12 Abril 2023
"A fração do pão é o ponto de partida para a renovação do simbolismo eucarístico e da sua ritualidade. Hoje há um grande desejo de ritos que tenham significado, que sejam gestos e palavras que tenham o sabor do Evangelho. A renovação da Igreja não acontecerá sem uma renovação da praxe eucarística", escreve Goffredo Boselli, liturgista italiano, monge da Comunidade de Bose, na Itália, e colaborador da Comissão Episcopal para a Liturgia da Conferência Episcopal Italiana, em artigo publicado por Vita Pastorale, abril de 2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um conhecido liturgista francês, Claude Duchesneau, imagina que certo dia alguém decida dar à missa um novo nome e, por isso, faça uma pesquisa entre os cristãos na saída das igrejas num domingo de manhã: “Senhor... Senhora... são batizados? - Sim! Que novo nome vocês dariam à missa?". Com toda a probabilidade seriam propostos nomes como "eucaristia", "celebração eucarística", "santo sacrifício", "ceia do Senhor", mas - conclui Duchesneau - não é certo que "fração do pão" apareceria uma única vez. E, no entanto, entre os tantos sinais eucarísticos que a tradição da Igreja transmitiu ao longo dos séculos, a fração do pão é o único gesto eucarístico realizado por Jesus com as suas mãos.
"Fração do Pão" é o nome mais antigo da eucaristia: várias vezes atestado no Novo Testamento, como na época apostólica e na Didaquê. E ainda até o II século denominava toda a ceia eucarística. Por isso, a fração do pão é o gesto original e primário da Eucaristia, a ponto de poder dizer que constitui a essência gestual da Eucaristia, assim como o pão é a sua substância material.
A Eucaristia é ao mesmo tempo a realidade do pão e o gesto de partir e repartir: nunca acontece uma sem o outro. A Eucaristia não é simplesmente pão, mas um pão partido e compartilhado. O mesmo vale para o vinho.
E, no entanto, o que resta hoje daquele gesto que curou da obscuridade da mente os discípulos de Emaús e permitiu-lhes reconhecer o Jesus ressuscitado? Como explicar o extraordinário significado que o Novo Testamento reconhece a esse gesto e o seu ser ignorado pelos crentes nas nossas liturgias? Por que tão cedo, na história do cristianismo, a fractio panis deixou de dar nome à Eucaristia e ser o gesto central da celebração? O ato de partir o pão à mesa para partilhá-lo com os presentes, não foi inventado por Jesus, mas pertence à ritualidade hebraica.
Assim o descreve Joachim Jeremias em As Palavras da Última Ceia: “Em cada refeição, tomada em comunhão, a comunidade da mesa é constituída através do rito da fração do pão. [...] Quando o pai da família pronuncia a bênção do pão - uma bênção que cada comensal assume através do Amém! — que parte e oferece a cada um pedaço para comer, significa que pelo ato de consumir, cada um dos comensais participa da bênção da mesa; o Amém pronunciado em comunhão e o consumo em comum do pão da bênção unia os comensais numa mesma comunidade de mesa”.
À mesa com os discípulos, na véspera da sua paixão, Jesus cumpre o ritual judaico e partindo o pão para compartilhá-lo com os comensais apropria-se do significado do ritual. Mas, ao mesmo tempo, o enriquece ainda mais: “Pegou um pão e, tendo dado graças, partiu-o e disse: tomai e comei, isto é meu o corpo, que é partido por vós; fazei isto em memória de mim” (1Cor 11, 23-24). Naquele gesto Jesus vê encerrado o sentido de toda a sua vida e da sua morte iminente. Desde que Jesus o realizou na Última Ceia, a fração do pão não é apenas o rito judaico de partilha com os comensais, mas é também o gesto para recordar o sacrifício de comunhão de Cristo que, estipulando a Nova Aliança em seu corpo posto à morte e em seu sangue derramado, cria a comunhão da sua comunidade e faz dela um único corpo, o seu corpo. É da Última Ceia que a fração do pão se torna um rito eucarístico. E desde então os discípulos de Cristo partem o pão para lembrar dele. No dia do Senhor se identificam, se reconhecem e se confessam "reunidos para partir o pão" (Atos 20,7).
No gesto eucarístico de partir o pão há uma dimensão sacrificial à qual a tradição litúrgica, especialmente oriental, depois aproximou e justapôs à figura do Cordeiro Pascal, que é sempre "o Cordeiro como havendo sido morto" (Ap 5,6). Na liturgia bizantina, ao pão destinado à Eucaristia é dado o nome de "Cordeiro", assim como no rito simbólico da fração o pão é chamado de "Cordeiro imolado". Na liturgia siríaca de São Tiago a fórmula que acompanha a fração do pão reza: "Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, que é imolado para a salvação do mundo". Não é por acaso que foi um papa de origem siríaca, Sérgio I (+ 701), quem introduziu no final do VII século na liturgia romana a tríplice ladainha Agnus Dei como canto próprio da fractio panis.
Assim, também no Ocidente ao simbolismo paulino da fração como participação no único pão para formar um só corpo, se substituiu a interpretação sacrificial do cordeiro pascal imolado.
A partir disso se entende a razão pela qual a fração do pão é um dos poucos ritos de que o Ordenamento Geral do Missal Romano sente a necessidade de esclarecer o significado: “O gesto da fração do pão, realizada por Cristo na Última Ceia, que desde os tempos apostólicos deu o nome a toda a ação eucarística, significa que muitos fiéis, na Comunhão do único pão de vida, que é Cristo morto e ressuscitado para a salvação do mundo, constituem um só corpo” (n. 83).
É o significado do gesto que o apóstolo Paulo transmite à comunidade cristã de Corinto, onde a expressão "partir o pão" designa a Eucaristia: "O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão" (1Cor 10,16-17).
Se esta é a importância da fração do pão, ainda mais evidente é a distância entre seu significado e a prática litúrgica atual em que esse gesto é entendido como um dos muitos ritos reservados ao presbítero e que passam despercebidos. Afinal, no imaginário católico o gesto eucarístico por excelência é a elevação da hóstia no momento da consagração, consequência ritual de uma teologia eucarística que desde a Idade Média supervalorizou a presença real em detrimento de outras verdades fundamentais do mistério eucarístico. A primeira condição graças à qual o gesto eucarístico da fração do pão poderá voltar às suas origens e tornar-se eloquente aos olhos dos crentes é que o pão a partir reencontre a realidade da sua forma. Certamente o pão eucarístico desde sempre e ainda hoje é pão verdadeiro, mas sua aparência atual nada tem a ver com o pão.
Vamos reconhecê-lo: a hóstia é um pão verdadeiro, mas não é um pão real! Enquanto o pão para a eucaristia mantiver a forma da hóstia também a fracção não poderá revelar toda a sua intensidade e força, e assim atingir a sua plena eficácia expressiva.
A nossa liturgia terá um futuro se não se contentar com a renovação dos sinais realizada pela reforma conciliar, mas prosseguirá com convicção e audácia na busca de uma maior verdade dos sinais litúrgicos. Inculturar hoje no Ocidente a linguagem cristã e nela a linguagem litúrgica significa torná-la eloquente para os crentes secularizados, ou seja, desencantados e por isso ávidos, também na liturgia, de autenticidade, simplicidade, eloquência, poeticidade. Caso contrário, o desinteresse pela liturgia aumentará.
A fração do pão é o ponto de partida para a renovação do simbolismo eucarístico e da sua ritualidade. Hoje há um grande desejo de ritos que tenham significado, que sejam gestos e palavras que tenham o sabor do Evangelho. A renovação da Igreja não acontecerá sem uma renovação da praxe eucarística.
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“O pão que partimos”. Artigo de Goffredo Boselli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU