15 Outubro 2022
"É preciso reconhecer que o Concílio Vaticano II fez encurtar essa distância e a comunidade eclesial reapropriar-se da Sagrada Escritura na vida da Igreja.", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do ex-Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 12-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
É difícil resistir à memória autobiográfica: cheguei a Roma, ainda não tinha 20 anos, para iniciar meus estudos em Teologia na tarde de 11 de outubro de 1962. Portanto, eu também estava presente naquela noite na imensa multidão que, na Praça São Pedro, ouvia o agora famoso "discurso da lua" de São João XXIII, assim como eu estava entre aqueles que, três anos depois, em 8 de dezembro de 1965, presenciaram a solene conclusão da assembleia conciliar com São Paulo VI, para não falar das várias vezes em que – graças à autorização de um bispo – participei como espectador em algumas sessões na Basílica de São Pedro, acompanhando as intervenções dos padres conciliares. O Concílio Vaticano II, porém, não está entrelaçado com minha vida apenas por razões biográficas. É também por um fato mais radical que também é compartilhado por todos aqueles que nunca pisaram em Roma naqueles anos, mas foram beneficamente “contaminados” por aquele evento, assim como toda a Igreja foi nas décadas seguintes.
Desde o anúncio da convocação por São João XXIII em 25 de janeiro de 1959 na basílica de São Paulo, e depois durante todo o Concílio e os 60 anos que temos às costas, uma atmosfera intensa e única foi de fato respirada e vivida, uma emoção que paradoxalmente fez a Igreja olhar para duas direções antitéticas, embora complementares. Por um lado, de fato, estávamos nos projetando para o mundo em evolução e, portanto, para horizontes futuros, fazendo ressoar aquela palavra então um tanto emocionante, “atualização”. Por outro lado, havia o desejo de livrar do manto um tanto empoeirado de uma história secular, o coração pulsante do Evangelho, a vitalidade das origens cristãs, a matriz doutrinal eclesial profunda, realizando assim uma espécie de olhar retrospectivo.
Precisamente por este último aspecto, alguns padres considerados "progressistas" responderam aos seus colegas objetores que eles próprios eram os verdadeiros servatores, os "conservadores" do espírito genuíno radical da Tradição, enquanto os opositores, em última análise, se revelavam como novatores, defendendo teses e práxis posteriores. O clima de redescoberta das fontes cristãs como autêntica "novidade" era vivida na época de maneira forte, às vezes até frenética: assim se explicam também algumas degenerações posteriores e o paralelo afrouxamento daquela tensão espiritual. No entanto, penso que essa herança de índole geral nunca tenha se extinguido completamente, tanto que ainda hoje o adjetivo "conciliar" sempre desperta uma aceleração nos batimentos, uma vibração, um choque interior, um apelo para viver o cristianismo de forma mais eficaz.
Pois bem, um fio que se desenrola não só em todos os documentos conciliares, mas que se tornou um raio solar que iluminou até os nossos dias toda a Igreja, foi aquele da Palavra de Deus. Teve sua estrela norteadora justamente na constituição significativamente denominada Dei Verbum.
Inicialmente foi sugerido um título mais redutivo, De Sacra Scriptura, remetendo exclusivamente à Bíblia. Depois, porém, tornou-se evidente o fato de que a Palavra de Deus precede e excede a Sagrada Escritura: esta, de fato, é a confirmação objetiva da Revelação de Deus que, no entanto, já ecoa na criação e na história e que é derramada pelo Espírito Santo iluminando a Escritura na Tradição, na qual se cumpre o que São Gregório Magno declarava sugestivamente em sua homilia sobre Ezequiel: Scriptura cum legente crescit, "A Escritura cresce com quem a lê". Eis, então, o título final De divina Revelatione.
Não à toa, desejando trazer a Palavra de Deus de volta ao centro vital da Igreja décadas depois daquele documento conciliar, Bento XVI, como selo do Sínodo de 2008, colocou como introdução de sua exortação apostólica pós-sinodal a fórmula Verbum Domini. A palavra divina, de fato, com o Concílio brilhou fortemente na liturgia, na catequese, na espiritualidade (a lectio divina!), na pastoral, na teologia, na cultura. Quanto a este último propósito, recordo naqueles anos a árdua transição que os professores da Universidade Gregoriana tiveram que fazer, tornando seus cursos cada vez mais modelados na Bíblia como fonte, superando o uso segundo o qual era a reflexão especulativa que convocava as passagens bíblicas em apoio às teses já elaboradas.
Uma inversão metodológica que agora é normal nos tratados teológicos, mas que na época parecia uma revolução, ainda que não passasse de um retorno às origens. Os Padres da Igreja, de fato, como tem sido apontado por muitos, não falavam (ou escreviam) da Bíblia, mas falavam à Bíblia.
Impressionante é a bibliografia que aprofundou o conteúdo da Dei Verbum, aprovada pela assembleia conciliar em 18 de novembro de 1965 com 2.350 votantes e apenas 6 votos contra e selada por São Paulo VI.
Vamos agora evocar de forma meramente alusiva uma tríade de fios temáticos, aliás conhecidos e explorados extensivamente. O primeiro fio condutor é o do nexo entre Escritura e Tradição, expresso nos capítulos I e II através da fórmula latina Verbum Dei scriptum vel traditum. Demos voz ao próprio Concílio: “A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim” (n. 9).
As Escrituras são, portanto, a Palavra de Deus fundamental e radical, mas não toda a Palavra de Deus. Elas cristalizam na escrita aquela Palavra, mas não como um depósito inerte, mas como uma potência de vida que se alarga na Palavra divina transmitida na Igreja, precisamente o Verbum traditum, ou seja, a Tradição iluminada pelo "Espírito da verdade" prometido por Jesus Cristo. O magistério eclesial “não é superior à Palavra de Deus, mas a serve, ensinando o que foi transmitido”, sustentado pelo Espírito Santo. Em resumo, Escritura, Tradição e Magistério estão interconectados em um vínculo vivo e numa única finalidade salvífica.
O segundo fio temático, desenvolvido do III ao V capítulo, une duas pedras angulares da Teologia da Palavra de Deus que ao longo dos séculos têm solicitado uma variegada multiplicidade de reflexões: inspiração e hermenêutica ou interpretação. A complexidade dos temas nos permite sugerir apenas um ponto essencial. Por um lado, contra qualquer tentação simplificadora, reafirma-se que a copresença do autor divino e daquele humano revela a qualidade autêntica da inspiração análoga à Encarnação. Trata-se de uma Palavra suprema e transcendente que se manifesta em palavras concretas e históricas.
Por outro lado, justamente por causa dessa duplicidade harmônica, a interpretação conveniente da Palavra sagrada deve levar em conta uma instrumentação tanto teológica quanto histórico-crítica (por exemplo, os gêneros literários) que exorcize todo literalismo fundamentalista, mas também toda aplicação livre e vaga.
Assim, emerge a “verdade” positiva que a Palavra de Deus quer oferecer, evitando a terminologia do passado de viés negativo que falava de “inerrância”. Assim se afirma que "os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras" (n. 11).
Afirmação importante para extinguir o conflito entre fé e ciência e qualquer "caso Galileu". Com razão escreveu ao abade beneditino de Pisa Benedetto Castelli que "a autoridade do Espírito Santo visava persuadir os homens sobre aquelas verdades que, sendo necessárias para nossa salvação e superando todo discurso humano, não poderiam por nenhuma outra ciência ou por outros meios ser conhecido senão pela boca do próprio Espírito Santo”. É o que já havia intuído Santo Agostinho ao afirmar que “não se lê no Evangelho que Jesus teria dito: enviar-vos-ei o Paráclito que vos ensinará como se movem o sol e a lua. Ele queria formar cristãos, não matemáticos”. A Palavra de Deus proclama a verdade salvífica e não aquela científica.
Finalmente, o terceiro fio se desenrola no capítulo VI e entrelaça a Bíblia e a vida, especialmente no âmbito da existência crente. De fato, "a palavra de Deus se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida espiritual" (n. 21). Sob esta luz, entre as várias orientações pastorais oferecidas pela Dei Verbum, destacamos o apelo ao estudo e à leitura da Bíblia para que seja a alma da pregação pastoral, da catequese, da homilia litúrgica, da teologia e da oração, para que "possa acontecer um diálogo entre Deus e o homem".
Essa consideração leva-nos espontaneamente a uma reflexão conclusiva que confiamos a uma cena curiosa e a duas personagens. Vladimir: "Você já leu a Bíblia?" Estragon: "A Bíblia? ... Devo ter dado uma olhada." As tiradas que trocam entre si os dois protagonistas vagabundos do famoso drama Esperando Godot (1952), de Samuel Beckett, expressam uma atitude comum a muitos: é preciso dar uma olhada a esse texto tão aclamado, mas, como acontece com os clássicos, pouco lido. Até mesmo para os católicos, na era pré-conciliar, o poeta francês Paul Claudel não hesitou em dizer ironicamente que eles têm grande respeito pela Bíblia e demonstram esse respeito ficando o mais distante possível dela.
É preciso reconhecer que o Concílio Vaticano II fez encurtar essa distância e a comunidade eclesial reapropriar-se da Sagrada Escritura na vida da Igreja. Aliás, cada vez mais, mesmo em âmbito "secular", reconhece-se a necessidade de ter em mãos esse "grande código" da cultura ocidental para poder decifrar e admirar as mais altas produções no campo da nas artes e até em certos aspectos da nossa vida quotidiana, para não falar do impacto que a Sagrada Escritura teve no horizonte do ethos e da ética comum (basta pensar na importância do Decálogo).
É claro que a mensagem do Evangelho é única em todo tempo, é a mesma ontem, hoje e sempre, como afirma a Carta aos Hebreus para Cristo (13, 8). No entanto, ela deve continuamente se encarnar nas mutáveis coordenadas históricas nas quais estamos inseridos. Esta "contemporaneidade" permanente de Cristo e da sua Palavra é a grande advertência constante do Concílio Vaticano II. Um pouco como afirmava o filósofo dinamarquês do século XIX Soeren Kierkegaard: “A única relação que se pode ter com Cristo é a contemporaneidade. Relacionar-se com um defunto é uma relação estética: a sua vida perdeu o aguilhão, não julga a minha vida, só me permite admirá-lo”. O Vivente, por outro lado, como é o Cristo ressuscitado, "obriga-me a julgar a minha vida em um sentido definitivo". E é isso que o Concílio Vaticano II reafirmou com paixão e convicção a toda a Igreja por toda a Sagrada Escritura e pela Tradição precisamente através da Dei Verbum.
Nesta linha e naquele espírito ecumênico que foi revigorado de maneira essencial pelo documento conciliar, deixamos a última palavra a um forte e sugestivo apelo do Pastor Dietrich Bonhoeffer, testemunho de fé e amor à Palavra divina até o fim extremo do martírio sob a infâmia nazista: “Fiquemos em silêncio antes de ouvir a Palavra para que nossos pensamentos já estejam voltados para a Palavra. Fiquemos em silêncio depois de ouvir a Palavra porque ela ainda nos fala, vive e habita em nós. Fiquemos em silêncio de manhã cedo porque Deus deve ter a primeira palavra. Fiquemos em silêncio antes de ir deitar, porque a última palavra pertence a Deus. Fiquemos em silêncio apenas por amor à Palavra”.
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Os três fios da “Dei Verbum”. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU