“O putinismo está passando [pelos poros] e é bastante preocupante como isso atravessa o campo político de maneira ampla não só na Europa Ocidental, sobretudo, mas também no Brasil”, afirma o pesquisador
Enquanto alguns interpretam a guerra entre a Rússia e a Ucrânia como parte de um fenômeno do declínio dos EUA e da ascensão da China na disputa pela hegemonia geopolítica, Bruno Cava propõe outra leitura, que compreende a guerra atual entre os dois estados europeus não como uma consequência de disputas meramente estatais, mas como uma reação russa às manifestações e protestos sociais que estão ocorrendo em várias partes do mundo desde 2010 e que chegaram na Ucrânia em 2014, e ameaçam o espaço pós-soviético. "Esse tipo de manifestação começou a ameaçar a propagação pelo espaço pós-soviético e se tornou um paradigma e um protesto bem-sucedido, enquanto na Rússia os protestos foram reprimidos violentamente, gerando prisões em massa e proibição do direito de organização. A oposição, aos poucos, foi se inviabilizando e vários dos opositores foram perseguidos e alguns envenenados por armas químicas e materiais radioativos por Putin e seus oligarcas e brutamontes que eram da KGB e agora são da FSB, que é um serviço de Estado. Isto é, um governo dentro do governo, uma espécie de milícia que comanda a Rússia e que reprime as manifestações no país", disse.
Apoiado em análises que também estão sendo feitas por pesquisadores ucranianos e russos exilados, Cava afirma que depois de Maidan [1], manifestações que ocorreram na Ucrânia entre 2013 e 2014, "Putin ficou tão preocupado e consternado com a possibilidade de isso contagiar os demais países que organizou uma Santa Aliança anti-Maidan. Assim como a Santa Aliança original – e é santa porque vem com essa dimensão do direito divino – no Congresso de Viena, a Santa Aliança comandada pela Rússia deveria restaurar o status quo, ou seja, acabar com todas essas interferências vindas de manifestações democratizantes, de manifestações por direitos e por direitos das minorias".
Segundo ele, a Aliança proposta por Putin, com o apoio do Patriarca Kirill, "é extremamente fundamentalista, mistura religião com política de uma maneira muito imbricada; o patriarca da igreja ortodoxa, Kirill, é putinista e essa Santa Aliança é contra os direitos LGBT. A Aliança tem um braço na igreja ortodoxa russa e por isso é santa e visa a restauração do verdadeiro cristianismo, da terceira Roma. Eles anunciam que têm um direito divino dessa região, um direito conquistado, inclusive defendendo a Europa como Esparta defendeu a Grécia contra os Persas na guerra do Peloponeso".
O projeto russo, adverte, "que ainda não aconteceu, é juntar a China nisso, e é aí que as coisas vão ficar extremamente tensas, com risco de alastrar a guerra na Ucrânia para outras regiões do globo, porque a China é muito mais imbricada na globalização do que a Rússia".
Esta tese foi apresentada por Cava na palestra virtual intitulada "Guerra na Ucrânia e as novas linhas da globalização. Impactos globais e no Brasil", no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a qual reproduzimos a seguir no formato de entrevista.
Bruno Cava em entrevista no IHU (Foto: Cristina Guerini | Acervo IHU)
Bruno Cava é graduado em Engenharia pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, pela qual também é mestre em Filosofia do Direito, e oferece cursos livres presenciais e on-line por meio do canal Horazul (Youtube).
É autor de livros como A multidão foi ao deserto (Annablume, 2013), A constituição do comum (Revan, 2017), com Alexandre Mendes, e A vida da moeda; crédito, imagens, confiança (Maudad, 2020), com Giuseppe Cocco.
IHU – Como você tem analisado e refletido sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia e seu impacto na globalização?
Bruno Cava - É fundamental este tema [da guerra]. Existem placas tectônicas pelo mundo se mexendo com grandes repercussões, de maneira que a guerra não é só a da Rússia na Ucrânia, mas ela gera ondas de choque e nos força a pensar o que está acontecendo e como podemos compreender e agir diante dessa situação. E digo mais: nos próximos anos, essa grande questão – ou a questão das questões – vai se ampliar e se aprofundar. É o momento de quem não está engajado, pelo menos nas principais discussões, começar a se aproximar desse tema porque ele diz respeito não somente à região do Leste Europeu, da Rússia, mas, também, ao mundo como um todo, ao futuro da globalização que está sendo decidido neste momento.
[Carl von] Clausewitz, quando tratava da guerra no livro chamado “Da Guerra” (On War), falava de “neblina da guerra” e ela não é só uma neblina epistemológica, no sentido de que temos necessidade de conhecer e ter acesso às informações da realidade, mas é também uma neblina ontológica, no sentido de que a contingência é irredutível. Todos os prognósticos e previsões são uma grande abertura para o imprevisto, para o desconhecido. Então, é um momento, ao mesmo tempo, muito perigoso, mas com potencialidades de pensar uma reabertura e uma recomposição de formas de fazer política e oferecer apoios e suportes às resistências, sobretudo à resistência ucraniana, que não é um mito, mas uma realidade vívida que está acontecendo neste momento.
Para explicar a guerra, vou manter um pé nos fatos que estão sucedendo, na conjuntura, mas não os dois pés na conjuntura. Quem se propõe a pensar e a refletir e faz isso por ofício é pesquisador acadêmico, não deve colocar os dois pés nela. Se colocamos os dois pés na conjuntura, acabamos plugando o nosso cérebro e nosso estômago no noticiário e a tendência é apenas reagir aos estímulos, às espumas dos fatos, às migalhas do noticiário. É necessário, sim, ter um pé na conjuntura e outro em um estudo de maior alcance, maior horizonte, encontrar um tempo para densificar, para adensar as reflexões, inclusive voltando aos clássicos, e conseguir lê-los nestes momentos de grandes crises, porque eles ganham uma nova coloração e uma nova luz e permitem que encontremos achados teóricos e conceituais que não tínhamos.
É preciso classificar que esta é uma guerra de agressão de uma nação europeia, que é a Rússia, contra outro estado europeu, que é a Ucrânia, ou seja, é uma guerra europeia, de dois estados europeus, sendo que a população civil do país invadido, a Ucrânia, é quem está sofrendo os piores terrores neste momento. A assimetria não é só do fato de que um estado agrediu o outro e provocou a guerra, mas há uma assimetria do ponto de vista das vítimas, que estão concentradas entre os ucranianos. Não podemos deixar de adjetivar isso – temos que tomar cuidado quando adjetivamos uma guerra para não dizer que é uma guerra em abstrato, genérica.
As guerras não são genéricas; elas têm linhas valorativas que não podem ser deixadas de lado. Isso é importante. Se quisermos também qualificar a paz, e não uma paz abstrata, é preciso entender como a resultante dessa guerra pode chegar a uma paz que interessa à justiça, à estabilidade das relações e à manutenção dos direitos civis, políticos e sociais dos envolvidos. Sem falar na apuração dos crimes de guerra, porque a guerra não é “vale tudo” desde muito tempo, sobretudo desde a Convenção de Genebra. Uma guerra tem regras mínimas que têm que ser respeitadas, e essas regras são fiscalizadas por organismos internacionais e colocam seus infratores a processos de julgamentos internacionais. Isso também não pode ser deixado de lado durante uma guerra. A guerra não é uma luta de todos contra todos; não é o estado de natureza. Ela possui regras mínimas que devem ser observadas.
Como vou ter um pé na atualidade, na conjuntura, e outro em uma reflexão de maior horizonte, que vai tentar buscar insumos inclusive de clássicos do pensamento político e do pensamento sobre a guerra, pretendo começar fazendo uma crítica à geopolítica, que tem sido uma chave constante de inteligibilidade e tem sido uma espécie de bordão que vem sendo martelado nas explicações sobre a guerra na Ucrânia. Ou seja, vou falar sobre o que significa colocar a geopolítica como uma ciência explicativa das principais causas estruturantes do conflito para a compreensão. Quais são as premissas e pressupostos que estão implicados quando colocamos o problema a partir da geopolítica? Não tenho tempo de fazer uma revisão completa e não vou entrar em discussões minuciosas de relações internacionais, mas vou concentrar em um aspecto que está bastante presente, inclusive, em alguns debates brasileiros e em algumas publicações de artigos e notícias de linhas editoriais no Brasil, que é a chave geopolítica da dita Armadilha de Tucídides. Esse vai ser meu ponto de entrada na crítica geopolítica.
Depois, vou me apoiar em alguns autores bastante implicados no conflito, autores ucranianos, ou russos exilados, que emigraram depois do início da guerra ou na cascata de fatos que levaram até a guerra nos últimos anos, e que publicam em sites um pensamento crítico a respeito dessa tentativa de reduzir o conflito à discussão do sistema de segurança e de estabilidade de estados nações ou do sistema interestatal, que é a chave geopolítica que coloca os estados como os principais protagonistas da reestabilização ou da busca da paz. Apoiado nesses autores, vou atualizar essa discussão.
No terceiro momento, farei a retomada do debate que aconteceu no final da Guerra Fria, em 1991, depois da queda do Muro de Berlim, do esfacelamento da União Soviética, que, inclusive, gerou a independência da Ucrânia enquanto nação livre. Qual seria a alternativa para sair da Armadilha de Tucídides, deslocar os problemas e pensar de outro ângulo? Essa é a terceira parte da apresentação e vou resgatar uma obra de Antonio Negri e Michael Hardt, chamada Império. É uma obra maldita em determinados círculos das relações internacionais, mas me parece um grande antídoto para as ciladas e arapucas em que estamos metidos quando traçamos o debate de maneira estadocêntrica ou geopolítica. Já adianto que há, obviamente, esquematizações e um recorte muito particular da teoria e da história e, por isso, existe o debate para se alguém quiser contestar o que estiver colocado.
IHU – Quais são suas críticas à chave geopolítica da dita Armadilha de Tucídides e como ela tem sido retomada para analisar a guerra em curso?
Bruno Cava – Tucídides foi um historiador ateniense do século V a. C. e tem uma obra que é, talvez, o primeiro grande clássico da historiografia, uma historiografia que se preocupa em encadear os acontecimentos e buscar por causas profundas e estruturais para esses acontecimentos. Portanto, desenvolvendo uma espessura explicativa que vai além da espuma dos fatos e tenta buscar vínculos profundos em várias camadas. Tucídides escreveu, dentro dessa sua metodologia, que à época era inédita, a “História da Guerra do Peloponeso”. Essa foi uma guerra que durou quase três décadas e conflagrou a Grécia antiga: opôs duas potências que buscavam a conquista da hegemonia na região, que foram as pólis – as cidades-estado – de Atenas e de Esparta.
Tucídides é o historiador por excelência dessa guerra e escreveu essa história enquanto ela estava em andamento, em 430, 420 a. C. É dessa obra de Tucídides que há um resgate: resgata-se a mesma estrutura e o mesmo esquema explicativo de troca de hegemonia, aplicando-o à atualidade, em que o conflito não seria mais entre Atenas e Esparta, mas, sim, um conflito de hegemonia entre os Estados Unidos e a China. Obviamente que o bloco da China é mais amplo, assim como não são só os EUA, mas haveria também a União Europeia. Mas o bloco da China inclui a Rússia e, um pouco mais distante, também incluiria a Índia e o Brasil na forma dos BRICs, com a África do Sul, embora a aliança mais próxima - os melhores amigos do ponto de vista militar - é, de fato, a Rússia, dentro desse esquema explicativo.
A operação atual consiste em trazer o esquema explicativo de Tucídides, que foi feito na Grécia antiga, para a explicação atual. Quem fez isso e teve uma grande repercussão e está presente nas discussões é Graham Allison, que escreveu o livro “Destined for War”, que traduzido significa “Destinado à guerra. Pode a América e a China escaparem da Armadilha de Tucídides?”. Esse livro foi devastador e foi adotado, na China, como livro de cabeceira do governo chinês, a ponto de ser um tópico da conversação entre Jinping e Trump em 2018. Os chineses consideram essa obra uma descrição fiel da situação geopolítica contemporânea. Ele foi traduzido para o português pela editora Intrínseca, em 2020, com um título atenuado: “A caminho da guerra”. Ou seja, não se colocou a guerra como destino, mas como caminho, isto é, uma rampa infernal dos fatos estariam nos levando à guerra. O editor em língua inglesa foi mais pessimista, enquanto o editor da versão brasileira foi menos pessimista, indicando que poderíamos interromper esse caminho ou escapar, de fato, da Armadilha de Tucídides.
(Fotos: Divulgação)
O que é a Armadilha de Tucídides e por que ela está tão imbricada com as apreensões com a guerra da Ucrânia? A discussão da Armadilha de Tucídides tem a ver com uma pergunta: existiriam guerras inevitáveis? Isto é, a categoria da guerra é inevitável. Haveria guerras que são evitáveis por uma série de razões, mas haveria guerras em que as forças estruturais e os rearranjos de poder em larga escala e longa duração a tornariam como algo inexorável. São guerras inevitáveis. Então, qual é a explicação de Tucídides? Segundo os intérpretes geopolíticos de uma historiografia que se apropria da história da guerra do Peloponeso para explicar o mundo contemporâneo e a globalização contemporânea, Tucídides diz que a guerra do Peloponeso seria uma guerra inevitável porque há razões mais profundas, causas em camadas muito densas e subterrâneas que estariam movendo os fatos e os atores na conjuntura para um conflito inevitável.
Por quê? De onde vem a guerra do Peloponeso? Essa é uma guerra civil entre as cidades-estado, uma guerra interna ao mundo grego. Mas, antes da guerra do Peloponeso, os gregos venceram uma guerra em uma aliança ampla em que juntou todas as pólis poderosas da Grécia antiga contra o Império Persa, com batalhas que ficaram muito famosas. Uma delas é a Batalha das Termópilas, naquele desfiladeiro, onde 300 mil homens de Esparta e 700 mil de Téspias lutaram até o último soldado – e morreram todos – para atrasar a invasão Persa no território grego. Isso propiciou que as cidades gregas se preparassem e se reagrupassem para poder enfrentar uma longa guerra de atrito e desgaste no qual o exército persa, com cerca de 300 mil almas, foi derrotado a longo prazo.
Depois da vitória sobre a Pérsia, a Grécia entrou em uma fase de guerra interna. Por que essa guerra aconteceu e, segundo Tucídides, era inevitável que acontecesse? Porque havia um equilíbrio, um balanço de poder entre as pólis depois da vitória sobre a Pérsia, de maneira que esse equilíbrio garantia a estabilidade para a região. Nenhuma cidade pretendia ampliar o seu poder de maneira a rebaixar as cidades vizinhas. Mas Atenas investiu em poder naval, no comércio, e ganhou primazia econômica gerada pelas rotas de comércio e pelo sucesso da colonização; primeiro, por meio de entrepostos e, depois, de colônias de povoamento que vão se espalhando, sobretudo nas ilhas Jônicas, do outro lado da região de Atenas, que fica na Ática.
Atenas, à medida que cresceu e conseguiu prosperidade – este é o Século de Ouro de Péricles, o século V a. C. –, construiu grandes obras em Atenas e o excedente econômico era tão grande que propiciava o pagamento de uma classe de cidadãos para ficar dedicada somente à filosofia e à política – e isso acontece somente porque o Estado é muito rico e pode financiar, portanto, filósofos, artistas e políticos profissionais. À medida que a Grécia começou a expandir, começou igualmente a desequilibrar a região e a se tornar uma potência hegemônica porque, conforme foi ficando mais rica, pôde comprar mais tropas e investir, sobretudo, na marinha de guerra, em uma região com muitas ilhas e com um litoral extenso, o que conferia uma vantagem competitiva grande e começava a ameaçar, inclusive, o quinhão geopolítico das demais pólis.
Uma dessas pólis, que era muito poderosa na península do Peloponeso, era Esparta, que era uma potência terrestre, mas que não investiu no comércio nem na marinha; pelo contrário, sempre teve um exército muito forte. Na medida em que Atenas começou a se expandir, passou a pegar regiões e espaços próximos de Esparta. Esparta considerou a expansão ateniense um absurdo e uma arrogância por parte de Atenas a sua tentativa de se tornar hegemônica. Além disso, considerou esse processo uma ofensa e uma humilhação, considerando Atenas ingrata porque Esparta havia se aliado a ela e juntas venceram o Império Persa. Esparta contribuiu com sangue, com mártires, e a expansão de Atenas atacava o senso de gratidão.
Sobre esse processo, tem uma passagem famosa em “História da Guerra do Peloponeso”, em que Tucídides diz que a ascensão de Atenas e o medo que ela gerou em Esparta, assim como a percepção de Esparta de que estava perdendo a posição – sobretudo na península do Peloponeso, porque estava sendo cercada por Atenas – e se sentia ofendida – isto é, a sua percepção subjetiva –, levou inevitavelmente Esparta a contestar essa tentativa de ascensão hegemônica. Segundo Tucídides – numa linha interpretativa, mas podemos discutir outras -, isso levou a Grécia antiga a estar destinada à guerra, a uma guerra que oporia essas duas potências.
(Foto: Reprodução | Youtube)
Atenas e seus aliados contra Esparta e seus aliados. Assim se deu um período de enorme tumulto fratricida entre os gregos, que durou quase 30 anos, devastando os territórios, com perdas enormes da população civil e com a derrota de Atenas e o fim do Século de Ouro. O fim da guerra ocorreu, primeiro, porque Atenas foi atingida por uma peste que matou boa parte da população e, inclusive, o próprio Péricles, seu grande líder, morreu de pneumonia, e, segundo, pela aliança que Esparta fez com os persas, que acabou desequilibrando as forças em conflito. Esparta vence e não só mantém sua hegemonia no Peloponeso, como a expande.
Qual é a transposição da Armadilha de Tucídides? Recapitulando: a Armadilha de Tucídides é a ideia de que existem guerras inevitáveis, que são dadas por forças estruturais, e que elas têm a ver com a mudança da potência hegemônica. Quando há o declínio de uma potência e a ascensão de outra, existe uma armadilha em que caímos, que é aquela potência que está em declínio e não aceita a situação e reage de maneira violenta porque, subjetivamente, entende aquela situação como humilhação, como perda de uma posição que é de direito dela. Ela entende que a ordem internacional na qual ela existe enquanto potência está sendo ameaçada e, portanto, seu direito adquirido está sendo ameaçado. Então, não é só uma questão objetiva de não se deixar ser ultrapassado, mas uma questão subjetiva de não aceitar a perda da glória, de não aceitar a perda da sua posição.
Quando Graham Allison e todos os seus seguidores e epígonos – que estão espalhados em todo o espectro político, da esquerda à direita e que não abrange somente a escola realista, mas também teóricos marxistas da teoria do imperialismo, ou os teóricos da economia mundo – reabilitam a Armadilha de Tucídides, dizem que hoje também existe uma potência que está em declínio, que é os EUA – essa é uma tese antiga, tem mais de cem anos, de que os valores ocidentais e liberais seriam valores degenerados e que estariam sendo substituídos por um poder político mais forte. O declínio dos EUA, em particular, vem sendo vaticinado desde o final da Segunda Guerra Mundial. Mas, de repente, não quer dizer que este não seja o momento em que essa tese se confirme correta e tenha aderência aos fatos, mas ela não é nova e das outras vezes não se confirmou. Alguns falam que é como a fusão nuclear: o declínio dos EUA é sempre para daqui dez anos. Outros dizem que não, que está acontecendo.
Há um declínio relativo no sentido de que há 25 anos os EUA tinham um poderio militar capaz de intervir em qualquer parte do mundo, com pouca oposição real. Agora, com a ascensão da China e da sua militarização, da renovação da sua doutrina, utilizando os domínios do espaço e da cibernética e do espectro eletromagnético, essa situação inconteste teria sido derrogada. Nesse aspecto, é preciso concordar que sim, que há um declínio relativo. Não que os EUA estejam em declínio, mas que, proporcionalmente e relativamente à China, há um encontro próximo ou uma ultrapassagem da China em relação aos EUA.
Seja na versão mais forte dessa tese, que é de um declínio absoluto e de que o império americano está se esfacelando, seja na versão mitigada, de um declínio relativo, de qualquer forma, enquanto potência hegemônica, haveria, pela ascensão da China nas últimas décadas, uma contestação indireta da posição americana. Então, segundo a Armadilha de Tucídides, os EUA estariam na posição de Esparta e a China seria Atenas, porque Atenas é a novidade, a ascensão, e Esparta é a que se vê ameaçada pela ascensão. Portanto, a maior fonte de instabilidade e insegurança dentro do sistema no qual há transição de hegemonias ou o enfraquecimento de uma situação hegemônica, se pensarmos de maneira relativa, é os EUA.
IHU – Como a Armadilha de Tucídides se atualiza no caso da guerra entre a Rússia e a Ucrânia?
Bruno Cava – Quando houve a invasão, que foi decidida por Putin – nada o forçou a invadir a Ucrânia; ele poderia continuar em um desgaste nas regiões do Leste e manter a Crimeia segura –, não havia nenhuma ameaça territorial contra a Rússia – e isso foi comprovado – e quem estava concentrando tropas era, de fato, a Rússia, e ameaçando a invasão.
Quando Putin invadiu efetivamente, houve uma espécie de explosões de artigos e argumentos dizendo que a causa profunda e estrutural [da guerra] é o fato de que os EUA não aceitam a perda da sua hegemonia e, por isso, ele está intervindo na Ucrânia e armando e treinando o país, desestabilizando os governos que não são simpáticos a eles. Eles fazem uma leitura de que os levantes de Maidan [também chamados de Primavera Ucraniana] entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014 teriam sido instrumentalizados pelo Serviço Secreto e financiando pelos EUA.
Poderíamos discutir a tese forte disso, que é uma relação de causa e efeito, ou uma tese mitigada de que houve algum vínculo dos EUA, com apoio a alguns grupos de manifestantes, mas acharíamos esses liames até de maneira mais incisiva do lado da Rússia, cuja dinâmica endógena e social atropelou e foi determinante [para as manifestações]. Poderíamos discutir isso inclusive no caso de junho de 2013 no Brasil, que apesar das distâncias e circunstâncias completamente diversas, são manifestações desse ciclo, dessa primavera global de lutas que contagiou em 2013 na Turquia, no Brasil e na Ucrânia, que foram as três grandes explosões das primaveras globais.
Então, segundo essa leitura, os EUA estariam gerando a instabilidade e teriam provocado, portanto, uma desestabilização na região. Remontaria essa história, ao certo, da Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN, que teria o propósito de cercar a Rússia e colocar os países que antes estavam sobre a zona de influência soviética, no espaço já pós-soviético, agora sobre zona de influência dos EUA. Isso seria uma ofensa [para a Rússia] porque os EUA estariam, como Atenas, pretendendo ter colônias na região do Peloponeso, que era o quintal de Esparta, aproveitando um momento de fraqueza [da Rússia] depois do fim da União Soviética. Dentro de uma explicação geopolítica que privilegia a segurança internacional e a estabilidade das regiões, os EUA estariam extrapolando o quinhão devido, o quinhão correspondente à sua fatia dentro do balanço de poder, que seria o quinhão da Rússia e, por tabela, o da própria China.
Estes pontos ligados - declínio do poder americano, perda de hegemonia, estremecimento da hegemonia perdida, desestabilização de regiões - são as causas profundas que levaram à guerra e conferem, embora as pessoas condenem as invasões – e na Rússia sequer se pode chamar a guerra de guerra –, um certo direito à Rússia e às legitimações desta por ter invadido a Ucrânia, colocando em segundo plano todas as dinâmicas sociais, inclusive na Rússia, de oposição ao estado putinista.
Novamente, essa retórica se repete na China ao dizer que, de fato, esta teria algum direito a cercar a ilha [Taiwan] de mísseis, nesse bullying militar, lançando mísseis ao redor desta, inclusive com direito a uma invasão violenta, tomando a ilha à força e forçando uma reunificação, o que é justamente colocar a culpa da desestabilização nos provocadores e em quem efetivamente está realizando a violência e, muitas vezes, colocando a culpa nas vítimas, dizendo que a Ucrânia estaria se bandeando e que Taiwan estaria temerariamente abrindo a guarda para as provocações americanas.
IHU – Quais são as alternativas interpretativas à Armadilha de Tucídides?
Bruno Cava – Como sair dessa colocação do problema da Armadilha de Tucídides que reduz a situação a uma discussão interestatal? Essa é uma interpretação segundo a qual os grandes atores da história são atores estatais, e não só isso; as forças mobilizadas dentro desse teatro são forças estadocêntricas, porque não há uma complexificação das sociedades envolvidas nem das sociedades que estão se dividindo internamente, atravessadas por esse conflito não apenas por prestarem um apoio à Ucrânia, mas por indiretamente buscarem, em uma divisão interna, os mesmos alinhamentos que são vistos na questão externa.
A distinção entre o que seria o imperialismo russo e o que seria o imperialismo americano, o russo em ascensão ou ressurgindo, e o americano em declínio, reaparece internamente entre grupos liberais ligados ao modelo democrático liberal americano – ou neoliberal, se preferirmos – e outros grupos ligados ao modelo estadocêntrico, ao modelo que privilegia a centralização política ou a formação de campeões nacionais, de empresas privilegiadas, de capitais nacionais ao redor de uma liderança de força populista como Putin ou [Viktor] Orbán, na Hungria, e que, portanto, ofereceria uma alternativa ao modelo democrático liberal norte-americano.
Então, haveria essa luta entre esses dois modelos que estão enganchados na questão externa, mas têm efeitos internos nos países. Isso vai acompanhando não só a batalha de informação e de narrativas do que está acontecendo na guerra, como também os vários vínculos em relação ao desequilíbrios na globalização, nas importações e exportações, e na potencialidade de desenvolver determinadas indústrias ou determinadas commodities no mundo em crise, podendo a Índia comprar o petróleo russo com descontos tremendos e os EUA reatarem com a Venezuela para poder ter uma fonte alternativa diante da crise do aumento do preço do petróleo, ou a Alemanha acelerando a sua transição energética e estratégias de eficiência e racionamento de energia para escapar da dependência do gás natural, que é uma dependência profunda porque a infraestrutura é cara. Todas essas reações em cadeia, que têm um fundo econômico, têm também um fundo político e ideológico porque são retraduzidas dentro dos países como uma disputa entre modelos.
Dito isso, qual é o terceiro elemento? Temos um primeiro elemento que é geopolítico, um segundo que é de que maneira o cenário externo tem uma interpenetração, uma pressuposição recíproca com o cenário interno de modelos político-ideológicos, de uma inserção na globalização, e de um posicionamento nos mercados, ligados ao alinhamento dessa primeira camada, que é a camada geopolítica.
Mas qual seria o terceiro elemento? Este justamente é o que eu quero trazer, que é o que está em falta nas discussões e é o que precisamos pensar.
Tenho acompanhado as discussões de alguns pesquisadores da região mais conflagrada, que é a região da Ucrânia, mas também da periferia da Rússia, como Polônia, os Países Bálticos, a Europa Oriental, que faz fronteira, que é o chamado espaço pós-soviético, que eram países que estavam sob a zona de influência do Pacto de Varsóvia e da Doutrina Brejnev na segunda metade do século XX, até o fim da Guerra Fria, em 1991. Esses pesquisadores participam do “The ‘Commons’ journal of social criticism” ucraniano e publicaram o texto “A lógica política do imperialismo russo”, que está circulando em muitas línguas.
Este é um artigo fundamental do pesquisador Volodymyr Artiukh. Ele e outros têm publicado alguns artigos. Fazendo uma síntese dos textos, eles estão dizendo que a discussão do sistema interestatal, das transformações da hegemonia da globalização e dessa leitura da Armadilha de Tucídides são colocadas com exagero e excesso de primazia para a explicação do conflito. É mais fácil explicar o conflito a partir da situação dos Estados; basta pegar o mapa, os indicadores e tecer hipóteses a partir disso. Difícil é fazer uma ciência social e de economia política que possa aprofundar, de fato, quais são as forças estruturantes e as dinâmicas sociais que suportam as políticas externas e que suportam as colocações dos estados nessa dupla articulação entre política interna e política externa. Isso é mais difícil de fazer e envolve uma pesquisa mais complexa e só pode ser feito em rede se quisermos pensar para além das fronteiras nacionais.
Esses pesquisadores – eu os cito porque eles ressoam com a minha própria pesquisa, que vem sendo realizada há dez anos, ligada à Primavera dos Povos, com foco no Brasil, em junho de 2013, e na Espanha sobre o Podemos com o ecossistema do movimento 15M – dizem o que o imperialismo russo faz é algo próximo ao que aconteceu na Europa no final do período da Revolução Francesa, incluindo também o período napoleônico. Se seguiu a Revolução Francesa quando Napoleão foi o líder, o imperador de um exército de novo tipo, um exército que conseguiu fazer da população uma massa de soldados, transformando o cidadão em cidadão-soldado, gerando o grande exército, ou seja, a nação em guerra. Estes agiram não mais inspirados por pagamentos em dinheiro, mas inspirados pela pátria, por verter sangue por ela, morrer por ela, pela nação por excelência que é a França. Com isso, Napoleão conquistou quase a Europa inteira, gerando um tumulto que foi da Rússia até Portugal. Tudo isso foi uma grande bagunça política, econômica e social, com guerras infindáveis e coalizões contra ele, que terminou em 1815 no Congresso de Viena, onde se formou a Santa Aliança.
Esses pesquisadores, sobretudo Volodymyr Artiukh, dizem que o que a Rússia está fazendo é compor uma Santa Aliança do século XXI. O que foi a Santa Aliança? Ela não foi só uma nova partilha da Europa e um novo balanço de forças europeias depois das guerras napoleônicas, foi mais do que isso. O que os pesquisadores falam é que há uma reunião de forças conservadoras que querem consolidar uma contrarrevolução - como o Congresso de Viena consolidou uma contrarrevolução; no caso, a Revolução Francesa - e a Rússia está liderando uma consolidação não contra a Revolução Francesa, mas contra as diversas revoluções e levantes que aconteceram na década passada.
Aqui, estamos incluindo um longo arco, desde as revoluções árabes, que atravessou mais de 40 países: o Norte da África, o Oriente Médio, a Líbia, o Egito, a Tunísia, a Turquia, Israel, a África subsaariana, depois atravessou o Mediterrâneo, com os protestos na Espanha, com o 15M, em Londres, com o Occupy, junho de 2013, no Brasil, Maidan, na Ucrânia, que talvez tenha sido a mais densa e a mais potente manifestação desse ciclo da multidão, no final de 2013 e 2014, que tornou insustentável o governo ucraniano da época e mudou as condições de fazer política no país.
Esse tipo de manifestação começou a ameaçar a propagação pelo espaço pós-soviético e se tornou um paradigma e um protesto bem-sucedido, enquanto na Rússia os protestos foram reprimidos violentamente, gerando prisões em massa e proibição do direito de organização. A oposição, aos poucos, foi se inviabilizando e vários dos opositores foram perseguidos e alguns envenenados por armas químicas e materiais radioativos por Putin e seus oligarcas e brutamontes que eram da KGB e agora são da FSB, que é um serviço de Estado. Isto é, um governo dentro do governo, uma espécie de milícia que comanda a Rússia e que reprime as manifestações no país. Por isso, a Ucrânia virou o foco do espaço pós-soviético.
Esses pesquisadores estão dizendo que, depois de Maidan, Putin ficou tão preocupado e consternado com a possibilidade de isso contagiar os demais países que organizou uma Santa Aliança anti-Maidan. Assim como a Santa Aliança original – e é santa porque vem com essa dimensão do direito divino – no Congresso de Viena, a Santa Aliança comandada pela Rússia deveria restaurar o status quo, ou seja, acabar com todas essas interferências vindas de manifestações democratizantes, de manifestações por direitos e por direitos das minorias.
Essa Aliança, que é extremamente fundamentalista, mistura religião com política de uma maneira muito imbricada; o patriarca da igreja ortodoxa, Kirill, é putinista e essa Santa Aliança é contra os direitos LGBT. A Aliança tem um braço na igreja ortodoxa russa e por isso é santa e visa a restauração do verdadeiro cristianismo, da terceira Roma. Eles anunciam que têm um direito divino dessa região, um direito conquistado, inclusive defendendo a Europa como Esparta defendeu a Grécia contra os Persas na guerra do Peloponeso.
Os russos lutaram contra os mongóis e encharcaram os campos do Leste Europeu de sangue russo. Depois, lutaram contra o nazismo, o império do mal, em que 27 milhões de mártires soviéticos morreram. O regime soviético arregimentava toneladas de minorias e morreram muitos povos. Metade desses 27 milhões são russos e a outra metade são de pessoas de outras nacionalidades que viviam sob o domínio da União Soviética.
Então, a Santa Aliança envolve a Rússia e todos os governos conservadores que compartilham desse modelo de contenção das liberdades e que têm interesse em reestabelecer a sua segurança interna. Por isso passam a integrar essa Santa Aliança governos que passaram por manifestações como as de Maidan. Por isso que Belarus, onde ocorreu uma grande revolta em 2020, entra na Santa Aliança. Por isso o Cazaquistão, em 2022, também entra na Santa Aliança, que foi oferecida também para a Síria, onde houve a primavera árabe em 2011.
Manifestações na Ucrânia em 2013 (Foto: Wikimedia)
A Rússia entrou pesadamente intervindo na guerra da Síria, desbalanceando completamente a situação interna em prol do governo [Bashar] al-Assad, onde morreram centenas de milhares de pessoas em uma repressão das mais brutais de todos os tempos, comparável ao que está acontecendo na Ucrânia agora.
Mas a Rússia também oferece [fazer parte da Santa Aliança] para quem estiver interessado. Pode ser o Irã ou outros grupos. Então, se os EUA não são capazes de prover segurança para a região, a Rússia está dizendo que é e representa um poder mais forte.
Existe, portanto, uma conotação não só de uma política interna da Rússia de inviabilizar a oposição e a repressão de qualquer tipo de manifestação social – porque o Estado passa a ser o representante absoluto do poder político dentro da Rússia –, como também uma articulação internacional entre diferentes forças conservadoras que começam a se agrupar em torno desse eixo da proposta russa. O projeto, na verdade, que ainda não aconteceu, é juntar a China nisso, e é aí que as coisas vão ficar extremamente tensas, com risco de alastrar a guerra na Ucrânia para outras regiões do globo, porque a China é muito mais imbricada na globalização do que a Rússia.
Essa é a terceira dimensão que eu gostaria de trazer, que é a dimensão de que há uma sociedade mobilizada, há dinâmicas sociais endógenas que atravessam fronteiras, embora não sejam da ordem das semelhanças ou das analogias, mas da ordem dos contágios, de um ecossistema de protestos que atravessa fronteiras desde a década de 2010.
Existe uma contrarrevolução que está sendo consolidada na forma de uma aliança que tem uma dimensão geoestratégica, uma dimensão político-econômica e uma dimensão de tecnologias de biopoder ou de vigilância e controle, que são capitaneadas não só pelo Estado russo, mas por um putinismo difuso, um putinismo enquanto doutrina anti-Maidan, antipraça, antiprotestos, contra as manifestações coloridas, e que vai penetrando onde menos esperamos, inclusive próximo de nós, não apenas discursivamente, mas também em termos de linhas organizativas e de perspectivas de recomposição nos próximos anos, o que é extremamente preocupante.
Não quero ser alarmista e não estou levantando nenhuma denúncia, mas isso nos atravessa. O problema do fascismo é que ele passa porque é microfascismo. Então, temos que cuidar com o microfascismo que já passou, inclusive, e temos que trabalhar dentro de nós mesmos ao invés de ficar achando que podemos erguer barreiras impermeáveis. O problema é que, do ponto de vista molecular, ele está sempre passando pelos poros e, a meu ver, o putinismo está passando [pelos poros] e é bastante preocupante como isso atravessa o campo político de maneira ampla não só na Europa Ocidental, sobretudo, mas também no Brasil.
[1] Maidan é uma palavra de origem persa que designa "praça municipal" ou "local público de reunião". Pode referir-se a: Praças e esplanadas. Na Ucrânia, Maidan, também chamada de Primavera Ucraniana, foi uma onda de manifestações que ocorreu entre 2013 e 2014. Os movimentos iniciaram na noite de 21 de novembro de 2013, com protestos públicos, evoluindo desde então, com muitos apelos para a renúncia do presidente Viktor Yanukovytch e de seu governo. Inicialmente conduzidos por estudantes universitários, os protestos reuniram amplos setores da população descontentes com a gestão do governo do Partido das Regiões e os resultados da sua política econômica e social, a oposição política e as igrejas ucranianas (por exemplo, a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev), com exceção da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou e organizações sociais. (Nota do IHU)