04 Outubro 2022
Iconografia sagrada: o dicionário de Olivier Beigbeder analisa os inúmeros símbolos da arte românica, cheia de alegorias ambíguas e muitas vezes esotéricas.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do ex-Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 02-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
À primeira vista, a cena é blasfema: um jumento coroinha segura o missal para um celebrante bode que usa os paramentos litúrgicos. Não é a provocação de um artista dessacralizador contemporâneo, mas sim um baixo-relevo inserido na rica decoração da Igreja de São Pedro (século XII), na cidadezinha francesa de Aulnay.
A iconografia obviamente é simbólica, levando-se em conta que os dois animais encarnam a preguiça e a luxúria na tradição moralista. Essa “Missa ridícula” está incrustada na arquitrave de um portal que tem como tema a doença e a morte, com mais uma cena desconcertante de natureza erótica, na qual o vício é precisamente um princípio letal.
Isso e muito mais pode ser descoberto no verbete “jumento” de um dicionário reeditado agora pela terceira vez e dedicado à arte românica no seu aparato fantasmagórico de símbolos. O autor é um renomado historiador da arte, Olivier Beigbeder, que há muito tempo tem explorado esse horizonte de mil temas, começando precisamente pelo jumento que, na Bíblia, goza de uma ótima fama.
O rei-messias cantado pelo profeta Zacarias (9,9-10) avança cavalgando um jumento, que era o “veículo” régio para desfiles em tempos de paz, ao contrário do cavalo guerreiro e agitado. No rastro dessa passagem bíblica, Cristo entra em Jerusalém no Domingo de Ramos sustentado por “uma jumenta acompanhada de um jumentinho” (Mateus 21,4-5).
Depois, há o jumento oracular do profeta pagão Balaão (Números 22), e não se pode ignorar o jumento apócrifo que, com o boi, aqueceria o recém-nascido Jesus ou aquele que conduziria a Sagrada Família ao Egito. Na linha dessa livre criatividade, os artistas medievais chegam até a compor uma orquestra “bestial” com o jumento que toca lira...
Muitas vezes, nos escapa o significado metafórico dessas iconologias ambíguas e até mesmo esotéricas. O estudioso francês as coleciona no seu dicionário, que tem dois extremos alfabéticos muito mais decifráveis, como o cordeiro e o zodíaco, mas anexando também todo um bestiário de forte impacto, como o leão ou a serpente, ou os mais raros elefantes e macacos.
Mas, naturalmente, vai-se muito além da zoologia, porque os escultores medievais têm um repertório tradicional sem limites à sua disposição. Se, por exemplo, passarmos para a botânica, o verbete “árvore” ocupa cerca de 30 colunas, porque a própria Bíblia oferece um pitoresco alfabeto “verde”, sempre de natureza simbólica.
Igualmente triunfal é a gematria, ou seja, a leitura mística dos números, com um repertório fascinante, que tem seus eixos privilegiados no 7 ou no 12, mas que também se aproxima da “trindade”. Esse horizonte se associa ao leque das figuras geométricas, do círculo ao triângulo ou ao cubo, e até ao zigue-zague, estudado por Beigbeder em todas as suas variações ao longo dos frisos e fitas decorativas, assim como são surpreendentes as “encruzilhadas”, às quais é consagrado um longo tratamento, porque elas brotam da cruz.
A figura humana tem todo o destaque que merece, em uma série de tipologias surpreendentes, como, por exemplo, os lutadores, o homem nu agachado ou acompanhado por um leão ou uma serpente, e até o acrobata que, dados os limites dos capitéis ou dos portais, torna-se um contorcionista ou um malabarista.
Também não há embaraço na representação grosseira, até mesmo brutal, da sexualidade, que tem sua variante eufemística na cauda ereta dos animais. A seleção de símbolos avança ainda para muitas outras tipologias que o autor identificou sobretudo nos edifícios sagrados românicos da França ao sul do Loire e do norte da Espanha. Elas se distinguem dos modelos góticos posteriores devido ao recurso ao repertório pagão e também a uma perspectiva apocalíptica mais marcante. É claro que não faltam os temas bíblicos, inseridos, porém, em uma luz escatológica, enquanto no gótico eles seriam relidos em chave cristológica.
Essa obra não é apenas um instrumento cultural, mas também teológico. Basta citar o que afirmava um importante teólogo do século passado, Marie-Dominique Chenu, por ocasião da edição italiana da sua fundamental “Teologia do século XII” (Jaca Book, 1992): “Se eu tivesse que refazer esta obra, já antiga, eu daria um lugar maior ao papel dos condicionamentos socioeconômicos, às evoluções das estruturas políticas feudais, aos movimentos comunitários, assim como reservaria um espaço mais amplo à história das artes, tanto literárias quanto plásticas: elas são, a seu modo, não apenas ilustrações estéticas, mas verdadeiros ‘lugares’ teológicos”.
Como apêndice e à margem do dicionário de Beigbeder, assinalamos uma espécie de álbum-catálogo que quer ilustrar a permanência do sagrado nas várias disciplinas artísticas na nossa contemporaneidade. Organizado por um especialista do setor, o crítico Mariano Apa, esses “Registros de arte” veem a alternância de autores e de contribuições bastante heterogêneos em um imponente acúmulo de dados, de imagens e de análises densas.
Temos um pouco a impressão de estarmos avançando em uma floresta com vegetação superabundante e luxuriante, na qual é árduo se desvencilhar, porque nem mesmo o mapa variado e complexo do índice que indica nada menos do que 15 itinerários não ajuda muito. O conjunto, porém, demonstra sem reservas a incidência do sagrado também em um território usualmente classificado às pressas como secularizado, desprovido do céu da transcendência e alheio à temática e ao imaginário religioso.
Olivier Beigbeder, Dizionario Simboli Romanici, Jaca Book, 375 páginas.
Mariano Apa (org.), Registri di arte. Le necessità del Sacro, Gangemi, 559 páginas.
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Iconografia sagrada, entre jumentos, árvores e formas geométricas. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU