08 Março 2023
A reportagem é de Carolina Conti, publicada por Mongabay, 07-03-2023.
"Meninos, eu vi!”, expressão do poeta Gonçalves Dias que já integrou até bordão de novela, é uma máxima conhecida e usada no meio jornalístico. Quem vai a campo fazer reportagens, entrevista e testemunha fatos para depois reportar aos demais o que viu. E ouviu. Nesta matéria aqui, emprestamos o verso do maranhense para antecipar algumas conversas que tivemos com quem, há anos, não só conhece e relata a Amazônia, mas vivencia – com o corpo todo – sobretudo as violências da região.
Segundo o grupo ambientalista Global Witness, aconteceram 20 assassinatos de ativistas ambientais no Brasil só em 2020. No ano passado, as mortes do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira foram, segundo o repórter Daniel Camargos, “um pesadelo que virou realidade” para quem – como ele – com frequência cobre o que se passa nos territórios amazônicos.
De acordo com o Relatório de Violência e Liberdade de Imprensa publicado pela Fenaj, em 2022 os estados da região Norte somaram 38 casos de violência contra jornalistas, incluindo ameaças, intimidações, agressões físicas e verbais, prisões e assassinatos. São 22 casos a mais em relação a 2021. O Pará o líder no ranking da violência, com 21 casos.
O repórter Daniel Camargos com o cacique Raoni Metuktire, no município de Peixoto de Azevedo, Mato Grosso, em outubro de 2021, em entrevista para a Repórter Brasil | Foto: Fernando Martinho / Repórter Brasil
“Uma vez, em uma cobertura em Rondônia, eu e o fotógrafo que me acompanhava fomos abordados por policiais à paisana armados. Tive muitos sonhos com aquela cena na época”, conta Daniel Camargos, que hoje trabalha na Repórter Brasil. “Também, um pouco antes do que aconteceu com o Dom, vinham pesadelos. Eu me via e a meus colegas violentados, mortos, exatamente como, algum tempo depois, seria com o Dom e com o Bruno.”
Daniel Camargos viajou por duas vezes à Amazônia com o jornalista britânico, uma delas para – em parceria – cobrirem o que ficou conhecido como o Dia do Fogo, um ataque coordenado para incendiar a floresta em agosto de 2019. “O Dom era muito cuidadoso, seguia à risca os protocolos, mudava de caminho para despistar. Quando fui ao Vale do Javari apurar as buscas, ainda tinha alguma esperança de que ele e o Bruno estivessem vivos.”
“Dom! Dá notícia!” foi a mensagem de texto que Daniel enviou ao amigo assim que soube do seu desaparecimento.
Atualmente, a maior parte das agências de notícias e veículos que atuam na Amazônia têm protocolos severos de segurança. São formulários longos, com minúcias da viagem, e aparelhos que auxiliam no monitoramento enquanto a equipe está em campo. Para além disso, existe todo um cuidado com relação à proteção das fontes, com quem lhes concede as entrevistas e vive na zona de perigo: “Eu vou embora, a pessoa fica lá, não posso colocá-la em risco”, ressalta Daniel.
Quando perguntado se algo mudou no seu trabalho depois do que aconteceu com seu colega, ele diz: “Eu até falo que, agora, sou uma pessoa que constantemente frustra a equipe. ‘Não, daqui a gente não passa’, eu digo. ‘Vamos perder? Vamos perder, para contar outra depois’.”
Lúcio (à esquerda), Saulo Petean (chefe do posto da Funai na Terra Indígena Mãe Maria) e indígenas do povo Gavião, a 30 quilômetros de Marabá (PA), em 1976 | Foto: arquivo pessoal
“Mexendo em muita casa de abelha”. Foi assim que existiu, por trinta e dois anos, o Jornal Pessoal. Independente e de denúncia sobre temas diversos relacionados à região amazônica, o veículo impresso criado pelo paraense Lúcio Flávio Pinto nasceu depois dele não encontrar onde publicar o que havia apurado sobre o assassinato do ex-deputado estadual Paulo Fonteles de Lima.
“Os jornais locais não queriam saber, porque a matéria citava alguns dos homens mais ricos e poderosos do Pará”, lembra ele. “Uma das pessoas que tentei convencer, uma das donas de O Liberal, me respondeu: ‘então cria um jornal e assume’. Foi o que eu fiz.”
Pelo fato de não haver anunciantes nem mecenas, com o passar do tempo e a escassa receita, o Jornal Pessoal passou a ser mais analítico. Mas, “com a crise mundial da imprensa, ele tornou-se inviável. Vendia cada vez menos. Até mesmo as bancas estavam acabando. Na rotina desgastante de fazê-lo, mais velho e já então com Parkinson, decidi encerrá-lo de súbito, sem uma edição final nem explicação.”
O jornalista Lúcio Flávio Pinto | Foto: arquivo pessoal
Lúcio também trabalhou para outros veículos e acumula histórias interessantes de bastidores de notícias. Como a do dia em que foi despertado com um telefonema de urgência da produção do O Estado de São Paulo. Queriam que ele fosse a Manaus, pois havia dois aviões líbios suspeitos retidos no aeroporto. Dizia-se que levavam armas do ex-presidente Muammar Kadhafi para os revolucionários da Nicarágua. Rumores falvam de explosivos lá dentro, então foi formada uma barreira pelo Exército para que os militares entrassem no avião, junto de especialistas, a fim de verificarem a carga. Algo que demorou para acontecer.
“Quando baixou a escuridão, os colegas abandonaram a barreira para escrever suas matérias. Decidi pernoitar com os militares. Fui o único jornalista a ficar ali”, ele conta. Algo inusitado aconteceu: um sargento veio pedir um favor a Lúcio. Que fosse a casa dele e avisasse à sua esposa que estava tudo bem (o ano era 1983, e a comunicação não era tão fácil quanto hoje). Lúcio foi e, na volta, ainda comprou pão e leite para os militares. “Em retribuição, o sargento me pediu que aguardasse. Dentro de pouco tempo ele iria entrar no avião com o pessoal. Eu teria um relato completo na volta.”
De fato havia mísseis armazenados nas aeronaves e, diferentemente dos colegas, Lúcio foi o único a ter essa informação, o famoso furo. “É preciso muito esforço, persistência, aplicação e criatividade. Como ensinava o técnico de futebol Gentil Cardoso: só quem se desloca recebe; só quem pode tem preferência. É preciso fazer esses movimentos para ajudar a sorte a encontrá-la”, conclui o jornalista.
Lúcio Flávio lembra também da ocasião em que mediou uma transação comercial inédita com indígenas do povo Gavião, que vivem próximos a Marabá, no Pará. “Eles apareceram no escritório da sucursal do Estadão em Belém. Estavam negociando a venda da safra de castanha aos exportadores. Dei-lhes as informações de que necessitavam para conseguir melhor preço. Conseguiram uma boa receita. Depositaram o dinheiro na agência do Banco do Brasil em Marabá. Aplicaram parte do dinheiro numa poupança. Foram os primeiros índios na história do Brasil a fazer aplicação financeira.”
Hoje, o jornalista segue seu trabalho em versão web, em um site que reúne uma série de textos produzidos ao longo do tempo, separados por categoria, e são um verdadeiro arquivo da história da Amazônia.
E como ele vê o ativismo digital indígena, em especial da juventude, que tem se valido das redes sociais para reportar suas comunidades? “Essa é uma novidade positiva, com potencial para crescer. Mas os que realmente atuam nos pontos que já foram ou estão sendo atingidos pelas frentes pioneiras precisam de conexões com a imprensa ou com jornalistas individuais — e estes têm que buscar esses elos. Assim se pode reagir à redução das coberturas profissionais in loco. E os ativistas têm que se conscientizar que, além da dedicação às suas causas, eles devem ser fontes idôneas de informações, mesmo das desagradáveis ou indesejáveis.”
colocar aqui a legendaO jornalista Lúcio Flávio Pinto (segundo da fila) durante reportagem sobre grilagem de terras na divisa entre Pará e Maranhão, em 1976 | Foto: arquivo pessoal
Michael Dantas é fotojornalista manauara. Recentemente, algumas de suas fotos ganharam o mundo ao retratarem, em Manaus, o colapso da saúde pública e as milhares de mortes no auge da pandemia da covid-19. Uma delas é a que segue abaixo, do cemitério Nossa Senhora Aparecida, onde foram abertas valas coletivas em abril de 2020: “A imprensa estava proibida de entrar lá nessa época. Eu fui até um bairro atrás do cemitério, levantei o drone e fiz o registro. Tomei um susto com o que vi no visor”, conta o fotógrafo.
Recentemente, ele esteve em Boa Vista para registrar a saída dos garimpeiros das terras Yanomami e falou um pouco sobre essa cobertura: “Passei catorze dias lá e foi muito perigoso. Uma palavra errada que a gente dissesse e viveríamos uma situação complicada. Estavam lá quatro agências internacionais e a Folha de São Paulo. A gente decidiu ir todo mundo junto, pela nossa segurança e para dividir custos, porque o trabalho na região é sempre muito caro. O aluguel de uma canoa estava 20 mil reais!”
É dele, também, o registro impactante, de uma criança Yanomami desnutrida em um hospital da cidade: “É muito delicado, ainda mais sendo pai, ver a criança daquele jeito. Ela tem dois anos e peso de um recém-nascido… Mas o que fazemos é fundamental para chamar a atenção das pessoas, para denunciarmos o que está acontecendo”, diz o fotojornalista.
Foram imagens como as de Michael que – junto de números assustadores – deram a dimensão da situação trágica vivida no norte do país. No dia seguinte à publicação da reportagem “Não estamos conseguindo contar os corpos”, da Sumaúma, que trouxe imagens aterradoras feitas por indígenas e profissionais da saúde, o presidente Luís Inácio Lula da Silva foi a Roraima, junto da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, para o início de uma mobilização que segue com diversas frentes de atuação nos territórios.
Talita Bedinelli é uma das repórteres que assinam a matéria mencionada acima, junto da jornalista Eliane Brum e da antropóloga Ana Maria Machado. Ela conta: “Viemos para a região em agosto. A primeira reportagem sobre a crise dos Yanomami saiu em setembro, mas seguimos monitorando a situação, porque era muito grave. Em dezembro, as coisas pioraram bastante e começamos a receber imagens de crianças desnutridas, de diferentes localidades nos territórios, enviadas por pessoas distintas: profissionais da saúde, lideranças, gente que foi fazer o censo”.
Havia uma questão, no entanto, com relação ao uso das imagens, conforme ela explica: “ter uma foto publicada é um problema para os Yanomami, porque eles acreditam que a imagem faz parte da pessoa. Ela precisa ser destruída quando a pessoa morre, junto de todas as outras coisas dela. Para os vivos não lembrarem, para ela poder viver em paz no pós-morte. Então publicar essas imagens é um choque cultural, é uma violência cultural”. Foi feita uma costura, durante um mês, junto de lideranças, até que – dada a relevância da denúncia – a publicação acontecesse.
Durante esse processo, Talita já tinha levantado para matérias anteriores dados que traziam um panorama de saúde amplo do território Yanomami até 2021. Com a mudança de governo, fez um pedido, através da assessoria de imprensa, dos dados sobre mortalidade de crianças de até cinco anos por causas evitáveis: “para eu juntar com o que tinha e ver o resultado. Demorou, mas quando chegou eu somei e vi que havia esse aumento de quase 40% no governo Bolsonaro”.
A repórter Talita Bedinelli com moradores da aldeia Demini, na Terra Indigena Yanomami, durante preparação para uma pescaria coletiva com veneno de timbó, em agosto de 2022 | Foto: Pablo Albarenga / Sumaúma
Sumaúma vem sendo um dos destaques na cobertura na Amazônia. Idealizada por Eliane Brum, que vive em Altamira, no Pará, desde 2017, a plataforma trilíngue conta com uma equipe experiente e conhecedora da região. Além de financiamentos internacionais, tem colaboradores ativos: “eles são uma espécie de ombudsman para nós. Para além do apoio financeiro, nos reunimos para discutir as edições. Agora, por exemplo, teremos um encontro para trocar sobre as reportagens que fizemos dos Yanomami”.
Com o intuito de existir para dar voz às pessoas que estão na floresta, a Sumaúma “é um veículo que está baseado na Amazônia e com um olhar global”, explica Talita. “Conta com uma rede de freelancers importantes e que quer crescer esse ano contratando mais gente através de um programa, uma espécie de laboratório, uma co-formação com profissionais da área de comunicação e, também, formando jornalistas da floresta, pessoas que vivem nas comunidades, como os ribeirinhos e os indígenas. Acreditamos que o jornalismo tem de estar no centro de onde está a vida, e a Amazônia é essa vida”, conclui.
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“Mexendo em casa de abelha”: repórteres falam dos perigos e desafios de cobrir a Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU