17 Março 2023
Silvia Adoue, especialista argentina em Integração Latino-Americana, doutora em Letras pela Universidade de São Paulo e professora na Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil, defende que a luta pelas liberdades na Nicarágua deve estar vinculada à luta contra o extrativismo que está saqueando o país centro-americano.
Colaboradora de meios de comunicação de esquerda como Herramienta, Contrahegemonía, Rebelión e Tramas, Adoue concede uma entrevista à aliança de meios de comunicação Otras Miradas, dentro do projeto de jornalismo colaborativo Nicaragua: Sueños robados, do qual o Público faz parte.
A entrevista é de Gabriela Moncau, publicada por Público, 15-03-2023. A tradução é do Cepat.
Você argumenta que o anti-imperialismo de Daniel Ortega é retórico, já que integra a Nicarágua nas cadeias extrativistas do capital globalizado. Pode explicar isto?
A integração às cadeias de acumulação globalizadas não começa com Ortega. Faz parte da dinâmica do capital e das estratégias dos fundos de investimento para os territórios de toda a América Latina, de forma mais acelerada para os insumos da indústria 4.0. Isso vale para o mundo todo, inclusive para a África e a Ásia.
O ouro é a principal matéria-prima exportada pela Nicarágua. O segundo item são as camisetas de algodão, e depois vem o café e outros produtos, como o cabo elétrico. O principal destino das exportações nicaraguenses é os Estados Unidos. Nesse ranking, o segundo, terceiro e quarto lugares na lista são os países vizinhos. Por onze anos consecutivos, o FMI parabenizou o Governo pelo cumprimento de suas recomendações.
A retórica anti-imperialista é uma casca que lhes permite criar confusão com um discurso que não é acompanhado por políticas de Estado que visem a independência econômica. Ou que tentem romper com o capitalismo dependente e com outras formas de colonialidade em nossa região. As políticas do Governo Ortega-Murillo facilitam e estimulam a integração a estas cadeias de acumulação.
A extração de ouro é realizada pela empresa britânica Condor Gold S.A. e pela canadense Gold Corporation. As transnacionais controlam as cadeias, mas não são suas proprietárias: há uma série de empresas ou grupos intermediários que se beneficiam e facilitam essa cadeia, que é flexível. Ao final da cadeia, nos territórios, o que vemos é a exploração por espoliação e a destruição dos biomas.
Contudo, a cadeia do ouro não é a única. Sim, é a mais importante, em volume e em valores, mas existem outras como a do camarão na região do Pacífico. A grande operadora é a empresa espanhola Pescanova, mas também operam fundos de investimento de capital dos Estados Unidos. A Nicarágua é o país que mais explora e exporta camarão em toda a América Latina. Os destinos mais importantes são os Estados Unidos, Taiwan e Vietnã.
Isso ajuda a entender, inclusive, como funcionam os campos de matérias-primas, são campos que vão se expandindo e são muito dinâmicos. Um avança sobre o outro, ora coexistem, ora um se desloca do outro, conforme a velocidade das mudanças no capital financeiro, nas bolsas e na flutuação dos valores dessas mercadorias. A exploração de camarão abrange uma região muito impactada, a Reserva Natural Delta del Estero Real, onde tem ocorrido ações de resistência, tanto sindical quanto territorial por parte da população local. A resposta do Estado tem sido a militarização da região.
São todas empresas privadas?
Sim. E há outro grave problema na Nicarágua, que é o desmatamento, sobretudo nas chamadas regiões autônomas. Existem duas regiões autônomas na organização político-administrativa da Nicarágua que ocupam uma área muito grande: a Atlântica Norte e a Atlântica Sul. A população que historicamente habitou essas regiões é indígena: os misquitos e os mayangna. A Revolução Sandinista teve muitos problemas com os misquitos porque buscava um projeto nacional, desenvolvimentista, almejava a reforma agrária, mas os sandinistas não sabiam se associar aos povos indígenas. Depois, corrigiram, ajustaram-se, mas não conseguiram entendê-los.
Para os povos indígenas, a relação entre o território e a economia é de abundância, não possui a lógica desenvolvimentista. Foi um diálogo de surdos. E desse sandinismo só restou um desenvolvimentismo descaradamente capitalista. Durante o Governo nascido em 2007 (segundo período presidencial de Ortega), avançou-se aceleradamente sobre as regiões autônomas Atlântica Norte e Sul; e foi estimulada a chegada de colonos, mas não de colonos pobres, mas médios, com a intenção de fazer negócios.
Agiu-se de modo semelhante ao que aconteceu no Brasil, durante o Governo de Jair Bolsonaro, por meio de milícias incendiárias, que avançaram sobre as florestas com incêndios ilegais, protegidas ou ao menos não reprimidas pelo Governo. O objetivo é a formação de pastagens para o gado e para a monocultura e a concentração de terras, a expulsão dos habitantes da região, principalmente os indígenas, que acabam se deslocando como refugiados para Honduras.
No Brasil, conhecemos bem esta forma de agir.
Sim, com muitos deslocados econômicos, indígenas, pescadores, camponeses. Na Nicarágua, existe um campesinato que permaneceu e é a base social e política do regime de Ortega. Houve uma reforma agrária durante a Revolução Sandinista. E quando o sandinismo perdeu as eleições, em 1989, fez uma operação antes de deixar o governo: uma parte das terras que tinham sido desapropriadas pela reforma agrária foi entregue como propriedade a muitos comandantes da Revolução. Fizeram isto abertamente, incluindo companheiros mais fiéis, com o argumento de que assim se evitaria que as terras voltassem aos seus donos anteriores, os da época de Somoza. Justificaram que se tratava de uma proteção para tempos melhores.
Depois, algumas dessas terras voltaram para as mãos dos camponeses, que se tornaram a base política do regime, porque, caso contrário, não se sustentaria. Não são apenas os acordos com o setor empresarial. Quando eu disse que o segundo maior item de exportação são as camisetas e que existe outro item importante que é o cabo, estamos falando de uma burguesia local, interna, que faz negócios dentro deste segmento. Aí, sim, existe um capitalismo dependente no sentido estrito da palavra, no contexto de outro modelo de acumulação. Isso conferiu a Ortega uma estabilidade durante esses anos, de 2007 até aqui, e um consenso com esse setor burguês interno.
Há um projeto que não foi executado, mas teve graves consequências: a construção de um canal de 280 km, semelhante ao do Panamá, que ligaria o Pacífico ao Atlântico. Os efeitos do início deste empreendimento, em 2013, foram terríveis, devido aos deslocamentos das comunidades camponesas ao longo desse eixo, que passava pelo Lago Cocibolca.
Por fim, o canal não foi construído, mas os camponeses também não retornaram para suas terras. Muitos dos que se organizaram contra a construção do canal, entre eles a líder camponesa Francisca Ramírez Torres, estão exilados. Torres e 40 de seus familiares estão na Costa Rica e não podem retornar à Nicarágua.
Esta tentativa de canal interoceânico mostra o compromisso deste governo com as cadeias extrativistas. Esses canais, rodovias, ferrovias, grandes aeroportos, ampliação de complexos portuários fazem parte do que chamamos de rota da pilhagem. Ou seja, quando se abre um caminho para a logística, muitos projetos extrativistas que estão engavetados encontram a possibilidade de serem implementados.
Não são canais de comunicação ou transporte para visitar familiares ou para passear. Servem para o fluxo desse novo modelo de acumulação e um governo que autoriza a passagem desse fluxo de riqueza é de uma irresponsabilidade gigantesca, se realmente é progressista. Esse é o contexto econômico, não vemos muita diferença com governos de direita. E é o que estamos vendo em outros governos progressistas da América Latina que favorecem, com diferentes argumentos, a integração às cadeias de acumulação. É o chamado consenso das commodities.
Neste tema, há uma constância e não um pêndulo.
Isto é permanente. Contudo, no regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo há uma forma descarada do exercício, inclusive da violência, do disciplinamento dos territórios e dos diferentes setores da classe trabalhadora.
Qual é a sua opinião a respeito da repressão à revolta de 2018, da fraude eleitoral de 2021 e da reeleição de Ortega e o confronto com a Igreja Católica, na Nicarágua?
Para impor esse projeto, primeiro foi necessário expurgar das organizações originadas no sandinismo os quadros que participaram da Revolução. Muitos tiveram que se exilar, como Mónica Baltodano. Ela e toda a sua família estão na Costa Rica. Ou o caso da prisão de Dora María Téllez, que foi algo escandaloso. Contudo, não é apenas uma ação contra Dora María, como se fosse um problema pessoal com ela.
Manter tantos velhos companheiros presos com esta brutalidade, com esta cólera, é intimidar os que estão dentro da Frente Sandinista a se acomodarem a uma prática puramente administrativa de não se intrometer no debate político. O primeiro desmonte se dá na própria organização. Depois, está permitido fazer qualquer coisa. E a pior foi aquela violência contra o próprio povo nicaraguense, a perseguição e a morte que começou em 18 de abril de 2018, aplicando o terror.
Não estou falando do terror como um insulto. Agora, por exemplo, no Brasil, a palavra terrorista é usada como um insulto. Terror é quando se intimida um grupo com violência física, com ameaça de violência, de tortura e morte iminente. Ou de morte como punição exemplar para que os outros fiquem quietos.
Ações que costumam contar com a conivência do Estado.
O Estado costuma fazer isso, mas também a mão oculta do Estado, aquela que atua de forma ilegal. Na América Latina, temos essa duplicidade. Não é possível dizer que as milícias incendiárias na Amazônia atuam sem a articulação com o Estado.
Que elementos fazem com que um processo revolucionário seja destruído por seus próprios criadores?
Tenho algumas hipóteses e algumas leituras de companheiros que se dedicam a refletir a esse respeito. Contudo, gostaria de retomar algo que Frantz Fanon disse sobre como uma revolução permanece no campo da luta nacionalista e nacional, mas não avança em sua dinâmica para uma luta social. Forma-se uma camada de administradores burgueses locais que se associam ao capital internacional.
Ortega representou os interesses desse setor, com uma roupagem ainda sandinista, mas que não tem nada a ver com a luta sandinista. Uma luta que começa como antiditatorial, democrática, anti-imperialista, mas que se congela e, portanto, desmorona.
Quais movimentos dos de baixo você tem acompanhado na Nicarágua?
O mais importante é o enraizamento dos movimentos e a construção de relações em seu território. Isso não é fácil na Nicarágua porque há uma perseguição muito grande para desarticular as lutas locais e antiextrativistas. Conheço famílias de velhos lutadores, da época do surgimento do movimento sandinista, que não se acomodaram e estão nos territórios. E depois, há movimentos novos, que são reativos ao avanço da espoliação nos territórios.
Também lutas sindicais dos trabalhadores da cana-de-açúcar, que trabalham nas fazendas de Chichigalpa. Tem ocorrido lutas sindicais dos trabalhadores do setor de camarão, frigoríficos, dos pescadores, dos camponeses afetados por esses grandes empreendimentos, dos indígenas das regiões autônomas do Atlântico, especialmente da região norte. Há muitas lutas que não estão articuladas e muitas vezes são assumidas por partidos que não lhe dão um sentido antiextrativista, e acabam limitadas ao campo do programa liberal da luta contra a ditadura de Daniel Ortega.
Esta entrevista faz parte de Nicarágua: Sueños Robados, um projeto de jornalismo colaborativo e coordenado pela aliança de meios de comunicação Otras Miradas, com a colaboração de Desinformémonos, do México; os nicaraguenses Divergentes, Despacho 505 e Expediente Público; Agencia Ocote, da Guatemala; e Público, da Espanha.
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“O discurso anti-imperialista acoberta a pilhagem na Nicarágua”. Entrevista com Silvia Adoue - Instituto Humanitas Unisinos - IHU