Ex-comandante guerrilheira, Mónica Baltodano visita o Brasil e denuncia a ditadura do casal Ortega na Nicarágua. “A população vive sob terror. A Nicarágua é uma imensa prisão”, relata
“A maior parte da população da Nicarágua continua abaixo da linha da pobreza”, denuncia Mónica Baltodano, ex-guerrilheira sandinista, expulsa de seu país em 2021 pelo atual governo, comandado por Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo. Segundo a entrevistada, “desde que retornou ao governo em 2007, Ortega construiu uma ditadura com controle total de todos os outros ramos do Estado e das Forças Armadas”, e criou uma situação de repressão absoluta. “A população vive sob terror. A Nicarágua é uma imensa prisão. Não há direito a nada. Ainda hoje capturaram jovens por tentarem realizar uma tradicional procissão religiosa. As pessoas têm medo de sair legalmente do país porque não sabem se poderão retornar. Os passaportes dos funcionários do Estado estão sob controle; eles não podem sair sem permissão. Os presos políticos estão em condições totalmente subumanas”, relata ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Militante desde os 15 anos de idade, Mónica Baltodano participou de lutas estudantis e sociais desde o fim dos anos 1960 e integrou a Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN. Atualmente, ela vive exilada na Costa Rica, depois de ter sido não só expulsa de seu país, mas também desnacionalizada e ter todos seus bens confiscados. “Quanto a nós, cidadãos que fomos condenados sem julgamento, com uma sentença inexistente na Constituição e nos códigos, tiraram-nos a nacionalidade, declararam-nos traidores da pátria, foragidos da Justiça e nos declararam inexistentes na Nicarágua. Não apenas nos declararam sem país, mas também apagaram nossos registros de nascimento, tiraram nossas aposentadorias ou nos apagaram do sistema de previdência social. As crianças estão mudando seus sobrenomes. Eles se apropriaram de todos os nossos bens, pessoais e imobiliários, nos deixando sem renda. Não existimos, não somos”, disse na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Nesta semana, Mónica Baltodano está no Brasil, denunciando a violação dos direitos humanos na Nicarágua, informando parlamentares e dirigentes sociais e políticos sobre a situação de seu país natal, como a suspensão de todas as garantias democráticas, da liberdade de informação, de pensamento, de organização, de religião, de reunião, de expressão e mobilização, que culminou com a expatriação de 317 nicaraguenses.
Ela narra como Ortega se converteu em um ditador cruel e repressivo. “Ortega começou controlando as organizações populares filhas da revolução. Sindicatos, organizações camponesas e comunitárias. Fez isto cooptando os dirigentes com cargos, os quais conseguiu através de um pacto com o corrupto presidente Arnoldo Alemán, em 1999. Mas também através da distribuição de propriedades que supostamente pertenciam a grupos de trabalhadores e acabaram nas mãos de partidários de Ortega. Em outras palavras, surgiu uma burguesia Ortega (me recuso a chamá-la de sandinista porque ofenderia nosso herói Augusto Sandino). Isso explica por que todas as políticas extrativistas, neoliberais e entreguistas não encontram resistência popular. Quando Ortega voltou à presidência, não restou nada, ideais, valores e programa”, lamenta.
Mónica Baltodano (Foto: Reprodução | La Prensa Nicarágua)
Mónica Baltodano é historiadora. Foi prisioneira da ditadura de Somoza e torturada em 1977 e 1978. No ano seguinte, foi comandante da guerrilha sandinista e, no governo revolucionário, ocupo os cargos de vice-ministra da Presidência e ministra de Assuntos Regionais na década de 1980. Publicou quatro volumes intitulados “Memorias de la lucha sandinista” e outros textos, disponíveis em www.memoriasdelaluchasandinista.org.
Na sexta-feira, 14-04-2023, ela estará em Porto Alegre ministrando a palestra “Nicarágua. Da revolução sandinista ao giro autoritário de Daniel Ortega”. O evento é aberto à comunidade e ocorre na Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, às 18h30. Ela também irá se encontrar com parlamentares e dirigentes de esquerda e visitará a escola de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, em Águas Claras, Viamão.
No sábado, 15-04-2023, participará de um encontro do Fórum Ecumênico Inter-religioso, na Paróquia do Redentor, bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Depois, visitará o Seminário Estadual das Comunidades Eclesiais de Base, no Salão da Comunidade São Roque, Parque Mauá, em São Leopoldo.
Ela estará no Rio de Janeiro, em 17 de abril.
Mónica Baltodano está no Brasil por iniciativa do Comitê de Solidariedade com a Nicarágua e do Movimento Esquerda Socialista – MES.
IHU – Ainda antes de iniciarmos a entrevista propriamente, gostaria que a senhora explicasse o que é a Nicarágua para quem não conhece o país. Do que se vive nesse lugar? Como o país está em termos de desenvolvimento econômico e social?
Mónica Baltodano – A Nicarágua é o segundo país mais pobre de toda a América Latina, depois do Haiti. Ingressou na produção capitalista como exportadora de café no final do século XIX. A partir de então, como boa parte da região, passou de uma economia agroexportadora – extensiva e predadora do meio ambiente – para um modelo de substituição de importações, aplicando as receitas da onda neoliberal e do Consenso de Washington, após a derrota eleitoral que culminou com a Revolução Sandinista em 1990.
Os principais produtos de exportação ainda são primários: café, carne, açúcar, camarão e lagosta e, agora, ouro. Atualmente, as remessas familiares (remessas da população migrante) são iguais a todas as exportações. Outra parte quase igual da produção é feita pela atividade das maquiladoras [fábricas responsáveis pelo processo de transformação inicial de um produto, que só será finalizado em outro país; beneficiam-se de custos trabalhistas mais baixos e isenções fiscais, o que permite serem competitivas no mercado internacional].
A maior parte da população da Nicarágua continua abaixo da linha da pobreza. Temos uma população de apenas seis milhões de habitantes, a maioria com menos de 30 anos.
IHU – Como a senhora classifica o modo como Daniel Ortega tem conduzido o governo na Nicarágua?
Mónica Baltodano – Desde que retornou ao governo em 2007, Ortega construiu uma ditadura com controle total de todos os outros ramos do Estado e das Forças Armadas. O grau de controle autocrático é sultânico, porque controla todos os poderes com mão de ferro, sem nenhum tipo de democracia. Em particular, há os policiais que são os responsáveis diretos pela repressão e cumplicidade do Exército. Para isso, baseia-se em métodos mafiosos: reeleição indefinida dos comandantes a ele subordinados; vantagens e privilégios, ameaças, chantagens. Medo.
IHU – Como podemos compreender a transformação do Daniel Ortega que assume a presidência em 1979, ainda na Junta de Reconstrução Nacional, ao Ortega de 2023?
Mónica Baltodano – Em 1979, ele fazia parte de um Conselho de Administração de cinco membros. Em 1985, como resultado das primeiras eleições da Revolução, chegou à Presidência. As principais decisões eram então tomadas pela direção política da revolução, sob formas colegiadas. Isso limitava seu comando. Além disso, estávamos tentando construir uma democracia popular na revolução. É verdade que foram tomadas decisões questionáveis, por exemplo, contra a liberdade de imprensa, mas estávamos perante uma guerra contrarrevolucionária financiada pelos Estados Unidos.
Agora, Ortega foi reeleito inconstitucionalmente (2011) e depois por fraudes claramente demonstradas em 2016 e 2021. Desde 1979, o único candidato da Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN é Ortega: 1984, 1990, 1996, 2001 e 2006, 2011, 2016, 2021.
Desde 1990, a mutação de Ortega começou por centrar todos os seus esforços no poder que então exercia, controlando os dirigentes das organizações populares, negociando com o governo, a seu favor, e não a favor das demandas que o povo levantava. Mais tarde, ele passou a controlar totalmente a FSLN, da qual foi o único secretário-geral, e, depois, a controlar o poder do Estado. Essa mutação se explica por sua obsessão pelo poder, pelo messianismo. Quando ele e sua família se tornaram capitalistas, donos de grandes recursos, passaram a usar o Estado para defender seus interesses materiais. A FSLN se tornou, agora, um mero aparato a serviço do caudilho.
IHU – Gostaria também que a senhora analisasse a conjuntura da Nicarágua que levou Daniel Ortega ao poder em 1979.
Mónica Baltodano – Desde a independência em 1821, o processo de construção do Estado Nacional foi difícil, dominado por elites muito atrasadas que sempre travaram guerras sangrentas. Sofremos com senhores da guerra agarrados ao poder. A ditadura da família Somoza, apoiada pelos Estados Unidos, governou a Nicarágua por 40 anos. Para acabar com isso, foi necessária a luta armada. O povo apoiou essa luta nos últimos anos até produzir uma insurreição vitoriosa, a de 1979, que foi a última revolução armada no continente. Ortega então não era o líder dessa revolução. O principal líder era Carlos Fonseca, que caiu no final de 1976.
Outros comandantes tiveram participação mais relevante, mas Ortega, agora, constrói o mito de que foi ele o artífice dessa façanha. Uma grande mentira. Ortega nem sequer estava na Nicarágua depois que foi libertado da prisão em 1974. Voltou ao país quando tínhamos triunfado.
IHU – Como ocorreu a formação da Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN e quais seus principais agentes? Como a FSLN tem se posicionado hoje?
Mónica Baltodano – A FSLN foi fundada em 1961 por Carlos Fonseca. No início, teve muitos contratempos. Mística e coragem foram essenciais para sustentar a FSLN e, na década de 1970, ela conseguiu dar saltos de qualidade ao focar no trabalho em bairros e comunidades, com o apoio de comunidades cristãs. Em seguida, realizou ações espetaculares (como o sequestro de somocistas [apoiadores da ditadura nicaraguense] para libertar todos os prisioneiros sandinistas). Iniciou-se um debate sobre o cenário. No final, ficou demonstrado que tínhamos que apostar no trabalho urbano e na insurreição nas cidades, coisas que nos levaram à vitória.
A FSLN propôs um programa de mudanças profundas. O movimento era portador de valores e princípios humanistas que buscava a democracia e tinha um profundo compromisso com a liberdade.
Aquela FSLN não existe mais. Ortega esvaziou-a de seu programa de transformação. Os ideais foram pisoteados. E, em nome de muitas mentiras, a FSLN passou a fazer parte de uma máquina repressiva que espiona os vizinhos, denuncia quem pensa diferente, tem alimentado grupos de fanáticos e paramilitares que invadiram as manifestações, agrediram manifestantes e foram capazes de atirar em jovens e em crianças nos protestos.
IHU – A Igreja teve uma participação significativa na queda de Anastasio Somoza. Como a senhora participou desse processo? No atual contexto, acha que a Igreja demorou para se posicionar com relação a Daniel Ortega? Por quê?
Mónica Baltodano – Por muito tempo a hierarquia católica apoiou Somoza. Mas já no final da década de 1960, começou a ter uma posição crítica. É verdade que sempre houve padres e até bispos que apoiaram Somoza, mas também surgiu uma Igreja popular, inspirada na teologia da libertação, que acompanhou as lutas populares, e padres que até se tornaram guerrilheiros, como Gaspar García Laviana, que caiu na luta, ou Ernesto e Fernando Cardenal, e tantos outros.
O chefe da hierarquia católica, Obando y Bravo, embora tenha desempenhado um papel de mediador em muitos momentos, nos anos da revolução se voltou contra ela. Ele apoiou a contrarrevolução. Mas depois das mutações de Ortega, ele fez uma aliança com o caudilho já nos anos 2000... O novo hierarca, cardeal dom Leopoldo José Brenes Solórzano, tem tido uma posição de cumplicidade. Durante a crise de direitos humanos iniciada em 2018 (na qual o governo assassinou mais de 300 pessoas), a hierarquia teve um papel facilitador, mas agora está muito dividida. Dom Leopoldo Brenes e outros bispos permanecem em silêncio, silêncio cúmplice. Dom Rolando Álvarez está preso em uma cela de segurança máxima, condenado a 26 anos de prisão, enquanto mais de dez padres foram exilados, outros vinte tiveram que fugir para o exílio, outros não podem entrar. Pelo menos trinta padres são perseguidos.
IHU – Como podemos compreender a relação entre Ortega e sua família e a Igreja, desde a década de 1970 até hoje?
Mónica Baltodano – Devido ao seu desejo de poder, Ortega decidiu fazer um pacto com Obando y Bravo (líder da Igreja na época). Então ele se desculpou e casou-se com Rosario (isso foi depois da denúncia de estupro feita pela enteada de Ortega, depois que Rosario o apoiou contra essa denúncia). Em seguida, foi nomeado ministro da Reconciliação. O novo cardeal, dom Leopoldo Brenes, cooptado por algum tempo, decidiu permanecer em silêncio. Ele não disse uma palavra sobre as perseguições sofridas pela Igreja ou sobre as proibições de procissões e outras tradições religiosas, nem mesmo nesta Semana Santa.
IHU – Em que medida, para compreender a figura de Ortega, é preciso compreender a composição da FSLN? O quanto a FSLN se mantém quando da ascensão de Ortega ao poder?
Mónica Baltodano – Ortega começou controlando as organizações populares filhas da revolução. Sindicatos, organizações camponesas e comunitárias. Fez isto cooptando os dirigentes com cargos, os quais conseguiu através de um pacto com o corrupto presidente Arnoldo Alemán, em 1999. Mas também através da distribuição de propriedades que supostamente pertenciam a grupos de trabalhadores e acabaram nas mãos de partidários de Ortega. Em outras palavras, surgiu uma burguesia Ortega (me recuso a chamá-la de sandinista porque ofenderia nosso herói Augusto Sandino). Isso explica por que todas as políticas extrativistas, neoliberais e entreguistas não encontram resistência popular. Quando Ortega voltou à presidência, não restou nada, ideais, valores e programa.
IHU – O que traz Ortega ao poder novamente? E como podemos compreender sua manutenção no comando do governo nicaraguense?
Mónica Baltodano – Ortega fez um pacto para compartilhar todos os poderes. Por exemplo, a Corte Suprema de Justiça passou a ter 16 membros para poder distribuir oito magistrados para Ortega e oito para Arnoldo Alemán. Ortega também prometeu “governabilidade”. Ou seja, desmobilizar o povo organizado, que controla por meio de seus dirigentes. Já não existem mais marchas, manifestações e greves. Isso favoreceu o corrupto Arnoldo Alemán. Em troca, Alemán concordou em reduzir para 35% a porcentagem necessária para vencer as eleições no primeiro turno. O “pacto” dividiu os liberais. Aqueles que não concordaram formaram seu próprio partido. Assim, Ortega chegou ao governo com apenas 37,8% dos votos. Ele não precisava de um segundo turno.
Para as eleições seguintes, Ortega já conquistou parte da população com suas medidas patronais. Ele realiza muitas ações que obtêm apoio popular porque conseguiu um suculento acordo de petróleo com o governo venezuelano. Mas também já tem o controle total do Conselho Supremo Eleitoral. Então, não é mais preciso garantir votos; é preciso que os números sejam os que interessam. As eleições de 2016 e 2021 são claramente fraudulentas. Basta dizer que as de 2021 foram realizadas com todos os candidatos da oposição presos.
IHU – Que transformações na conjuntura nicaraguense ocorrem desde a deposição de Anastasio Somoza até 1990, quando Violeta Chamorro é eleita?
Mónica Baltodano – Durante a Revolução, ocorreram importantes transformações na estrutura fundiária, na distribuição das riquezas. Mudanças sociais importantes foram feitas: a alfabetização de uma população que, em sua maioria, não sabia ler nem escrever. Na saúde, as taxas de mortalidade infantil foram radicalmente reduzidas e a expectativa de vida aumentou. Também começou a ser construído um exército, pela primeira vez com caráter nacional e profissional. Recursos naturais explorados por transnacionais foram nacionalizados. Mas a guerra e o bloqueio devastaram a economia, e a situação se deteriorou rapidamente com uma enorme inflação e falta de bens de consumo.
Em 1990, começou a privatização de todos os serviços e recursos. Isso continuou aumentando e, no governo Ortega, sem resistência popular, atingiram-se limites impensáveis, pois nunca antes se entregaram concessões sem nenhum controle. Atualmente, mais de um terço da extensão territorial do país está concedido a mineradoras de diferentes nacionalidades, principalmente canadenses e norte-americanas, agregando facilidades legais e incentivos fiscais. O mesmo acontece com as concessões de pesca a transnacionais florestais espanholas. A luta comunitária pela defesa do meio ambiente é reprimida e silenciada. Comunidades indígenas, especialmente as das etnias Mayagna e Misquita, sofreram e sofrem ataques brutais até hoje.
IHU – Como é viver na Nicarágua hoje? Que relatos lhe chegam sobre a vida no país?
Mónica Baltodano – A situação de repressão é absoluta. A população vive sob terror. A Nicarágua é uma imensa prisão. Não há direito a nada. Ainda hoje capturaram jovens por tentarem realizar uma tradicional procissão religiosa. As pessoas têm medo de sair legalmente do país porque não sabem se poderão retornar. Os passaportes dos funcionários do Estado estão sob controle; eles não podem sair sem permissão. Os presos políticos estão em condições totalmente subumanas.
A imprensa independente não pode entrar na Nicarágua. Nem as Comissões de Direitos Humanos. Apenas as pessoas convidadas pelo governo podem entrar.
Acenar uma bandeira azul e branca da Nicarágua é um ato de protesto. Só eles [apoiadores do governo], em suas marchas, podem carregar a bandeira.
Quanto a nós, cidadãos que fomos condenados sem julgamento, com uma sentença inexistente na Constituição e nos códigos, tiraram-nos a nacionalidade, declararam-nos traidores da pátria, foragidos da Justiça e nos declararam inexistentes na Nicarágua. Não apenas nos declararam sem país, mas também apagaram nossos registros de nascimento, tiraram nossas aposentadorias ou nos apagaram do sistema de previdência social. As crianças estão mudando seus sobrenomes. Eles se apropriaram de todos os nossos bens, pessoais e imobiliários, nos deixando sem renda. Não existimos, não somos.
IHU – Sua história de vida é marcada por muita dor e luta pela libertação da Nicarágua. Pessoalmente, como se sente ao ver tudo que tem ocorrido?
Mónica Baltodano – Isso nos indigna e entristece porque o povo da Nicarágua já sofreu muito em sua história e porque tudo isso está acontecendo em nome da revolução sandinista, em nome dos meninos e meninas que deram suas vidas pela liberdade. Tudo está sendo feito usando oportunisticamente a história, dizendo que “isso é a esquerda”. Essas coisas me enfurecem muito. Mas os exemplos que o povo continua a dar ainda hoje, com sua rebeldia e decisão de mudar as coisas, também nos comprometem a seguir na luta.
IHU – Que caminhos devem ser construídos para uma outra libertação da Nicarágua?
Mónica Baltodano – O caminho escolhido é o da luta não violenta. Não queremos mais derramamento de sangue. Mas temos que encontrar novos caminhos, que passam sempre pela conscientização, formação política, organização do povo, para construir um programa que incorpore, necessariamente, a democracia integral (não só política, mas econômica), a soberania para construir nosso próprio caminho, sem interferência de potências estrangeiras. Isso não significa que não precisamos de solidariedade. Pelo contrário, a situação na Nicarágua exige o concerto das nações para isolar o regime de Ortega e construir uma transição democrática com eleições verdadeiramente livres, sem repressão, com todas as liberdades restauradas.
IHU – Como analisa esse avanço de uma extrema-direita pelo mundo, especialmente na América Latina? Já se conseguiu conter esse avanço na América Latina?
Mónica Baltodano – Quando o povo perde a esperança em projetos alternativos, isso permite o avanço da ultradireita, com suas propostas neoconservadoras, autoritárias e misóginas. O povo recorre ao providencialismo (concentra suas esperanças na providência, às vezes encarnada em personalidades rígidas). Devemos ser capazes de relançar propostas transformadoras e cumpri-las ao tornar-se governo, respeitando todas as liberdades.
IHU – Esse totalitarismo de Ortega pode abrir caminhos para o avanço de uma extrema-direita (ou mesmo um regime que flerta com o totalitarismo de direita) também na Nicarágua? Por quê?
Mónica Baltodano – É muito difícil para a direita nicaraguense ser totalitária devido aos contrapesos históricos que foram construídos. Mas, certamente, diante de Ortega, com sua retórica anti-imperialista e manipuladora do discurso de esquerda, muitos se confundem e pensam que não querem mais a esquerda nem o sandinismo. Isso favorece o apoio à liderança de direita. Mas temos sabido lutar pelas bandeiras da soberania, dos direitos humanos, dos direitos da natureza. O que precisamos é primeiro acabar com a ditadura e a opressão, e conquistar liberdades para continuar na luta, seja com o governo que for.
IHU – Em que medida a esquerda revolucionária foi capaz de avançar e compreender as questões do nosso tempo? O que precisa mudar e o que ainda precisa ser mantido na esquerda revolucionária no século XXI?
Mónica Baltodano – Sem dúvida, a esquerda deve abraçar todas as liberdades. Como disse Rosa Luxemburgo, sem liberdade todo o resto não faz sentido. Mas há bandeiras que vêm de novos problemas da humanidade. Diante do desastre e da predação, há os direitos da natureza. Diante da violência contra a mulher, o antipatriarcado. Diante dos novos colonialismos, os direitos dos povos originários. Mas a esquerda também deve abraçar a ideia de que os direitos humanos são inalienáveis e que, como disse o presidente Lula, os problemas da democracia só se resolvem com mais democracia.
IHU – A senhora vive na Costa Rica desde 2021, na condição de exilada. Como tem sido seu cotidiano? Como esses tempos têm mexido com suas memórias?
Mónica Baltodano – Agora que tudo nos foi tirado, vivemos com muito mais dificuldades. Continuo trabalhando, escrevendo e trabalhando intelectualmente para fazer minha parte nesta luta pela liberdade.
IHU – Hoje, para a senhora, ser revolucionário é...
Mónica Baltodano – Em primeiro lugar, continuar lutando pelos direitos humanos, pelos direitos das mulheres e pela reivindicação de um Estado laico. Continuar questionando a brutal concentração de riqueza que advém do capitalismo em sua fase atual, defendendo os direitos da natureza e rejeitando o extrativismo, defendendo o direito do campesinato a sua terra, e dos povos indígenas e afrodescendentes ao seu território, línguas e costumes. É continuar denunciando as grandes transnacionais, a privatização da saúde e reivindicando mais recursos para a educação e menos para a militarização.
Ser de esquerda é ser solidário com as lutas de outros povos, contra a opressão imperial ou local. No caso atual da Nicarágua, ser de esquerda também é ser firme na demanda por justiça para os mortos e vítimas do regime de Ortega.
Nicarágua. Da revolução sandinista ao giro autoritário de Daniel Ortega. (Cartaz: Divulgação)