24 Agosto 2022
Até agora obrigado a uma espécie de exílio forçado pelo Papa, excluído de todos os ritos e cerimônias cardinalícias, após a punição que Francisco lhe havia infligido - dois anos atrás - pelo caso do prédio de Londres sem esperar a condenação do tribunal vaticano, o cardeal Angelo Becciu no próximo domingo poderá participar do consistório, pessoalmente convidado pelo pontífice que, de fato, com um telefonema o teria reintegrado em suas prerrogativas cardinalícias, ainda que fontes vaticanas citadas pela agência de notícias Ascanews tenham apontado que se trata apenas de um convite para uma cerimônia. De qualquer forma, um movimento inédito e que precisa ser interpretado, quase uma forma de pedir desculpas por não ter respeitado o princípio da presunção de inocência, uma vez que a condenação antecipada de Francisco foi imposta após ter lido o furo de um semanário que antecipava as acusações do promotor da justiça do Vaticano (uma espécie de promotor).
A reportagem é de Franca Giansoldati, publicada por Il Messaggero, 22-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O anúncio dessa inusitada atitude papal foi feito ontem de manhã pelo interessado, o cardeal Becciu, no final da missa que celebrou em Pattada, sua aldeia natal na Sardenha. Falando a uma centena de fiéis, sobretudo turistas, desculpou-se por não estar com eles no próximo domingo, acrescentando que o Papa o tinha chamado para confirmar a sua participação no consistório que se abrirá no próximo fim de semana. De fato, esta nova peça constitui mais um passo para a reabilitação do Cardeal Becciu, esperando naturalmente o resultado do megaprocesso que se arrasta há um ano e meio e que se prospecta ainda bastante longo, também devido ao número de testemunhas que serão chamados a depor, entre as quais o Secretário de Estado, Pietro Parolin e o Adjunto da Secretaria, Monsenhor Peña Parra.
Becciu é um dos dez réus chamados para responder por vários crimes. Ele é acusado de suborno de testemunhas e peculato. Segundo a acusação, teria transferido 125 mil euros de fundos destinados à caridade para financiar as atividades de uma cooperativa da Caritas de Ozieri que garante trabalho a 60 migrantes e que é gerida por um dos seus irmãos. Até o momento pelos interrogatórios realizados no tribunal nos últimos meses, verificou-se que esse dinheiro ainda está na conta corrente da Caritas da Sardenha, à disposição do bispo de Ozieri e que tudo aconteceu com procedimentos regulares e autorizados. O bispo de Ozieri, aliás, reiteradamente, em vários comunicados de imprensa, afirmou a absoluta transparência e equidade, tanto que este ano a CEI - muito rigorosa no financiamento de projetos - destinou outros fundos à cooperativa Spes para continuar sua atividade caritativa numa das zonas mais pobres da Sardenha.
O cardeal Becciu confirmou que ter recebido o telefonema do Papa e não escondeu sua alegria ao reiterar sua fidelidade a Francisco. Por parte do Papa Francisco, a integração do cardeal no consistório no final de agosto, convocado para falar sobre a nova constituição apostólica, trata-se de um implícito mea culpa por um erro cometido. Há alguns meses, entrevistado pela rádio espanhola Cope, depois de ter admitido que esperava na inocência de Becciu (seu ex-colaborador próximo), Bergoglio havia especificado que aguardava o juízo da legislação vaticana. “Antigamente os juízes dos cardeais não eram os juízes de estado como acontece hoje, mas o chefe de estado. Espero sinceramente que ele seja inocente. Inclusive ele foi meu colaborador e me ajudou muito. Ele é uma pessoa que eu estimo muito, ou seja, minha esperança é que ele se saia bem. Mas, convenhamos, é uma forma afetiva da presunção de inocência. Além da presunção de inocência, quero que se saia bem. No entanto, será a justiça a decidir”. Como destacou Luis Badilla, diretor do site paravaticano Il Sismografo, o pontífice naquela ocasião se apegou a uma fórmula um tanto enigmática, falando de uma "maneira afetiva da presunção de inocência".
O caso Becciu foi formalmente aberto no Vaticano há dois anos, bem antes do início do processo, quando o Papa comunicou ao cardeal, no final de uma dramática e breve audiência, sua decisão inapelável de privá-lo dos direitos do cardinalato e o cargo na cúria (era prefeito da Congregação dos Santos). Uma punição amadurecida depois de ter lido a reportagem jornalística de um semanário italiano que antecipava as acusações do procurador do Vaticano, Alessandro Diddi.
Nos últimos meses, esses métodos no Vaticano foram amplamente criticados, tanto que agora muitos se perguntam quem foi que enganou o Papa e lhe levou a Santa Marta a matéria jornalística que está na origem da punição. O resto, então, veio por si só.
O processo em curso gira em torno do investimento da Secretaria de Estado num edifício de luxo em Londres, nesse meio tempo vendido a uma empresa estrangeira. Inicialmente o negócio era administrado pelo corretor Raffaele Mincione, depois substituído pelo corretor Gianluigi Torzi. Em 2016, a Santa Sé teve que assumir o controle do edifício, tentando transformar em vantajoso um investimento que se tornara desvantajoso e que havia dado a Torzi o controle total sobre o imóvel. Nesse ínterim, o substituto da Secretaria de Estado também mudou, e Becciu foi sucedido pelo venezuelano Peña Parra.
Durante o processo, Becciu divulgou uma longa declaração espontânea, que durou cerca de duas horas e meia, na qual explicou o modo de trabalho da figura do substituto da Secretaria de Estado (função que desempenhava na época). Um cargo bastante complexo que implica a gestão de todos os negócios em curso e que é chamado a corresponder-se com o Papa pelo menos uma vez por semana. O substituto tem autonomia, tem os poderes do Secretário de Estado e é de fato o verdadeiro motor de todas as atividades da Santa Sé, mas as decisões são sempre tomadas de acordo com o Pontífice.
Nessa situação, explicou Becciu, é preciso confiar nos colaboradores, principalmente quando se trata de questões como as administrativas. É aí que o Cardeal Becciu lembrou que Monsenhor Alberto Perlasca (seu principal acusador) já era chefe da administração da Secretaria de Estado antes que ele fosse nomeado Substituto em 2011, que certamente era muito competente e em quem ele confiava, mas que também tinha uma personalidade temperamental e complicada.
O cardeal apontou no tribunal que monsenhor Perlasca, na época, havia caído em depressão após ser afastado da Secretaria de Estado, a ponto de querer tentar o suicídio, e que foi justamente Becciu quem se desdobrou para ajudá-lo. A essa história emaranhada foi acrescentada uma amiga de Perlasca, Genevieve Ciferri, que se moveu de forma desordenada, ressaltando suas supostas relações com os serviços secretos, para que Perlasca pudesse ser reintegrado o mais rápido possível na Secretaria de Estado, a ponto de ameaçar o próprio cardeal de perder o título até o final de setembro de 2020 se não tivesse ajudado Perlasca. Este, entretanto, moveu uma ação civil e tornou-se o principal acusador de Becciu (e dos outros nove acusados entre financistas, sacerdotes, funcionários do Vaticano e Cecilia Marogna, a mulher que diz ter sido um terminal dos serviços secretos italianos para a libertação de sacerdotes sequestrados por jihadistas na África).
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Becciu reintegrado pelo Papa no Consistório, após dois anos reconhece sua presunção de inocência enquanto aguarda a sentença - Instituto Humanitas Unisinos - IHU