13 Mai 2023
"Durante anos, o Sudão contou com uma exploração cada vez mais implacável da terra e da mão-de-obra, bem como da importação de combustível e maquinaria. Grande parte de sua escassa moeda estrangeira é usada para importar trigo para pessoas abastadas nas cidades – até recentemente, o produto era fortemente subsidiado. Esta é uma das economias alimentares mais disfuncionais do mundo, agora à beira do colapso", escreve Alex de Waal, pesquisador africanista, em artigo publicado por London Review of Books e republicado por Outras Palavras, 11-05-2023. A tradução é de Antonio Martins.
A capital do Sudão, Cartum, está sendo destruída em uma luta mortal entre dois generais corruptos e brutais. Esta é uma guerra anunciada; permitir que acontecesse foi um fracasso da diplomacia internacional. Mas se examinarmos os duzentos anos de história da cidade, o conflito não dever ser visto como uma surpresa. Cartum foi fundada como um posto de comando construído para fins de saque imperial – e todos os regimes subsequentes continuaram esta prática. Em circunstâncias normais, o Sudão é governado por uma casta de comerciantes e generais que saqueiam as pessoas de pele mais escura das terras altas e levam sua riqueza para Cartum, uma cidade relativamente opulenta e um paraíso de tranquilidade. Mas a lógica da cleptocracia é inexorável: quando o cartel vai à falência, os mafiosos disputam. Vimos isso na Libéria e na Somália trinta anos atrás. O saque do Estado sudanês hoje é dez vezes maior.
Mapa político do Sudão (Fonte: Wikimedia | Creative Commons)
Cartum foi fundada em 1821 na junção dos dois Nilos – o Nilo Branco, que nasce na África Equatorial, e o Nilo Azul, de fluxo rápido, que provoca inundações sazonais das terras altas da Etiópia. No ponto onde os rios convergem, bem em frente ao moderno prédio do Parlamento, e por alguns quilômetros rio abaixo, as águas marrom-claras e azuis correm uma paralela à outra, sem se misturarem. O local foi escolhido por Ismail Kamil ‘Pasha’, filho de Muhammad Ali, quediva [príncipe] do Egito, que despachou um exército para conquistar o que hoje é o Sudão. Ele também autorizou um bando multinacional de bandoleiros a vagar por onde quisessem, desde que o Cairo compartilhasse os lucros. Durante seis décadas, Cartum foi um posto avançado do voraz capitalismo de fronteira do século XIX: um entreposto comercial e de escravos para a devastação do Vale do Alto Nilo.
As Forças Armadas Sudanesas (SAF) – o exército do governo, que agora luta por sua sobrevivência contra as Forças de Apoio Rápido (RSF) paramilitares – são também o país em miniatura. O colégio militar colonial foi construído perto de Karari, local da última resistência dos mahdistas contra os britânicos: há um monumento aos 22 lanceiros que morreram na última carga de cavalaria do exército britânico, mas nenhum para os 11.000 mahdistas abatidos por tiro de metralhadora. Karari é agora o local da base aérea de Wadi Sayidna, de onde os estrangeiros foram transportados de avião para a segurança. O principal aeroporto, no centro da cidade, tornou-se uma zona de batalha. O exército colonial incluía um corpo de camelos, o batalhão Equatoria, criado a partir de etnias do sul e batizado com o nome da região – na tradição da escravidão militar –, bem como um quadro de oficiais selecionados a partir elite social das cidades ao longo do Nilo.
Na independência, os descendentes desses oficiais viam-se como os guardiões da nação. Os líderes dos golpes do Sudão – três bem-sucedidos e treze fracassados nos primeiros vinte anos de independência – incluíram conservadores, nasseristas, comunistas e islâmicos. Em algumas ocasiões em que suboficiais das periferias tentaram tomar o poder, suas tentativas foram denunciadas como “racistas” por seus superiores de pele mais clara. Várias tentativas de golpe chegaram perto de desencadear uma guerra civil na capital. Quando os islâmicos tomaram o poder em um golpe sem derramamento de sangue em 1989, eles desconfiaram da política do exército, bem como de seu esprit de corps de bebedores contumazes, e criaram as Forças de Defesa Popular como contrapeso. Dez anos depois, em 1999, o movimento islâmico se dividiu, levantando temores de confrontos armados em Cartum, mas em vez disso as disputas de poder intra-islâmicas deslocaram-se para Darfur.
Cartum travou guerras no sul do país entre 1955 e 1972 e novamente entre 1983 e 2004; esses conflitos também permitiram a extorsão por oficiais do exército e comerciantes. As guerras finalmente terminaram com um acordo de paz em 2005, após o qual o Sudão do Sul optou pela secessão, num plebiscito há doze anos. Com ele se foi a maior parte dos campos petrolíferos e a receita em que os comerciantes de Cartum se tornaram viciados. A essa altura, Darfur também havia se rebelado, após décadas de negligência durante as quais foi explorado por Cartum como uma espécie de bantustão para mão-de-obra migrante barata. Os generais de Cartum patrocinaram uma contrainsurgência barata, reunindo as tribos árabes no oeste e autorizando-as a repetir em Darfur a pilhagem, o estupro e a fome que haviam sido usados contra o sul. Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como “Hemedti”, ou “pequeno Mohamed” por seu comportamento juvenil, estava entre os mais capazes dos comandantes juniores desta milícia, denominada Janjaweed. Sua ousadia no campo de batalha, seu relacionamento familiar com suas tropas e sua perspicácia nos negócios chamaram a atenção do presidente Bashir.
Mas Hemedti não foi conquistado de forma barata. Em 2008, irritado com a maneira como ele e seus homens foram usados para o trabalho sujo em Darfur e depois deixados de lado com meses de salários não pagos, ele se retirou para o mato e jurou lutar contra Bashir “até o dia do Juízo”. Ele tomou emprestada sua retórica dos rebeldes de Darfur, contra os quais vinha lutando, e de ex-milícias descontentes que se autodenominavam “os soldados esquecidos”. Alguns meses depois, Cartum ofereceu-lhe um acordo – dinheiro, promoção, empregos para seus parentes – e ele voltou ao redil. Dinheiro e tiroteios são moedas intercambiáveis no mercado político do Sudão, e Hemedti negocia com ambos. Em 2013, seis anos antes de ser derrubado, Bashir rejeitou as objeções de seu chefe de gabinete do exército e formalizou o papel do Janjaweed como a milícia paramilitar oficial do Estado, a ser conhecida como Forças de Apoio Rápido (RFS, na sigla em inglẽs). Ele concedeu o posto de general a Hemedti – cujo único treinamento havia sido o campo de batalha – e deu-lhe uma linha direta com o gabinete presidencial. À medida que os protestos de rua aumentavam em dezembro de 2018 e o regime de Bashir começava a balançar, ele convocou as unidades de Hemedti para a capital como sua força de proteção pessoal. Deveria ter avaliado melhor.
A RSF é agora uma empresa mercenária transnacional privada que alugou seus serviços aos monarcas do Golfo para lutar no Iêmen e tem negócios com o Grupo Wagner e com Khalifa Haftar, comandante do Exército Nacional da Líbia. É uma operação de mineração e comércio de ouro e o exército do império comercial em constante expansão de Hemedti. Se nos próximos meses Hemedti e o RSF prevalecerem na batalha por Cartum, o Estado sudanês se tornará uma subsidiária desta empresa transnacional. Hemedti não é da bem-educada “comunidade do Estado” de Cartum. E não devemos ser enganados por sua identidade como um “árabe” – há uma vasta divisão social entre as elites metropolitanas sudanesas, cujo arabismo mira o Egito, e as comunidades beduínas do Saara. Ele e seus homens são temidos e ridicularizados como bandidos analfabetos e mal-falantes. É verdade que os principais comandantes do RSF são do próprio clã árabe Mahariya de Hemedti, mas os soldados rasos são de várias tribos, unidos em sua convicção de que foram privados dos espólios do Estado. Como os sudaneses do sul, que votaram pela secessão, eles são súditos enfurecidos do império sudanês.
Há quatro anos, as ruas de Cartum foram palco de uma revolução cívica não violenta. Foi um intervalo extraordinário: a política sudanesa normal foi suspensa; um acampamento de cidadãos livres cresceu em torno do quartel-general do exército – a cidadela de seus opressores. Pintaram-se murais de libertação nas paredes e cantaram-se louvores a jovens oficiais do exército que romperam fileiras e ficaram com o povo. Esses ativistas não tinham nem as habilidades nem a capacidade de articulação política necessárias para levar sua revolução até o fim. Os doadores estrangeiros, que achavam mais fácil lidar com homens uniformizados e não percebiam a urgência de suspender as sanções, aliviar a dívida e socorrer a economia em colapso, não os favoreciam. Ao mesmo tempo, uma revolução paralela se desenvolvia: uma invasão furtiva de paramilitares provinciais. Por muitos anos, uma sucessão de radicais armados de todos os cantos do Sudão esperou libertar o país de sua história imperial. O mais proeminente foi John Garang, soldado dissidente, fundador e líder do Movimento de Libertação do Povo do Sudão. Após a morte de Garang em 2005, não havia ninguém de sua estatura para defender que um novo Sudão, transformado para beneficiar os historicamente oprimidos, era essencial. Hemedti entrou neste vazio revolucionário ao trazer as queixas de Darfur para Cartum e seu toque populista a um palco maior. O establishment foi incapaz de resistir porque havia se tornado muito corrupto.
Há um fio que possamos traçar até a era pós-independência, para chegar a uma explicação sobre o que está acontecendo em Cartum agora? Não há dúvida de que os sucessivos experimentos da modernidade foram sufocados pelo capitalismo de compadrio, informações privilegiadas, vantagens para os bem relacionados, um emaranhado de tráfico ilícito e artifícios contra anos de sanções, impostas por insistência de Washington.
Durante a década de 1970 – a “década do desenvolvimento” do Sudão – o Banco Mundial e os fundos de investimento árabes despejaram dinheiro no país, mas quando os pagamentos da dívida venceram, o ministro das Finanças descobriu que não havia uma conta central do que havia sido emprestado — de quem, para quê, ou o que acontecera com o dinheiro. Na década de 1990, o governo de Bashir imaginou um caminho para a modernidade islâmica, mas não conseguiu tomar empréstimos nos mercados internacionais e, em vez disso, começou a exportar petróleo. Essa sorte inesperada também não é contabilizada, mas a trama pode ser lida nas reluzentes torres de escritórios de corporações islâmicas conectadas à segurança – o que os sudaneses chamam de “Estado profundo”, embora não haja nada de discreto nelas.
O regime de Bashir construiu vastas barragens no Nilo, inundando aldeias milenares e gerando pouca eletricidade. Sua principal função era facilitar propinas para o partido no poder, que colocou milhões de sudaneses na folha de pagamento do Estado, sem pensar no descontentamento que se seguiria quando o Sudão do Sul optasse pela independência e a torneira do petróleo fosse fechada.
As terras agrícolas eram baratas, os trabalhadores ainda mais baratos, especialmente onde as aldeias haviam sido demolidas para fazendas comerciais ou incendiadas por milicianos. As árvores foram derrubadas, o solo cultivado por trabalhadores que recebiam uma ninharia para trabalhar na terra que havia sido sua. Grande parte da cultura principal, o sorgo, é agora exportada para alimentação animal. Durante anos, o Sudão contou com uma exploração cada vez mais implacável da terra e da mão-de-obra, bem como da importação de combustível e maquinaria. Grande parte de sua escassa moeda estrangeira é usada para importar trigo para pessoas abastadas nas cidades – até recentemente, o produto era fortemente subsidiado. Esta é uma das economias alimentares mais disfuncionais do mundo, agora à beira do colapso.
Habilidades políticas excepcionais eram necessárias para manter os chefes islâmicos da segurança e do exército, voláteis e rivais, sob controle. Bashir era famoso por saber de cor quem era quem de entre os oficiais do exército, os chefes tribais e os operadores do partido e seus familiares. Administrou tudo isso por quase trinta anos. A cabala que o derrubou não confiava em seu sucessor mais capaz – o chefe da segurança, Salah Abdallah Gosh – e montou um instável sistema de duas cabeças. Hemedti, o principal partidário do patricídio, era visto como uma figura muito polarizadora para assumir o cargo principal. Por isso, foi nomeado vice de um obscuro oficial do exército, Abdel Fattah al-Burhan, escolhido para liderar a coalizão militar e servir como presidente do Conselho de Soberania, ou presidente de fato.
As deficiências de al-Burhan não se limitam ao sua maneira desajeitada de falar em público. Ao contrário de Hemedti, ou antes dele Bashir, não tem sua própria fonte de dinheiro para lubrificar acordos políticos e foi forçado a pechinchar com os capitalistas militares e comparsas da velha guarda em decisões importantes. Mas a falha fatal no complexo militar-comercial de Cartum é que os cleptocratas terceirizaram sua luta. O exército é principalmente uma máquina para enganar o público e fazer desfiles impressionantes de tanques e aeronaves, enquanto o combate real é travado por milícias alugadas dirigindo SUVs Landcruiser personalizados. Hemedti entendeu isso melhor do que os graduados da academia militar, que semearam o vento em Darfur e agora estão colhendo o turbilhão na batalha por Cartum.
Aqueles entre nós que viveram e trabalharam no Sudão por décadas foram inspirados pelo levante civil e passaram a confiar em seus defensores sem liderança central, muitos deles mulheres. Muitas vezes mordi os lábios, por não querer diminuir o otimismo dos ativistas pela democracia. O pior já aconteceu. Hemedti tomou como reféns as famílias dos membros do SAF e poucos duvidam que ele teria qualquer escrúpulo em assassiná-las. Generais das SAF e islâmicos da velha guarda ameaçam abertamente matar Hemedti e aqueles que teriam colaborado com ele. Os combatentes de Hemedti saqueiam casas e lojas, enquanto os caças a jato de al-Burhan os bombardeiam do ar. Agora que a maioria dos estrangeiros deixou o país, suprimentos e reforços para ambas as partes estão chegando; a batalha está fadada a aumentar. Esta é a revolução que ninguém queria.
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Sudão: tragédia na periferia do capitalismo. Artigo de Alex de Waal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU