O Papa: a questão do sul global é universal, pois trata-se da desigualdade que diz respeito ao futuro do mundo

O jornal "Il Mattino" entrevista o Papa Francisco. (Foto de arquivo, o Papa em Nápoles - 21-06-2019, Vatican Media)

21 Setembro 2022

 

“Alegria. Pensamento positivo. Resiliência. Generosidade. Essas são as qualidades de Nápoles que mais admiro". Assim falou o Papa Francisco em entrevista publicada por "Il Mattino" para o 130º aniversário do jornal napolitano. Muitos são os temas tratados: da guerra às dificuldades do Sul do mundo, da política como alta forma de caridade à praga do crime organizado até a devastação do meio ambiente, com particular referência à Terra dos fogos e às inundações na região das Marche
Francesco de Core e Angelo Scelzo.

 

A entrevista é publicada por Il Mattino, 18-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Santidade, Nápoles é uma metrópole que se debruça sobre o Mediterrâneo e, precisamente por isso, se debruça também sobre o seu pontificado. É, de fato, a bacia do mare nostrum, lugar de trânsito das migrações e, portanto, das grandes tragédias deste tempo, a área privilegiada das suas intervenções, ora centradas no trágico regresso da guerra no coração da Europa e sobre uma pandemia que, além de provocar lutos, parece ter atingido e abalado a humanidade por dentro.

 

Já estive em Nápoles. De alguma forma me lembra Buenos Aires. Porque me fala do Sul. E eu sou justamente do Sul. Viajei no Mediterrâneo, no mare nostrum, e vi os olhos dos migrantes com os meus próprios olhos. Vi medo e esperança, lágrimas e sorrisos carregados de expectativas muitas vezes traídas. Nunca poderei esquecer as palavras ditas a eles em Lesbos em 2016 pelo meu amigo e irmão, o Patriarca Ecumênico Bartolomeu: “Aqueles que têm medo de vocês não olharam em seus olhos. Aqueles que têm medo de você não viram seus rostos. Aqueles que têm medo de você não viram seus filhos”.

 

Quando penso no Mediterrâneo, Lesbos, Chipre, Malta, Lampedusa, penso que as terras banhadas por este mar são precisamente aquelas em que Deus se fez homem. Jesus nasceu aqui, este que foi seu berço está se transformando em um cemitério sem lápides, um mare mortuum. E por isso penso também que não devemos esquecer que o futuro de todos só será sereno se for reconciliado com os mais vulneráveis. Porque quando os pobres são rejeitados, Deus que está neles é rejeitado, e a paz é rejeitada.

 

É por isso que sempre alerto contra os que gostariam de tecer o mundo do medo, da desconfiança, dos muros e das guerras; em vez de confiança, pontes e paz. É fácil assustar a opinião pública incutindo o medo do outro. É mais difícil falar de encontro com o outro, denunciar a exploração dos pobres, das guerras que muitas vezes são amplamente financiadas, dos acordos econômicos feitos na pele das pessoas, das manobras ocultas para o comércio de armas e a proliferação de seu comércio. Mas isso é o que somos chamados a dizer como cristãos: raciocinar com um esquema de paz e não de guerra, de amor e não de ódio; mesmo nos momentos que nos parecem mais sombrios.

 

Mas como sairemos da guerra? Como será o mundo depois da guerra?

 

Hoje somos confrontados com a guerra na Ucrânia. E também com muitas outras guerras. São João Paulo II em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz em 2002, após o ataque às Torres Gêmeas, escreveu que a ordem quebrada não pode ser totalmente restabelecida, a não ser combinando justiça e perdão. Os pilares da verdadeira paz são a justiça e o perdão, que é uma forma particular de amor. Esse é o caminho. Há um tempo para cada coisa. Antes do perdão vem a condenação do mal. No entanto, é essencial não cultivar a guerra, mas preparar a paz, semear a paz. Não se resignar à ideia de que para vencer o mal é preciso usar suas mesmas armas. Como reiterei no encontro no Cazaquistão com os líderes religiosos, somente o diálogo é a via necessária e sem volta. E é preciso dialogar com todos.

 

Perante a vastidão dos problemas, cabe se perguntar se e qual o papel que Nápoles, o seu território e, por extensão, todo o sul da Itália podem ter, num renascimento repetidamente colocado na pauta, mas nunca realizado, ou pelo menos iniciado de forma concreta. O tempo da velha “questão meridional” também parece ter expirado, embora nunca nos cansemos de anunciar, de tempos em tempos, alguma iminente mudança de rumo.

 

Muitas vezes aconteceu, em nossa navegação como humanidade, que em vez de uma necessária mudança de rumo, nos contentamos, como escreveu Kierkegaard, com uma variação irrelevante e insignificante do cardápio do dia, o que o cozinheiro serve no navio, enquanto a rota permanecia sempre a mesma. Mas somos nós que traçamos a rota. Passo a passo. Com nossos pensamentos e com nossas ações. Carlo Levi, em seu livro "Cristo si é fermato a Eboli", escreveu que não pode ser o Estado a resolver a questão meridional, porque o que nós chamamos de problema meridional não é outro senão o problema do estado. Eu acrescentaria a isso que o Estado, os Estados, somos nós, com nossa capacidade (ou incapacidade) de construir juntos instituições, sistemas regulatórios e comportamentos (individuais e coletivos) que tenham como único fim o bem comum.

 

Aqui está a raiz dos nossos problemas: na falta de hábito de pensar no bem comum. Mas se olharmos para o tempo em que vivemos, estamos diante da possibilidade de uma mudança de rumo. Se penso em Nápoles, na sua história, nas dificuldades por que passou, penso também na extraordinária capacidade criativa dos napolitanos. E penso em como possa ser usada para tirar o bem do mal, a alegria de viver das dificuldades, a esperança mesmo onde parece haver apenas descarte e exclusão. Nesse papel de exemplo, penso que Nápoles possa se sentir chamada.

 

O tempo nunca expirou, sempre há tempo para mudar de rumo. E o tempo é também este. E desafia a todos nós. Como eu disse na hora mais sombria da pandemia, no momento extraordinário de oração na Praça São Pedro, pensando nas raízes do mal do nosso tempo: ávidos por ganhos, nos deixamos absorver pelas coisas e desnortear pela pressa. Não despertamos diante de guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente doente. Pensávamos que sempre permaneceríamos saudáveis em um mundo doente. Este é hoje um tempo de provação, um tempo de escolha. O tempo de escolher o que conta e o que passa, de separar o que é necessário do que não é. É o tempo de redefinir o curso.

 

Nápoles é, de certa forma, um paradigma da questão meridional na Itália. Mas o tema do Sul é universal. Diz respeito à desigualdade. A questão meridional é uma questão universal, diz respeito ao futuro de todo o mundo. Por isso, com a Laudato Si’ pedi para pensar num desenvolvimento sustentável e integral, novas formas de entender a economia e o progresso, e ressaltei as grandes responsabilidades da política, da economia, de cada um de nós. É por isso que repetidamente pedi e continuo a pedir, em nome de Deus, aos grupos financeiros e às organizações internacionais de crédito que permitam que os países pobres garantam as necessidades básicas de seus povos e perdoem aquelas dívidas tantas vezes contraídas contra os interesses daqueles mesmos povos.

 

Por isso continuo pedindo que as grandes empresas parem de destruir florestas, poluir rios e mares, intoxicar pessoas e alimentos. A dramática inundação na região das Marche, que provocou lutos, ruínas e dor em todo o país, representa mais uma confirmação de que o desafio climático merece a mesma atenção que a covid e a guerra. É preciso mudar completamente o registro e parar de impor, em nível geral, estruturas monopolistas que inflacionam os preços e acabam ficando com o pão dos famintos.

 

É por isso que continuo pedindo aos fabricantes e negociantes de armas que parem completamente com sua atividade, que fomenta a violência e a guerra, colocando milhões de vidas em risco. Assim como pedi aos gigantes da tecnologia que parassem de explorar a fragilidade humana para obter ganhos, e não favorecessem o aliciamento de menores na web, os discursos de ódio, as fake news, as teorias da conspiração e as manipulação política e que liberalizassem o acesso a conteúdos educativos.

 

Aos governos em geral, aos políticos de todos os partidos, pedi e continuo a pedir-lhes que trabalhem pelo bem comum, e a coragem de olhar para os seus povos, de olhar as pessoas nos olhos, de saber que o bem de um povo é muito mais do que um consenso entre as partes; que não escutem apenas as elites econômicas com muitas vezes são porta-vozes de ideologias superficiais que evitam as verdadeiras questões da humanidade. É preciso criatividade. Uma criatividade voltada para o bem. Para um novo modelo econômico. Os napolitanos têm muita criatividade. É importante direcioná-la para o bem. A rota é importante.

 

É difícil esconder como a esperança, em Nápoles e em todo o Sul, ainda é obscurecida por muitos fatores, em primeiro lugar a incidência nefasta dos fenômenos do crime organizado. Não se pode negar que essa planta ruim é alimentada, por sua vez, por uma série de distorções e fragilidades que põem em causa, quando não orientadas para o bem comum, as estruturas e instituições civis. O senhor mesmo, em sua visita à cidade em março de 2015, falou com Scampia sobre a corrupção que “cheira mal”...

 

É verdade. O crime organizado é uma praga. Atinge a todos. O Norte e o Sul do mundo. Eu disse isso em Nápoles: todos nós temos a possibilidade de ser corruptos, nenhum de nós pode dizer: “Eu nunca serei corrupto.” Há tanta corrupção no mundo! Uma coisa corrupta é uma coisa suja, uma coisa que cheira mal. Ou “spuzza” como eu disse naquela ocasião com uma palavra que lembra a palavra do dialeto piemontês "spussa". Como um animal morto que está se corrompendo, também uma sociedade corrupta “spuzza”. E também um cristão que deixa a corrupção entrar dentro de si "spuzza". Se penso em Nápoles, na Campânia, penso também em Dom Peppe Diana, em São Giuseppe Moscati, em Bartolo Longo, o apóstolo do Rosário. À coragem das escolhas. Com o perfume do bem. A esperança nunca deve ser ofuscada. Tudo pode ser redimido pelo bem. Uma conversão de rota é necessária.

 

Há tantas emergências nesta nossa terra. Vimos muitas delas refletidas em suas encíclicas sociais, a partir da “Laudato Si”. O drama da "Terra dos fogos" (zona do sul da Itália onde ocorrem incêndios causados por aterros clandestinos de resíduos tóxicos, NdT) é, nesse sentido, uma vergonha para a natureza, que os habitantes da região pagam caro e muitas vezes com a própria vida. As primeiras vítimas são crianças. Quando não adoecem ou morrem, veem o futuro impedido.

 

Tudo está conectado. Eu já disse isso muitas vezes. O drama da terra dos fogos está ligado aos tantos dramas que a terra sofre. E os nossos erros - é verdade - recaem sobre os menores, de quem estamos roubando não só o futuro, mas também o presente. É preciso partir novamente dessa consciência de que o mundo está interconectado. Isso significa não só reconhecer - a partir das consequências tão evidentes, tão visíveis - os erros que cada um cometeu (repito, cada um), mas também identificar novos comportamentos, buscar novas soluções que assumam essa verdade.

 

Não se pode agir sozinho. É indispensável que hoje cada pessoa e toda a comunidade internacional assumam como prioritário o empenho ecológico com ações coletivas, solidárias e que olham para longe. E é indispensável que as novas gerações não deixem que o seu futuro seja roubado por quem as precedeu. Gosto de recordar aqui uma reflexão de um santo latino-americano – Santo Alberto Hurtado – que certa vez se perguntou: o progresso da sociedade será apenas chegar a ter o último modelo de carro ou comprar a última tecnologia do mercado? Nisso consiste toda a grandeza do homem? Não há nada mais do que viver para isso? Não, isso não é progresso. Todos nós fomos criados para algo maior!

 

Justamente a condição das crianças, ou dos muito jovens que estão chegando à vida ativa, é o drama mais intolerável de uma cidade muitas vezes celebrada pelo bom coração e alegria de sua gente. O submundo em Nápoles abre seu terrível recrutamento desde os anos da infância. As "baby-gangues" são uma realidade triste e dramática que muitas vezes está diretamente envolvida em episódios de violência e abuso. Sabemos o quanto o senhor se preocupa com o destino das crianças e em geral de todas as fragilidades – até os idosos – que sofrem assédios e violências...

 

Repito: o submundo não é apenas um problema em Nápoles. Para mim, a verdadeira cara de Nápoles é outra. É a de gente boa, acolhedora, generosa, hospitaleira, criativa no bem. É a de suas belezas naturais de seu golfo, que encantam quem teve o privilégio de vê-las, permanecendo encantado e mantendo o desejo de poder voltar um dia. É verdade, porém, que também podemos partir de Nápoles para falar do ultraje feito contra as crianças quando são privadas da sua inocência, roubadas da sua infância, para as conduzir no caminho do crime.

 

Não devemos descarregar nossas culpas nos pequenos. Muitas crianças no mundo nem sabem o que é escola, e muitas vezes caem nas mãos de criminosos que as educam para o crime, a violência e até a guerra. Vamos pensar nas crianças-soldados. Como a infância é arrancada à força de suas vidas, e sua inocência violada, seu futuro transformado em um labirinto. Cada uma delas é um grito de dor que se eleva a Deus e acusa aqueles que colocam as armas em suas pequenas mãos. Todos somos responsáveis por isso, quando viramos a cabeça para o outro lado, quando dizemos a nós mesmos que essa tragédia (crianças-soldados, crianças aliciadas pelo crime organizado) não nos diz respeito.

 

Para isso, também para isso, deveríamos partir de nós mesmos. Mudar a nós mesmos. Estimular uma mudança nos outros. Não é impossível. Todos podem mudar sua vida, mudar seu caminho. Quanto à fragilidade, todos somos frágeis. Mas a fragilidade, a aceitação do próprio limite, a consciência do que nos falta e o discernimento nisso entre o bem e o mal, é a mola que pode nos impulsionar na busca do bem comum. A sensação de onipotência é o que nos leva à negação do outro, dos outros; e também cortar nossas raízes, considerá-las um peso, um lastro. Quando isso acontece, quando traímos a confiança das crianças ou consideramos os idosos como um descarte de que devemos nos livrar, na verdade cultivamos o nosso descontentamento, arruinamos a nossa história e o nosso futuro.

 

Nápoles é uma cidade difícil de descrever e contar, com seus tantos clichês e estereótipos que muitas vezes distorcem suas conotações. "Il Mattino" é um jornal com sede em Nápoles e no Sul há 130 anos que desfruta de prestígio e autoridade. Na sua opinião, o que deve fazer um jornal que pretenda representar com dignidade e pontualidade os problemas dos seus territórios, as feridas mas também as realidades mais edificantes? O que o senhor espera de uma informação correta ao folhear um jornal todas as manhãs ou entrar em contato com o mundo da mídia?

 

De um jornal espero sempre uma atenção particular ao território, aos lugares que conta, às palavras que usa, às imagens que escolhe, ao que partilha nas redes sociais. Essas palavras, essas imagens, esses compartilhamentos ajudam a criar a identidade de um lugar. De um jornal espero a capacidade de conectar os fatos, a memória, o aprofundamento. Espero, através da leitura de um jornal, ser questionado pela realidade, desafiado a compreendê-la, a ler seus sinais de dinamismo.

 

Por outro lado, não gosto de respostas simples a perguntas complexas, de estereótipos, de conclusões precipitadas, de esquematismos artificiais, a saga da tagarelice, a soberba tentação de já saber tudo. É uma questão de responsabilidade. E também de humildade na difícil busca da verdade, na atenção para não oferecer uma falsa representação da realidade, na admissão do próprio limite. Disseram-me que a fundadora do vosso jornal, Matilde Serao, dizia justamente de si mesma, que ela só era e sempre quis ser uma humilde cronista da sua própria memória. É preciso não estar muito cheios de si para ter dentro de si o espaço necessário para acolher o relato da realidade. E guardá-lo na memória. É preciso cultivar a inteligência da dúvida, mas não duvidar da inteligência. E, portanto, estudar, aprofundar a realidade. Saber ver nela também a possibilidade de mudança para melhor. Não se limitar a uma narrativa quase pornográfica do mal, que hipnotiza, bloqueia.

 

Já disse uma vez que o bom jornalismo precisa de tempo. O tempo de escutar e de ver por si mesmo, o tempo de sair das redações, caminhar pelas cidades, encontrar as pessoas, gastar as solas dos sapatos; porque nem tudo pode ser contado por e-mail, telefone ou tela. E mesmo que seja difícil, é preciso fugir da tirania de estar sempre on-line, no celular e no computador. Fico sempre muito impressionado quando leio as histórias de jornalistas assassinados exatamente enquanto faziam seu trabalho e o faziam assim: com coragem, com paciência, com espírito de verdade. Eu sei que esta é a história de um jovem repórter seu, Giancarlo Siani. Ele havia escolhido o lado certo para ficar se posicionar. Pagou com a vida. Mas sua lição permanece. Permanecerá para sempre. É um exemplo para o jornalismo. É um exemplo para os jovens do Sul.

 

Muitos jovens do Sul, sem trabalho, são obrigados a emigrar para realidades produtivas mais ricas e em contextos socioeconômicos mais favoráveis. Entre estes, também aqueles que, recém-formados, não encontram saídas. E aqueles que permanecem acham difícil até mesmo construir uma família. O que o senhor poderia dizer a esses jovens? O senhor os convidaria a permanecer no Sul para dar uma contribuição construtiva à redenção de seus territórios?

 

Um modelo econômico errado está tornando muitos jovens um descarte, sem trabalho. Isso é grave. Isso deve ser denunciado. Isso precisa ser mudado. No entanto, eu diria aos jovens que tenham coragem. Para olhar além do horizonte. Não se pode viver sem coragem! A coragem de enfrentar as dificuldades do dia a dia. A coragem de tentar mudar o que precisa ser mudado, de não aceitar um destino errado como inevitável. Acho que um dos males do Sul também seja a resignação. Deixar as coisas continuem como sempre foram, mesmo quando sempre deram errado, adaptando-se ao mal até, tornar-se inconscientemente parte dele.

 

Ninguém deveria ser obrigado a migrar. Ninguém deveria ser obrigado a ficar. O desafio não é procurar o que não existe, muito menos esperá-lo como se espera ganhar na loteria; mas criá-lo, mudando o que existe. O mundo tem muito a aprender com o Sul do mundo em termos de solidariedade, de relação com o tempo, com a história, com a terra. É também por isso que pedi aos jovens economistas de todo o mundo que construíssem uma rede de pensamento em torno de um modelo diferente de desenvolvimento. E estou convencido de que os jovens do Sul global terão um papel muito importante nesse exercício coletivo de criatividade. Também os jovens de Nápoles e do sul da Itália.

 

O senhor também deve saber – porque se sabe que Nápoles nunca lhe foi indiferente – que a cidade é conhecida como a capital das contradições, e onde o bem e o mal nunca ficam parados. Aqui convivem esplêndidos testemunhos de solidariedade e altruísmo, com os jovens sempre no centro da cena, e brutalidade sem limites. Deve-se assinalar pelo menos a tentativa do submundo de impor não apenas um clima de violência, mas também símbolos e formas tendentes a uma espécie de perverso "assentamento cultural" do submundo. Às vezes, até mesmo a religião é instrumentalizada para esse fim.

 

O submundo sempre tenta se disfarçar. Impor uma forma distorcida de pensar. Subornar. Aproveitar a fraqueza dos Estados, criar consensos, infiltrar-se, apoderar-se até de alguns símbolos religiosos. Nápoles não é a única cidade a experimentar os dinamismos opostos do bem e do mal, e a aparente contradição de sua manifestação nos mesmos lugares. Para isso é preciso atenção, é preciso rigor. Se pensarmos bem, a contradição faz parte de nossas vidas. Para isso, serve um apelo constante à conversão. E é preciso perseverança no bem.

 

Nápoles é certamente, também visivelmente com sua população rica e colorida lotando suas ruas e vielas, a cidade da hospitalidade. Seu povo, historicamente, está acostumado a dividir o pão e não fechar a porta na cara de um forasteiro. Mas as crescentes dificuldades econômicas podem mudar o rumo dessa atitude natural, mas cada vez mais difícil. A igreja local, primeiro com o Cardeal Sepe e agora com Dom Mimmo Battaglia, entrou corajosamente em campo. Mas pode ser suficiente? E não há necessidade, também nesta frente, de mais passos em frente?

 

A Igreja está sempre em caminho. E há sempre o risco de desanimar diante das dificuldades: a tentação de fugir. Mas sempre devemos continuar. E só há um caminho, uma única via: é o caminho de Jesus. É curvar-se sobre os necessitados e estender a mão, sem cálculos, sem medos, com a ternura de um amigo solidário. É verdade, existem muitas dificuldades econômicas, em Nápoles como em outros lugares. Mas muitas vezes são os que têm menos que dão mais, são os pobres que nos ensinam a partilha, a proximidade, a ajuda mútua. A palavra solidariedade, por outro lado, assusta o mundo desenvolvido, muitas vezes incapaz de acreditar que quanto mais você der, mais lhe será dado. Mas esta deve permanecer a nossa palavra! Dentro da redescoberta dessa palavra está a bússola para novos passos em frente. Para reconstruir a comunhão que nos une e fazer comunidade do todo que somos.

 

Fica claro como as emergências que continuam “chovendo” sobre a cidade impedem a plena expressão de seu potencial. O Mediterrâneo representa agora a grande estrada capaz de marcar um novo futuro para todo o território. Para marcar essa virada - a cidade não esqueceu - foi precisamente a sua, completamente inédita, participação como "congressista" no encontro, há três anos, na Faculdade Teológica de Posillipo, sobre "Teologia depois da Veritatis Gaudium no contexto do Mediterrâneo". Nápoles foi a primeira parada após a assinatura histórica do fundamental documento sobre a "Fraternidade Universal", assinado em Abhu Dhabi com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyb.

 

Somente redescobrindo o que une, irmãos e irmãs, encontraremos a saída da crise que estamos atravessando. Isso não começou hoje. E isso pode encontrar aqui, no Mediterrâneo, um ponto de partida para a sua meada. Há mais de sessenta anos Giorgio La Pira dizia que a conjuntura histórica que vivemos, o choque de interesses e ideologias que abalam a humanidade tomada por um inacreditável infantilismo, devolvem ao Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir novamente as normas de uma Medida onde o homem deixado ao delírio e ao excesso possa se reconhecer (Discurso no Congresso Mediterrânico da Cultura, 19 de fevereiro de 1960, ed.). Em um tempo de pensamentos pequenos e ambições desmedidas, devemos redescobrir a "medida humana". E como disse há três anos em Nápoles, o Mediterrâneo é matriz histórica, geográfica e cultural do diálogo (junto com o acolhimento e a escuta) como critério, método, medida de um discernimento que continua.

 

Aquele caminho que teve uma etapa em Nápoles tornou-se, com a Encíclica "Fratelli tutti", publicada em 2020, um marco em seu pontificado. Nem mesmo com o conflito na Ucrânia e o longo, doloroso – e ainda não concluído – parêntese da pandemia, podemos falar de um caminho interrompido. A esperança é que a tragédia da guerra termine o mais rápido possível.

 

O caminho nunca é interrompido. Mas são necessários passos concretos para pôr fim à loucura da guerra na Ucrânia e às muitas outras guerras que ocorrem em todo o mundo. Precisamos de criatividade na construção da paz, não de visões ideológicas bloqueadas. Há necessidade de soluções globais, de lançar as bases para um diálogo cada vez mais amplo, de voltar a reunir-se em conferências internacionais pela paz, onde o tema do desarmamento seja central. Temos que olhar para as próximas gerações. Os fundos que continuam a ser destinados aos armamentos devem ser convertidos para desenvolvimento, saúde e nutrição, educação, conversão ecológica.

 

Num horizonte mais interno, para ficar na Itália, da qual o senhor é o Primaz, aproxima-se cada vez mais um importante pleito eleitoral. Muitos comentaram o "silêncio" da Igreja como uma forma não tanto de equidistância, mas de verdadeira distância da política. Essa é a interpretação correta?

 

Não, porque para a Igreja a política é a mais alta forma de caridade. A Igreja não está distante da política. Está distante de uma política do discurso destinada apenas a propaganda ou jogo de poder. Em vez disso, está perto dos problemas das pessoas. E acha que a função da política é trabalhar em conjunto para encontrar soluções para esses problemas. Para a Igreja, a política é em primeiro lugar a arte do encontro, é um serviço ao bem comum, à dignidade de cada pessoa, à vida de cada pessoa. A Igreja disse e repete quais são as coisas que importam. Eu acabei de falar delas também. Isso não é silêncio.

 

E, finalmente, sua relação pessoal com Nápoles. Quanto a cidade lhe relembra a sua Buenos Aires, metrópoles complexas e estratificadas, onde a dor e o sofrimento convivem com a alegria de viver, a beleza, a solidariedade, os impulsos? Duas cidades, poderíamos dizer, com o “número 10” nas costas, como a camiseta do mais famoso de todos, o argentino-napolitano Diego Maradona.

 

Buenos Aires é a cidade onde nasci. Conheço sua beleza e seus problemas. É verdade que Nápoles pode se lembrar algo dela. Mas são cidades diferentes. Também é verdade que o talento de Maradona pode representar de alguma forma o talento coletivo dessas duas cidades do Sul. A criatividade. Saber olhar além. O importante é sempre que o talento nunca seja um fim em si mesmo, mas sempre seja orientado um bom fim.

 

Existe algo pessoal que o atrai mais em Nápoles e no Sul, realidades que também têm uma relação tão profunda e sincera com a religião? O senhor sente uma afinidade, uma empatia humana e espiritual com as pessoas desses lugares?

 

A alegria. A forma de pensar positiva. A resiliência. A generosidade. Essas são as qualidades de Nápoles que mais admiro. Juntamente com a capacidade de ver realmente os pobres, de olhá-los nos olhos e de não ficar indiferentes. Acredito que existem muitas coisas a aprender com os napolitanos.

 

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