmo de Aosta desenvolverá uma teoria complexa, fortemente nutrida por categorias jurídicas de seu tempo, destinada a ilustrar a "necessidade" da encarnação de Deus em ser humano, para que a humanidade seja libertada das consequências fatais do pecado adâmico.
A exegese contemporânea praticamente concorda que a história de Gen 3 não fala de uma espécie de culpa metafísica que afligiria a humanidade: pelo contrário, o vocabulário do pecado e da culpa está ausente do texto. O horizonte que Paulo retoma e que Agostinho desenvolverá de forma sistemática é constituído mais pela especulação apocalíptica do judaísmo médio. Em todo caso, ele influencia fortemente o imaginário cristão e torna-se um elemento decisivo do discurso relativo à salvação (soteriologia).
O tema da salvação coincide essencialmente com a experiência cristã como tal: a existência eclesial (particularmente a prática sacramental) promete para aqueles que creem ser tirados/as das consequências do pecado radical, nesta vida e na outra. Nesta vida, os "meios de salvação" tornam possível uma vida moral, apesar das imbecillitas (fraquezas) estrutural que o ser humano carrega em si, mesmo depois do batismo; isso também autoriza a ter esperança na "salvação eterna", além desta vida: o juízo final pode ser enfrentado com esperança graças aos méritos de Cristo, mediados para aqueles que creem na Igreja. Em tudo isso, as representações (teológicas, homiléticas, catequéticas, artísticas) do inferno desempenham um papel que não deveria ser subestimado. "Salvação" significa, concretamente, a possibilidade de evitar as punições eternas que o diabo e seus acólitos reservam (em última análise, vale lembrar, por mandato divino) para as pessoas "condenadas".
Se nos limitarmos ao cristianismo ocidental, poderemos notar que o embate entre a Reforma Protestante e a Contrarreforma se situa dentro desse esquema compartilhado: ambos os lados estão convencidos de que somente a graça pode salvar os seres humanos da danação eterna. O dissenso, simplificando ao máximo, diz respeito ao modo de entender a relação entre tal salvação e a instituição eclesial.
A partir do Iluminismo, o cristianismo protestante, e mais tarde também o católico, do mundo rico, se distanciaram mais ou menos drasticamente desse imaginário: as razões teológicas são conhecidas e muito sérias, embora do ponto de vista histórico-cultural seja evidente que elas tentam reagir a mudanças profundas na sociedade secular. As categorias fundamentais de culpa, julgamento, graça e, justamente, salvação, são lidas, em um mundo em mudança, em termos que não são mais compatíveis, por exemplo, com o esquema de tipo jurídico de Anselmo.
Mas, novamente: não há nada de errado nisso, pelo contrário, trata-se do empenho missionário de reformular a mensagem em um novo contexto. O mundo no qual os demônios são mantidos à distância pelo aparato sacramental da Igreja se foi para sempre; mas também o apaixonado anúncio do pastor protestante, que convida a se regozijar com a natureza "gratuita" do perdão, deve acertar as contas com o fato de que a catástrofe da qual nos "salvamos" requer alguma explicação.
O preço dessa releitura não é baixo: a pergunta que antes parecia tragicamente deslocada ("salvos do quê?"), agora torna-se premente: se Cristo não me salva do diabo que me trespassa e me assa na brasa, como nas pinturas de Hieronymus Bosch, do que me salva? O argumento predominante nos últimos séculos de reflexão, catequese e pregação cristã refere-se à linguagem do "sentido": do humano, da existência, da história. O ser humano, afirma-se, resolveu (mais uma vez: no mundo rico) alguns problemas fundamentais da sobrevivência e da autodefesa da natureza.
Hoje sabemos que, ao fazer isso, ele produziu outras ameaças mortais, mas isso não deveria impedir avaliar o significado cultural da vitória, por uma parcela, reduzida, da humanidade, sobre a angústia decorrente da necessidade de se alimentar, de curar algumas doenças, de obter condições materiais de vida menos miseráveis do que aquelas normais em outros tempos.
A clássica narrativa apologética, no entanto, considera que a nova riqueza não pode satisfazer a questão básica sobre o sentido da existência humana.
Pelo contrário, paradoxalmente, a radicaliza, porque a satisfação de necessidades primárias torna urgentes aquelas mais "elevadas", relativas, justamente, ao universo existencial. Nesse ponto, reaparece o vocabulário da salvação: já que a pergunta de sentido tem um alcance infinito, e já que pelo menos a morte constitui a ameaça radical de insensatez em relação a tudo o que vive, a salvação é a oferta de um sentido primeiro e último, que só pode ser dado em Deus e que é historicamente encarnado na pessoa de Jesus.
É supérfluo explicar que não se trata de uma proposta radicalmente nova, pelo contrário, constitui a releitura de uma vertente clássica e riquíssima do pensamento e da vivência cristã, expressa em termos paradigmático pelo Paulo de Lucas em Atos 17,23: o anúncio cristão intercepta a pergunta constituída pelo próprio ser humano e fornece a única resposta digna desse nome, por ser constituída pela realidade de Deus, que realiza seu próprio projeto criativo. Trata-se de uma realização escatológica, mas antecipada em Jesus: a fé nele permite, em formas parciais, mas densas de realidade, viver já agora, na fé, a plenitude do tempo final. A salvação, portanto, já está presente e ainda não realizada, segundo uma estrutura de pensamento, formulada por Oscar Cullmann, amplamente utilizada na segunda meados do século XX e ainda hoje atual.
Essa tentativa de tradução merece absoluto respeito:
a) por suas profundas raízes tradicionais;
b) devido ao fato de que a maioria da pregação do cristianismo dominante (ou pelo menos: que tal era no século XX e início do século XXI) no Norte do mundo foi por ele orientada;
c) porque, de fato, permitiu e permite falar de Cristo no mundo secular.
Subsistem, entretanto, três objeções importantes.
A primeira é interna à própria lógica do projeto. Ela gira em torno da percepção, pelo ser humano, do caráter problemático da própria finitude. O que dizer, porém, se o sujeito o humano aceita essa finitude mortal e aprende a viver em termos não trágicos a ausência de um sentido na realidade e na própria vida? E o que dizer se, para as grandes perguntas que a tradição considera metafísicas (quem somos? de onde viemos? para onde vamos?), responde-se simplesmente: sou João da Silva, venho de casa e vou para o escritório? A lúcida tentativa de enfrentar com dignidade e sem nenhuma perspectiva de "salvação" uma existência entendida como trágica e desprovida de sentido cruza, afinal, toda a cultura ocidental (e não só: mas me limito a ela por motivos de competência),
Para nos limitarmos a um exemplo conhecido de todos, poderíamos evocar a Ginestra de Leopardi: um simples sobressalto do exterminador Vesevo manifesta, em todo o seu poder devastador, a capacidade destrutiva de natureza indiferente a destinos e valores; isso não impede que a frágil flor viva e espalhe o seu perfume. Em outras palavras: órfã da ilusão de um Sentido com letra maiúscula, a humanidade é chamada a construir e desfrutar de pequenos fragmentos de um sentido que ela mesma determina, bem ciente do fato de que também eles estão destinados à anulação. Não necessariamente, dizem muitos, a morte do Significado se traduz em niilismo.
A estratégia religiosa comumente adotada consiste na tentativa de demolir esse resultado: o ser humano acredita que aprendeu a viver sem a necessidade de sentido, mas está errado. É necessário mostrar que ele, quer saiba ou não, está na areia movediça de uma existência que o oprime e o engole matando suas potencialidades; quando tiver compreendido a profundidade de sua própria aflição, se poderá anunciar a ele Cristo como evento de salvação.
Novamente: provavelmente não é inteiramente justo limitar-se à mera caricatura desse esquema argumentativo, para depois colocá-lo no mesmo plano da conversa enroladora do vendedor de seguros, que tenta convencer de que a tua casa e o teu carro, em perfeito estado de funcionamento, poderiam literalmente explodir a qualquer momento, a fim de vender a apólice. Permanece fato de que a avaliação de Bönhoeffer, agora com oitenta anos, pesa como uma pedra: a tentativa de corroer a coragem secular com que o sujeito humano tenta viver uma existência desprovida de sentido, apenas para depois se apresentar com o deus ex machina da religião, resulta teoricamente fraca e moralmente duvidosa.
A segunda objeção à releitura do tema da salvação na linguagem do sentido é formulada pelas teologias da libertação. Elas apontam que os problemas de sentido são característicos dos opressores, enquanto os homens e mulheres oprimidos ainda devem lutar para se emancipar da escravidão das necessidades básicas. Vale para o Sul do mundo, mas também para o Norte, como evidenciaram as teologias de gênero e aquelas elaboradas por negros. Esse conjunto de orientações teológicas busca elaborar uma noção de salvação que a conecte à emancipação terrena, no quadro de um primado da dimensão política, entendendo o adjetivo no seu sentido mais amplo.
A terceira objeção vem do mundo cristão que é comumente definido como “evangélico”.
Simplificando um pouco, pode-se afirmar que rejeita o pressuposto segundo o qual a ameaça do diabo e do inferno deveria ser considerada obsoleta. Tal ideia, afirma-se, é consequência da autossecularização do cristianismo; aliás, é ela própria um instrumento do diabo para perseguir seus próprios fins. Em vez de se perder em especulações filosóficas sobre o sentido da vida ou, pior ainda, aderir a ideologias políticas deste mundo, as igrejas deveriam simplesmente anunciar que as potências do inferno estão à espreita hoje como no passado e que somente Cristo, assim como esses setores o pregam, pode nos libertar. Independentemente de como se pense sobre esse tipo de anúncio (e quem escreve não tem uma opinião muito positiva), deve-se reconhecer que nele a noção de salvação possui um imediatismo que não se encontra em nenhum outro lugar.
As notas anteriores traçam grandes trajetórias espirituais em termos altamente esquemáticos: é evidente que os processos reais são muito mais complexos e menos reconduzíveis àqueles que Max Weber chamava de "tipos ideais". Mas quem tentou, por exemplo como catequista, propor aos jovens do século XXI o que é classicamente chamado de "mensagem de salvação" terá podido constatar o desaparecimento de pressupostos outrora indiscutíveis. A indisponibilidade de uma ideia considerada compartilhada de pecado ou danação torna problemático falar de "salvação", que inevitavelmente é "de" alguma coisa.
No século XX, o teólogo protestante Karl Barth formulou uma tese que poderíamos resumir nestes termos: não é a salvação que se compreende a partir do pecado, mas somente quem encontra a salvação compreende a realidade do pecado. Nessa perspectiva, a igreja não é obrigada a pressupor a conscientização dos seres humanos de se encontrar com água no pescoço; menos ainda é chamada a despertá-la, convencendo-os a todo custo de que, quando se julgam saudáveis e essencialmente felizes, são na verdade vítimas de sabe-se lá que alienação. A tarefa eclesial é, num certo sentido, mais simples: trata-se de contar a história de Jesus, cada vez de uma maneira nova, na situação dada. É essa história que define o que é salvação, ou seja, uma vida orientada para as possibilidades que Jesus afirma oferecer (e o Novo Testamento reforça: não apenas as oferece, mas as encarna) de parte de Deus.
Essas possibilidades dizem respeito a esta vida, nas suas relações com as outras e com os outros, tanto no plano individual quanto no plano político; dizem respeito aos limites e às contradições do humano, defendendo a possibilidade não de eliminá-los, mas de enfrentá-los e atravessá-los, apesar dos fracassos; dizem respeito à consciência de que o ser humano não coincide com a sua capacidade de realização, ou seja, que o ser é mais do que o fazer. Acima de tudo, a história de Jesus quer afirmar que a identidade do ser humano, aquilo que todos dizem buscar, não reside no próprio ser humano, mas no olhar daquele a quem Jesus chama de "Pai" e em cujo nome afirma falar.
Sempre de acordo com a história de Jesus, essas possibilidades são compreensíveis em sua força apenas a partir do fato de que Deus se identificou com o homem que as anunciava e precisamente o fez ressuscitando-o dentre os mortos. A história de Jesus fala de uma plenitude de vida que vai além da morte.
Mas por que se "deveria" acreditar nessa história? É a eterna pergunta de toda apologética, a qual acredita que "os outros e as outras", especialmente se modernos, secularizados, pós-alguma coisa, devam ser mais céticos do que nós. Disso a busca neurótica de razões que deveriam convencer esses incrédulos impenitente.
Talvez aqueles que dizem querer contar a história de Jesus como a história de Deus no mundo poderiam partir de outras três perguntas:
a) Eu acredito no protagonista dessa história?
b) O que significa, nesse contexto, "crer"?
c) Por que razões eu creio?
Se as perguntas forem feitas com seriedade, as respostas que damos a nós mesmos podem, com serenidade, ser anunciados também ao nosso mundo, verdadeira ou supostamente incrédulo. "Salvação" é algo desse tipo.
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Entre Deus e o diabo. Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU