02 Janeiro 2023
Do papel de perito no Concílio Vaticano II aos 24 anos com Wojtyla como Prefeito da Congregação da Fé, até a fumaça branca de 2005 e o início de um pontificado que durou 8 anos, sobre o qual pesou o caso Vatileaks, o nome de Joseph Ratzinger ficará para a história sobretudo pela renúncia histórica, que deu origem a uma convivência inédita de dois papas no Vaticano. E mesmo como emérito esteve no centro de pesadas polêmicas, sobretudo a acusação de negligência, como bispo, de quatro padres pedófilos.
A reportagem é de Francesco Antonio Grana, publicada por Il Fatto Quotidiano, 31-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bento XVI ficará na história como o primeiro Papa do terceiro milênio que renunciou. Uma decisão chocante, aquela comunicada ao mundo em11 de fevereiro de 2013, mas tomada quase um ano antes e confidenciada ao seu secretário de Estado, o cardeal Tarcisio Bertone, em 30 de abril de 2012, como revelou o próprio cardeal salesiano. Bento XVI nasceu em Marktl am Inn, um povoado bávaro de cerca de 3.000 habitantes, em 16 de abril de 1927.
Seu pai era comissário da gendarmaria e vinha de uma família de agricultores da Baixa Baviera, cujas condições econômicas eram bastante modestas. A mãe era filha de artesãos e, antes de casar, tinha trabalhado como cozinheira em vários hotéis. O pequeno Joseph expressou o desejo de se tornar padre e em 29 de junho de 1951 foi ordenado sacerdote junto com seu irmão mais velho, Georg. Sua extraordinária preparação teológica o colocou imediatamente em destaque e foi como perito que participou do Concílio Ecumênico Vaticano II.
Depois de ter ensinado nas faculdades teológicas mais prestigiosas da Alemanha, em 25 de março de 1977, São Paulo VI o nomeou arcebispo de Munique e Freising. Ratzinger recebeu a ordenação no dia 28 de maio seguinte e depois de apenas um mês, no dia 27 de junho, Montini o nomeou cardeal. São João Paulo II o quis em Roma e em 25 de novembro de 1981 o nomeou prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
O futuro Papa foi durante quase um quarto de século um dos principais colaboradores de Wojtyla. Em 30 de novembro de 2002, ele também se tornou cardeal decano e, nessa qualidade, liderou a Sede vacante de 2005 após a morte do Papa polonês, a quem substituiu no governo da Igreja Católica.
Um legado muito pesado, aquele recebido de seu "predecessor amado", que para Ratzinger chegou quando acabava de completar 78 anos. Foi obrigado a carregar muitas cruzes em seu pontificado: desde o escândalo da pedofilia do clero, até o diálogo extremamente difícil com os lefebvrianos, complicado também pelo negacionismo sobre o Holocausto de alguns deles, pelos desentendimentos com o mundo islâmico devido à sua famosa citação de Manuel II Paleólogo sobre Maomé na palestra de Regensburg, até o Vatileaks 1 com a infidelidade de seu mordomo, Paolo Gabriele, que repassava documentos confidenciais do papa alemão à imprensa.
Nada menos que 24 viagens ao exterior e 29 visitas pastorais na Itália. No entanto, o pontificado de Bento XVI não foi apenas constelado por espinhos, muitas vezes causados pela incapacidade de seus colaboradores mais próximos, mas também por um denso magistério condensado em oito anos. Da trilogia sobre Jesus de Nazaré, ao livro-entrevistas Luz do mundo, o terceiro de quatro escritos com seu biógrafo Peter Seewald, às três encíclicas, Deus caritas est, Spe salvi e Caritas in veritate, sem contar aquela escrita junto com Francisco, Lumen fidei.
Como Papa Emérito, Bento XVI decidiu viver no Vaticano, no Mosteiro Mater Ecclesiae, porque “quem assume o ministério petrino não têm mais privacidade. Pertence sempre e totalmente a todos”. Ratzinger também fica na história como aquele que, como cardeal, denunciou "quanta sujeira há na Igreja, e precisamente também entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a ele" e que antes havia sublinhado que "motivos para não estar mais na Igreja hoje há muitos e diferentes uns dos outros", mas que no final "apesar de todas as fragilidades humanas, é a Igreja que nos dá Jesus Cristo e só graças a ela podemos recebê-lo como uma realidade viva e poderosa, que me desafia e enriquece aqui e agora”.
Bento XVI sempre esteve convencido de que nunca se deve esconder as próprias crenças, para não ceder ao perigo do sincretismo religioso. Este é o sentido do documento mais contestado do guardião da fé do pontificado wojtyliano. Em Roma se estava celebrando o Grande Jubileu de 2000 quando, com a plena aprovação do Papa polonês, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a declaração Dominus Iesus.
Muitos, na Cúria Romana e fora dela, rotularam imediatamente o texto de fundamentalista e desrespeitador do clima de diálogo entre as religiões instaurado, não sem dificuldade, por São João Paulo II. Ratzinger foi apontado como o "estraga-prazeres" do jubileu wojtyliano com as suas numerosas celebrações que, como ele próprio confidenciou aos jornalistas na véspera da abertura da porta sagrada de São Pedro, lhe causaram não pouco embaraço devido ao corte na atmosfera festiva.
Defendendo aquele texto, às vésperas do conclave do qual Ratzinger saiu de hábito branco, estava o cardeal Giacomo Biffi, a quem justamente o cardeal alemão deu seu voto durante as quatro votações na Capela Sistina: "Gostaria de chamar a atenção do novo Papa para a incrível história da Dominus Iesus: um documento explicitamente partilhado e publicamente aprovado por João Paulo II; um documento pelo qual gostaria de expressar minha vibrante gratidão ao Cardeal Ratzinger”. Um endosso explícito na véspera da fumaça branca.
Bento XVI também entrará para a história pela convivência inédita no Vaticano com seu sucessor. Uma escolha que, se no início suscitou muitas perplexidades, viu os dois papas também participarem juntos de algumas celebrações públicas até Ratzinger ter forças físicas. Bento XVI, despojando-se de seu antiquado guarda-roupa papal, retribuiu o afeto sincero que Francisco sempre lhe demonstrou. Não se sabe quem Ratzinger imaginasse como sucessor. No entanto, no último dia de seu pontificado, Bento XVI havia prometido a qualquer um que saísse como Papa da Capela Sistina "reverência e obediência incondicionais".
Com Bergoglio, para além da diversidade de personalidade, modos de governar e estilos de vida, a centelha se acendeu desde o primeiro abraço em Castel Gandolfo, dez dias após o Habemus Papam. Que não havia amizade de fachada entre os dois é evidenciado pelos muitos encontros privados e pelas palavras inequívocas de ambos. “Sou grato – Ratzinger escreveu ao teólogo suíço Hans Küng – por poder estar ligado por uma grande identidade de pontos de vista e por uma amizade de coração ao Papa Francisco.
Hoje vejo como minha única e última função sustentar o seu pontificado na oração". “Bento – disse Bergoglio – agora reside no Vaticano, e alguns me dizem: mas como isso pode acontecer? Dois papas no Vaticano! Mas, ele não atrapalha você? Mas ele não casa uma revolução contra você? Todas essas coisas que eles dizem, certo? Achei uma frase para dizer isso: é como ter um avô em casa, mas um avô sábio”.
No entanto, as intervenções do Papa emérito foram frequentemente objeto de numerosas polêmicas. Isso aconteceu em particular com o livro sobre o celibato sacerdotal escrito em conjunto com o cardeal Robert Sarah, prefeito emérito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Um texto que pareceu ditado pelo desejo de pressionar Francisco que estava sendo chamado, justamente naquele momento, a decidir se aprovaria a ordenação de padres casados para suprir a falta de clero, conforme solicitado pelo Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia.
Uma polêmica que obrigou Ratzinger a retirar sua assinatura do livro e tentar reduzir o incidente para evitar um confronto com Bergoglio. Mas quem pagou as consequências foi seu fiel secretário, monsenhor Georg Gänswein, que continuou sendo apenas nominalmente prefeito da Casa Pontifícia. As relações entre Francisco e Bento XVI, apesar de tudo, permaneceram serenas.
Isso foi especialmente perceptível quando Bergoglio, em junho de 2020, encorajou Ratzinger, que não viajava de avião desde 2012, a voltar à Baviera para se despedir do irmão mais velho, que faleceu pouco depois. O Papa emérito também fez etapas em alguns lugares caros à sua vida: o cemitério de Ziegetsdorf, sobre a sepultura onde repousam seus pais e sua irmã mais velha, Maria, e sua casa em Pentling, na periferia de Regensburg.
Nem mesmo nos longos anos do emérito, um período mais longo que o do pontificado, faltaram polêmicas. Em 2022 foi acusado de negligência na gestão de quatro padres pedófilos quando era arcebispo de Munique e Freising. Acusações fortemente rejeitadas por Bento XVI: “Mais uma vez, só posso expressar a todas as vítimas de abusos sexuais minha profunda vergonha, minha grande dor e meu sincero pedido de perdão. Tive grandes responsabilidades na Igreja Católica. Tanto maior é a minha dor pelos abusos e erros ocorridos durante o tempo do meu mandato nos respectivos lugares. Cada caso de abuso sexual é terrível e irreparável. Minha profunda solidariedade vai para as vítimas de abusos sexuais e lamento cada caso".
Palavras claras também para aqueles que o acusaram de mentir por erro material no depoimento de defesa escrito por seus colaboradores: "Fiquei profundamente impressionado que o descuido tenha sido usado para duvidar da minha veracidade, e até para me apresentar como um mentiroso".
As últimas palavras públicas de Bento XVI são uma despedida do mundo: “Eu nunca teria pensado que o último trecho de estrada do Mosteiro Mater Ecclesiae até as portas do céu onde está São Pedro pudesse ser tão longo”.
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O Papa Bento XVI morreu, uma vida em posições de destaque na Igreja. Um papado não isento de escândalos, depois a escolha histórica da renúncia e a convivência com Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU