27 Setembro 2020
Um silêncio antinatural caiu esta manhã ao ingresso do cardeal Angelo Becciu no hall do Instituto Maria Bambina, a poucos passos da colunata de São Pedro, onde o cardeal da Sardenha concedeu uma entrevista coletiva após a retumbante renúncia na quinta-feira como prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e a renúncia aos direitos do cardinalato.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 25-09-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os jornalistas presentes - convocados por convite devido às restrições da Covid, mas que compareceram em grande número - procuraram estudar todas as expressões e gestos do prelado, personalidade influente do Vaticano, por oito anos substituto da Secretaria de Estado e, portanto, número três depois do Papa e o Secretário de Estado, Pietro Parolin.
Ele, Becciu, "dom Ângelo" para os mais próximos, entrou em silêncio, com guarda-chuva e máscara. De cabeça baixa, olhos de quem passou horas difíceis, passou uma imagem muito diferente daquela do cardeal superstar, com a resposta ou a frase brilhante sempre pronta, a que havia acostumado os jornalistas. As primeiras palavras foram proferidas com a voz embargada. O mesmo aconteceu durante o seu discurso, especialmente quando teve de relatar a acusação feita contra ele pela magistratura do Vaticano: peculato.
Ao cardeal não é imputada nenhuma responsabilidade pelo famigerado caso do Edifício de Londres, sobre o qual está em andamento uma investigação, mas sim de ter concedido empréstimos a fundo perdido em favor da cooperativa Spes, o braço operacional da Caritas de Ozieri, na província de Sassari (seu diocese de origem), cujo titular e representante legal é seu irmão Tonino Becciu.
Três vezes - segundo o que também foi reconstituído por uma investigação do jornal L'Espresso - o cardeal teria pedido e obtido os financiamentos: a última em abril de 2018 com o repasse de 100 mil euros retirados do Óbolo de São Pedro, o coletor das ofertas dos fiéis para a caridade do Papa, sob o controle direto do Substituto da Secretaria de Estado. Esse dinheiro deveria ser empregado para adequar as instalações de acolhimento dos migrantes, mas nunca foi usado, como explica uma carta do bispo de Ozieri, Corrado Melis, que Becciu imprimiu e exibiu na entrevista coletiva.
No meio disso tudo estariam também os fundos da CEI, cerca de 300 mil euros obtidos de 8x1000 (impostos, ndt), que o cardeal teria destinado novamente aos cofres da cooperativa para sua constituição e organização. Um belo projeto social, visto que a cooperativa emprega cerca de sessenta jovens na Sardenha. Algo raro em uma região atormentada pelo desemprego. “Pensei que, em sete ou oito anos que sou Substituto, nunca fiz um trabalho de apoio para a Sardenha”, explicou Becciu, reiterando que fez tudo por amor à sua diocese e com plena consciência de não cometer atos ilícitos. “Não sou uma pessoa corrupta”, repetiu várias vezes na entrevista coletiva.
Os promotores do Vaticano, no entanto, quiseram explicações sobre essas transações e enviaram um pedido de investigação à Polícia Financeira italiana, que relatou o possível crime. O cardeal não recebeu nenhuma notificação, por isso não está sob investigação: “Espero que os magistrados me chamem. Principalmente porque agora não tenho os direitos de um cardeal e, portanto, a obrigação de ser examinado apenas pelo Papa. Sou um cidadão como todos os outros. Eles que me chamem, estou pronto para esclarecer”.
Até à tarde da última quinta-feira ninguém imaginava sua saída de cena. Becciu apresentou-se à noite ao Papa, no Palácio Apostólico, para um encontro de rotina daqueles que todas as semanas cabem aos Chefes de Dicastério. Precisava que o pontífice assinasse os decretos para algumas causas de beatificação; até mesmo os funcionários e colaboradores mais próximos da Congregação estavam informados disso, porém, após uma audiência de 20 minutos, viram retornar o prefeito que não era mais prefeito. “Sinto-me um pouco atordoado, mas procuro ser realista. É algo surreal porque ontem, até às 18h02, me sentia amigo do Papa, fiel executor do Papa. E depois o Papa, falando, me diz que não tem mais confiança em mim porque os magistrados informaram que eu teria cometido atos de peculato”, começou o cardeal. “Admito que o Santo Padre estava em grandes dificuldades, quase sofria para me dizer isso. Insisti: ‘Diga-me’”.
“Aqueles 100 mil euros, é verdade, eu destinei para a Cáritas de Ozieri, mas fica a critério do Substituto utilizar verbas de um determinado fundo da Secretaria de Estado para financiar várias obras de caridade”, explicou o cardeal. Mas por que justamente em sua diocese? “Eu a conhecia e sabia que era uma situação de emergência por causa do desemprego. Aquele dinheiro não era meu, é da CEI. Telefonei dizendo: levem em consideração porque estão prestes a ser usados para uma bela atividade que emprega 60 famílias. Não deveria ter falado a favor de uma instituição que se engaja nesses termos? Estou sendo criticado por tê-la recomendado, mas peculato não existe”.
Além disso, os 100 mil euros "ainda estão lá" na conta da Caritas de Ozieri: a cooperativa está sendo mantida com os fundos do 8x1000 do bispo. Ninguém parece ter tocado na importante doação, reservada para um projeto pelos pobres: “Fui informado disso telefonando para o meu irmão e para o bispo. Eu senti um enorme peso ser retirado de minhas costas. Naquele momento, quando o Papa estava falando, até tive a dúvida de que meu irmão o tivesse gasto para outros fins. Então eu não insisti. Eu só disse: se não tem mais fé em mim, eu simplesmente afasto-me do meu mandato e pronto. Em vez disso, aquele dinheiro não foi usado”.
Becciu fala, portanto, de um "forte mal-entendido". “Espero que o Santo Padre se dê conta disso mais cedo ou mais tarde”. Por enquanto, espera que as águas se acalmem e depois tentará lhe explicar a situação. Certamente é difícil para Bergoglio revogar a decisão e conceder a Becciu os direitos do cardinalato novamente, começando pelo voto em um possível conclave. “O Santo Padre pediu-me que renunciasse aos meus privilégios de cardeal. Tudo bem, continuarei sem privilégios ... Algum canonista me explicará”.
Através dos advogados, o cardeal informa que está pronto para processar os jornais que escreveram "falsidades". “Vi que os jornais pintaram e bordaram bastante O objetivo é mostrar que Becciu enriqueceu seus familiares. Não enriqueci minha família, como eles eram antes são agora. Vocês podem vir a Pattada e ver: eles têm a mesma casa, o mesmo carro. O que escreveram são coisas não verdadeiras e estou pronto em qualquer lugar para prová-lo”.
Palavras também ecoadas pelos familiares do ex-chefe do Dicastério, que em nota conjunta assinada por seu advogado afirmam que as notícias veiculadas por alguns órgãos de comunicação "são infundadas e malevolamente falsas", com referências "fantasiosas e indemonstráveis".
Falsidades, disse ainda o Cardeal Becciu durante a conferência, são também as reconstruções sobre o suposto desvio do dinheiro da CEI ou do Óbolo para a empresa Angel's Srl da qual o seu irmão Mario, professor de Psicologia da Pontifícia Universidade Salesiana, é representante legal e sócio majoritário. Segundo o L'Espresso, o cardeal teria ajudado o irmão a produzir e comercializar a “Birra Pollicina” (marca de cerveja, ndt), fechando acordos com entidades eclesiásticas ou religiosas para a compra do produto, embolsando uma comissão de 5%. "O que eu tenho a ver com cerveja? Eu nunca dei um centavo. Ele me deu para experimentar, claro. Bebi com outros, disseram que era "boa" e expliquei de onde vinha, mas não fiz propaganda nos institutos do Vaticano. Quem quer que tenha feito este artigo estava determinado a mostrar que sou corrupto. Considero uma piada ofensiva”.
O cardeal também é direto quanto à acusação de ter favorecido o outro irmão marceneiro para trabalhos nas nunciaturas de Angola e de Cuba, onde foi representante do Papa. “Quando eu era núncio em Angola, reformei a casa. Os marceneiros lá eram mais ou menos, então chamei o meu irmão e lhe pedi para que me fizesse duas portas e as mandasse para mim. Só isso!". Também em Cuba eu estava reformando a Nunciatura e “era difícil encontrar material, um pedreiro competente... Pensei que eu tinha um marceneiro em casa. Eu disse ao meu irmão: vem!”. Alguém na sala apontou o conflito de interesses: “O que eu deveria fazer? Procurar em toda a Itália?”, Becciu respondeu. “Eu não era Substituto, pedi à Secretaria de Estado e eles autorizaram-me. O meu sucessor ficou muito satisfeito com o serviço”.
O ex-prefeito dos Santos se diz disposto a repetir tudo diante dos magistrados: “Não tenho medo de ser preso”, disse. Em relação a Francisco garantiu que não tem nenhum ressentimento: “Ontem perguntei a ele: devo sair do apartamento? Não, ele me disse, por todo o trabalho que fez por mim, eu o deixo para você”. “Renovo a minha confiança no Santo Padre, prometi-lhe fidelidade até ao fim. Aliás, ao me tornar cardeal, prometi dar minha vida até o derramamento de sangue. Nunca o trairei, estou pronto a dar a minha vida por ele”.
Segundo o cardeal, as relações também são boas com o cardeal Parolin com quem, meses atrás, foram soltas faíscas para o caso do imóvel da Sloane avenue. O secretário de Estado definiu as negociações como "opacas" e Becciu respondeu irritado. Hoje, ao contrário, ele disse: "Parolin foi o primeiro telefonema que recebi esta manhã." O cardeal, por outro lado, passa por cima da relação com o seu sucessor, o venezuelano Edgar Pena Parra, atual Substituto: “Ele está muito ocupado, eu também. Nós nos encontramos algumas vezes, depois houve a pandemia”.
Becciu não descarta a hipótese de que haja "inimigos" dentro dos muros leoninos que quiseram apertar o cerco até que sua cabeça caísse. No entanto, esclarece: “Não tenho a mentalidade do complô. Faço-me algumas perguntas, se não tenho provas não acuso ninguém”.
A última pedra que o cardeal tira do sapato é para o "colega" australiano George Pell, que acaba de sair de um processo por abusos contra menores e treze meses de prisão para depois ser declarado inocente. Em uma nota, Pell quase parabenizou o Papa pelo trabalho de limpeza nos "estábulos do Vaticano". Becciu não esconde desentendimentos anteriores com o ex-ministro da Economia do Vaticano: “Houve algum conflito profissional com o Cardeal Pell, porque ele queria aplicar leis que não haviam sido promulgadas. Eu sabia que ele tinha diferenças comigo e pedi uma audiência. Ele me fez um interrogatório: se eu era a favor da reforma, contra a corrupção, se apoiava a Apsa ou a Secretaria de Economia. Despedimo-nos bastante bem, depois em uma reunião em que o Papa estava presente, enquanto falávamos sobre contas e eu procurava expor uma minha ideia, ele me calou: ‘Você é desonesto’. Gritei: ‘Não se atreva a dizer coisas assim, quando criança fui educado para ser honesto’ O Papa me disse: ‘Você fez bem’. Quando ele foi denunciado e obrigado a retornar à Austrália, escrevi um bilhete para ele. ‘Se você ainda me considera corrupto, não posso fazer nada’".
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Becciu se defende: “A acusação de peculato é surreal. Não sou corrupto, posso provar isso em qualquer lugar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU