15 Setembro 2022
Bergoglio na cúpula inter-religiosa: "Não vamos resolver conflitos com as inconclusivas razões da força".
O metropolita Antonij: "Estamos assistindo à falsificação de fatos históricos. Há cada vez mais espaço para palavras cheias de ódio contra os outros povos e as outras religiões".
O apelo do pontífice pelas crianças vítimas dos conflitos.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Repubblica, 14-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Apenas algumas cadeiras separam o Papa Francisco do metropolita russo Antonij, mas a distância real, medida pelas palavras, é muito maior. Mais de oitenta líderes mundiais de várias religiões estão reunidos em Nur Sultan, a capital futurista do Cazaquistão. Um encontro periódico que quer testemunhar a possibilidade de diálogo e fraternidade para além das diferenças, mas a guerra de Vladimir Putin criou um sulco difícil de reconstruir.
Quando Jorge Mario Bergoglio aborda o tema do "desafio da paz", em seu discurso, ele imediatamente faz referência, ainda que implicitamente, à invasão russa da Ucrânia: "Nas últimas décadas", diz ele, "o diálogo entre os responsáveis das religiões se reportou principalmente a essa temática. No entanto, vemos nossos dias ainda marcados pelo flagelo da guerra, por um clima de confrontos exasperados, pela incapacidade de dar um passo atrás e estender a mão ao outro. É preciso um começo e é preciso, irmãos e irmãs, que venha de nós. Se o Criador, a quem dedicamos a nossa existência, deu origem à vida humana, como podemos nós, que nos professamos crentes, consentir na sua destruição? E como podemos pensar que as pessoas do nosso tempo, muitas das quais vivem como se Deus não existisse, sejam motivadas a empenhar-se num diálogo respeitoso e responsável se as grandes religiões, que constituem a alma de tantas culturas e tradições, não se empenham ativamente pela paz?”, pergunta Francisco. “Nós nunca justificamos a violência. Não permitimos que o sagrado seja explorado pelo profano. Que o sagrado não seja o suporte do poder e que o poder não se segure pela sacralidade! Deus é paz e conduz sempre à paz, nunca à guerra”, pontua o Papa.
A pouca distância está o representante do patriarca russo. Kirill havia anunciado sua participação nos últimos meses, o pontífice argentino gostaria de tê-lo encontrado, pela segunda vez depois do histórico encontro em Cuba em 2016 - o primeiro entre um Papa e um patriarca russo - para lhe pedir, como irmão, para fazer de tudo para acabar com a guerra. A guerra na Ucrânia mudou tudo. O Patriarca ofereceu a Putin, em tons apocalípticos, a justificativa espiritual da intervenção militar. No Cazaquistão, ele não poderia ter prometido nada a Francisco e, além disso, teria sido alvo de críticas até mesmo duras. Não só isso: como o país, que faz fronteira com a Rússia ao norte, criticou a guerra de Putin, talvez temendo um destino semelhante, a visita de Kirill só teria reforçado a apreensão. E assim, embora a Ortodoxia russa esteja em casa neste país de maioria muçulmana, não compareceu. E ele enviou seu "ministro das Relações Exteriores", o manso metropolitano Antonij, que nomeou recentemente para substituir Hilarion, um falcão que se converteu em pomba com a guerra na Ucrânia.
Antonij não descarta um novo encontro entre o Papa e Kirill, mas o pontua de condições que não o tornam fácil de realizar: "A possibilidade existe, mas esse encontro deve ser bem preparado", disse ele quando questionado por alguns jornalistas à margem da cúpula: "Temos que ver onde, quando, e o mais importante é ter um apelo (conjunto) no final, como fizemos em Havana." O representante russo lembrou que um novo encontro já estava em discussão na primavera passada e deveria acontecer em Jerusalém, depois "a Santa Sé o cancelou". A guerra na Ucrânia havia começado e o Vaticano temia que Moscou usasse aquele encontro para fortalecer sua posição.
"O Papa confirmou que é necessário ter outro encontro", disse agora o Metropolita Antonij, mas "devemos ver quando e onde: não discutimos os detalhes". Quanto à definição com que o Papa, nos últimos meses, rotulou Kirill - "coroinha do Putin" - "é claro que expressões desse tipo não são úteis para a unidade dos cristãos: foi uma surpresa, digamos... mas sabemos que é importante que dois líderes religiosos sigam em frente juntos”.
Na ampla sala azul do Palácio da Independência, entre cardeais, bispos luteranos e anglicanos, xeques, rabinos, monges budistas, Antonij esbanja cordialidade e tom amável, mas a substância do que diz cimenta a incomunicabilidade. Vai cumprimentar o cardeal secretário de Estado Pietro Parolin, assegura-lhe em bom italiano, diante dos jornalistas, a intenção de "poder ser útil neste propósito comum", recorda a audiência que o Papa lhe concedeu em agosto, "um diálogo muito cordial como sempre”. Depois, quando toma a palavra, não deixa muita margem para o diálogo. Primeiro lê uma mensagem enviada por Kirill: o patriarca evoca os "conflitos e o terrorismo" que se difundem hoje, para depois afirmar: "Assistimos à distorção dos fatos históricos e à manipulação sem precedentes da consciência de massa. É porque há cada vez menos amor, misericórdia, compaixão na sociedade. Cada vez mais ouvimos e lemos no espaço público palavras cheias de ódio contra povos inteiros, culturas e religiões.
O metropolita encerra: “Os contrastes políticos, econômicos e sociais se apoderam cada vez mais do mundo, mas agora somos chamados a construir um mundo onde não haja hegemônicos ou satélites, um mundo baseado nos valores morais superiores que o Senhor nos deu”. Mais ainda: há uma tendência de “criar o inimigo, aponta-lo com o dedo e apelar a todos para o ódio”. A comunidade mundial, segundo o representante russo, vive "um período difícil, um momento de polarização mais forte do que nunca, com a ameaça de um conflito global e até de uma catástrofe nuclear". Mas para o público "é difícil navegar no fluxo de informações". A responsabilidade, como transparece das palavras do metropolita Antonij, não deve ser atribuída a Moscou.
Presidente do Cazaquistão Qasym-Jomart Toqaev agradece a participação do Patriarcado russo, o Secretário Geral das Nações Unidas Antonio Guterres envia uma mensagem em vídeo para elogiar o esforço de diálogo entre os líderes religiosos, o Rabino Chefe de Israel Yitzhak Yosef voa alto com discurso todo espiritual, o grande imã de al-Azhar, Ahmed al Tayyib, critica as "ações políticas arrogantes que estão abalando os pilares da economia internacional, mergulhando países ricos e pobres em turbulências graves e inesperadas e afetam os meios de subsistência das pessoas". Em seguida, continuando a lista de problemas da sociedade atual, ele se aventura em uma análise dos danos causados pela liberação sexual: “O fato de uma mulher ir com outra mulher ou ter mais de um marido não é aceitável nem para os animais”, argumenta, “imaginem então para as pessoas de coração puro e mente sã”. Na sala, alguns mostram dificuldade em esconder o desconforto.
O Papa, por sua vez, parte da experiência da pandemia para almejar que a humanidade valorize a lição, graças também à contribuição das religiões. É preciso evitar, diz ele, tanto o fundamentalismo quanto a ideia, imposta no Cazaquistão soviético, de que a religião é um "fator desestabilizador da sociedade moderna". Defende a liberdade religiosa para "inspirar e iluminar as escolhas a serem feitas no contexto das crises geopolíticas, sociais, econômicas, ecológicas, mas, na raiz, espirituais, que atravessam muitas instituições atuais, também as democracias, colocando em risco a segurança e a harmonia entre os povos ". Analisa quatro desafios para a humanidade atual: a pandemia, o acolhimento dos estrangeiros, o cuidado do meio ambiente e da paz. A distância com o enviado russo é profunda. Entre as dobras de seu discurso, porém, Francisco não renuncia a indicar uma saída para o impasse: “Vamos nos empenhar ainda mais a promover e reforçar a necessidade que os conflitos se resolvam não com as inconcludentes razões da força, com as armas e as ameaças, mas com os únicos meios abençoados pelo Céu e dignos do homem", diz ao metropolita russo e aos demais líderes religiosos que o escutam: "O encontro, o diálogo, as negociações pacientes, que se realizam pensando em particular nas crianças e nas jovens gerações".
Um conceito retomado no final da missa que o Papa celebrou na praça da Expo de Nur Sultan, quando apelou pelos “muitos lugares atormentados pela guerra, especialmente a querida Ucrânia”: “O que ainda tem que acontecer? Quantas mortes teremos que esperar para que as contraposições deem lugar ao diálogo para o bem do povo, das pessoas, da humanidade? A única saída é a paz, e a única via para chegar lá é o diálogo”. Essa receita vale também para o novo surto de violência na fronteira entre a Arménia e o Azerbaijão, onde, entre acusações mútuas, nas últimas horas foram mortas cem pessoas de ambos os lados: também aí, "a paz, o diálogo e a concórdia prevaleçam sobre as disputas", disse Bergoglio. "Que o mundo aprenda a construir a paz, também limitando a corrida armamentista e convertendo os enormes gastos bélicos em apoios concretos às populações".
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Cazaquistão, o enviado do patriarca russo: "Um encontro entre Kirill e o Papa é possível, mas deve ser preparado" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU