06 Junho 2023
"As raízes cristãs russas estão, portanto, na atual Ucrânia, que no início mantém laços com Constantinopla, mas depois os afrouxa progressivamente. A maioria dos metropolitas de Kiev são gregos, desde o primeiro em 1039 (Theopemptòs, 'enviado por Deus') ao doutor Isidoro, que adere à efémera união com Roma decretada em 1439 pelo Concílio de Florença e torna-se 'o cardeal ruteno'", escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani, 04-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na guerra desencadeada pela agressão russa na Ucrânia há também uma componente religiosa fratricida. De fato, na sua maioria russos e ucranianos pertencem à tradição cristã ortodoxa, mas mesmo dentro da própria Ucrânia, as divisões são profundas entre aqueles pertencentes ao patriarcado de Moscou e aqueles ligados ao de Constantinopla.
Na verdade, os ortodoxos ucranianos já estão divididos há tempo e a guerra exacerbou o conflito. A sintonia do patriarca de Moscou com Putin e o contraste com Constantinopla provocaram sérias divergências na ortodoxia mundial, e já em 2016 o fracasso do concílio pan-ortodoxo de Creta. Agora o conflito se reacendeu sobre o complexo monástico da Lavra das grutas em Kiev, lugar simbólico tanto para os ucranianos quanto para os russos.
De fato, aconteceu na Rus' de Kiev o batismo cristão da Rússia do qual se celebrou em 1988 o milênio, quando as comemorações também contaram com a presença de representantes do Papa de Roma, o polonês João Paulo II, que conhecia bem aquele mundo.
Um texto medieval, a crônica de Nestor intitulada A Narrativa dos Anos Passados, resume em uma sugestiva história de sabor lendário, a escolha religiosa de Volodymyr, príncipe pagão de Kiev.
Seus enviados, encarregados de informar sobre os vários monoteísmos, de fato falam do esplendor deslumbrante das liturgias de Constantinopla. “Vimos onde eles oficiavam em honra de seu Deus, e não sabíamos se estávamos no céu ou na terra: não existe na terra um espetáculo de tamanha beleza, e não conseguimos descrevê-lo; apenas isto sabemos: que ali Deus coexiste com o homem, e que seu rito é melhor que o de todos os países”.
As raízes cristãs russas estão, portanto, na atual Ucrânia, que no início mantém laços com Constantinopla, mas depois os afrouxa progressivamente. A maioria dos metropolitas de Kiev são gregos, desde o primeiro em 1039 (Theopemptòs, "enviado por Deus") ao douto Isidoro, que adere à efémera união com Roma decretada em 1439 pelo Concílio de Florença e torna-se “o cardeal ruteno". Os bispos, porém, são principalmente eslavos e – explica Giovanni Codevilla em seu monumental História da Rússia (Jaca Book) – é precisamente a adoção do eslavo eclesial a favorecer o afastamento dos russos de Constantinopla.
Cinco anos antes da capital bizantina cair nas mãos dos turcos, a igreja em Moscou se proclama em 1448 autocéfala, ou seja, independente, separando-se de Constantinopla. Mais tarde, do final da Idade Média aos setenta anos soviéticos, a história da Ortodoxia Ucraniana se entrelaça com aquela da Rússia. Invadida pelos mongóis, durante séculos a Ucrânia foi depois disputada por um Ocidente dominado por poloneses e lituanos de um lado e pelo oriente moscovita do outro.
Já esmagada sob o domínio turco, na "nova Roma" quista por Constantino é elaborada a ideologia de Moscou como "terceira Roma". Essa visão ambiciosa acompanha em 1547 a coroação do primeiro czar, Ivan IV, o Terrível, e em 1589 a criação do patriarcado russo que se impõe à Ucrânia.
Olhando para Roma, se separa da ortodoxia de Moscou uma parte dos ucranianos de rito bizantino (chamados rutenos), mas essa união com o catolicismo romano, aprovada em 1596 pelo sínodo de Brest, tem história conturbada: não só é contestada pelos russos, mas também pelos poloneses que querem latinizar os uniates, como são chamados desdenhosamente.
Na época da revolução, e mais ainda com a Segunda Guerra Mundial, o regime soviético e o patriarcado de Moscou concedem aos ortodoxos ucranianos uma certa autonomia. Depois, em 1946, os greco-católicos ucranianos são brutalmente eliminados e suas propriedades passam para os ortodoxos. Para animar resistência à ditadura soviética permanecem apenas os greco-católicos, entre os quais o metropolita Josyf Slipyj.
Preso e confinado por trinta anos na Sibéria, em fevereiro de 1963 foi libertado e exilado para Roma. Sessenta anos atrás, o caso inspirou Morris West, que no papel de Pietro imagina tornar papa o Cardeal Ucraniano Kiril Lakota, torturado como Slipyj e interpretado por Anthony Quinn no filme As sandálias do pescador.
Por cortesia ecumênica para com a ciumenta ortodoxia russa, no entanto, Roma não concede aos greco-católicos ucranianos o cobiçado patriarcado, mas apenas um "arcebispado maior", mesmo que Slipyj e seus dois primeiros sucessores sejam nomeados cardeais. Isso não acontece com o atual, Svjatoslav Ševčuk, orgulhoso defensor das razões ucranianas, que Bergoglio também conhece desde os tempos de Buenos Aires. Mas se os católicos do rito bizantino estão unidos contra Moscou, em relação ao patriarcado russo a ortodoxia ucraniana está profundamente dividida.
Desde o Império Bizantino, a ligação entre o poder político e o poder religioso (“sinfonia”) tem sido muito estreita e é igualmente forte nas igrejas ortodoxas o enraizamento nacional, que se acentuou na era dos nacionalismos. Não é por acaso que em 1872 um sínodo pan-ortodoxo condena os excessos nacionalistas do “filetismo” (do grego phylè, “tribo”), ainda que a fragmentação da galáxia ortodoxa torne quase impossível decidir quem seja responsável por essa tendência tachada de herética.
Após a queda da União Soviética, a Ucrânia se torna independente e muitos ortodoxos ucranianos começam a olhar para Constantinopla: fatos insuportáveis aos olhos de Kirill, o poderoso patriarca de Moscou, mais inspirador que "coroinha" de Putin, segundo a contundente definição do papa de Roma, certamente não hostil aos russos.
Hoje os ortodoxos estão divididos em três igrejas (uma pró-russa e duas que apoiam Kiev), mas – explicou Marta Dell'Asta, que dirige a revista especializada "La Nuova Europa" - as controvérsias atuais "não surgem tanto de visões conflitantes quanto de ciúmes e dependência políticas".
O confronto agora se intensificou em relação ao mosteiro das grutas de Kiev. Esse lugar simbólico ligado à origem da Rus' - um enorme complexo que inclui edifícios comerciais ilegais geridos por monges, justamente acusados de colaboracionismo pró-russo - foi de fato retirado pelo governo ucraniano dos ortodoxos ligados a Moscou e atribuído aos da igreja autocéfala, cuja independência o patriarcado de Constantinopla reconheceu em 2019.
Mas isso arrasta muitos fiéis e parte do clero para um conflito que “segue mais uma vez os moldes da velha imagem de uma ortodoxia política e nacional”, apesar da oposição de numerosos intelectuais ortodoxos, não apenas na Ucrânia.
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Fé, tradição e política. Na Ucrânia também está sendo travada uma guerra fratricida entre ortodoxos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU