07 Fevereiro 2014
"Existem elementos comuns entre a explosão do movimento espanhol 15M e o nascimento #YoSoy123 no México? Pode-se traçar algum paralelo entre a defesa do Gezi Park, em Instambul, e as revoltas iniciadas pelo Passe Livre no Brasil? Há padrões compartilhados entre as revoltas que sacudiram o mundo desde a centelha da Primaveira Árabe?", O comentário é de Bernardo Gutierrez, publicada por Outras Palavras, 20-01-2014. A tradução é de Cauê Ameni e Gabriela Leite.
Eis o artigo.
Se levarmos em conta apenas pautas concretas, as revoltas poderiam parecer desconexas. O grito de “Não somos mercadorias nas mãos dos políticos e banqueiros”, do 15M, teria pouco a ver com o “Se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”, das revoltas no Brasil. Occupy Wall Street estaria longe do #YoSoy132 mexicano, que nasceu contra a criminalização de 131 estudantes da Universidade Iberoamericana. No entanto, o imaginário de todas as revoltas parece conectado por algo que escapa à lógica.
O “vamos fazer como em Tahrir” (praça no Cairo, Egito) era um eco dos “quarenta da [Porta do] Sol” que acamparam em Madri na noite do 15 de maio de 2011. “Acabou a mordomia, o Rio vai virar outra Turquia” ressoava nas manifestações iniciais do Rio de Janeiro. O hashtag #TomaLaCalle, que agitou os indignados espanhois, foi reutilizado e remesclado na mobilização peruana de julho do ano passado.
A Anonymous Rio hackeou a conta do Twitter da Rede Globo e colocou três palavras: Democracia real já. E o imaginário do Occupy está presente na maioria das revoltas dos últimos tempos. O que, como e por que flutua no ar uma conexão inexplicável, à primeira vista?
Existem conexões ou semelhanças mais concretas. Depois da desocupação do acampamento do #direngezi das praças turcas, o fluxo #direnODTU põe seus esforços em plantar árvores em espaços onde o Estado tem plantadas megainfraestruturas. E exatamente isso também faz o MovimentoPró-Árvore (Fortaleza) o Fica Ficus (Belo Horizonte) no Brasil, buscadonarede pelos participantes dos acampamentos turcos.
Coincidências? Contágio formal? Sem existir uma resposta única e definitiva, o certo é que existe um número crescente de analogias. Ações, memes, estética, processos, protocolos compartilhados.
Os abusos policiais durante os protestos no Brasil fazem com que nasça a rede advogadosAtivistas, similar em protocolo à LegalSol ou TomaParte, do 15M. Após a explosão do #YoSoy132, surge a plataforma ArtistasAliados para criticar os intermediários da indústria. Depois de Occupy Wall Street, chegou o OccupyMusicians. E muitas outras semelhanças.
O TomaLaTele do 15M foi replicado em um sem-número de países. Os OccupyNews (como o OccupyGeziNews), são algo comum. Os mexicanos de #YoSoy132 cercaram a redação do canal televisivo Televisa. E os brasileiros criaram #OcupeAMídia e cercaram a toda poderosa Rede Globo. E mais e mais.
Conspirações? Contágio formal? Ou há algo mais? Poderíamos afirmar que existem analogias antropológicas, tecnológicas e/ou sociais? Padrões de rede que se repetem à margem de contextos políticos e causas concretas? A Rede de Pesquisas sobre a Revolução Global (Global Revolution Research Network, GRRN), da Universidade Aberta da Catalunha (Universitat Oberta de Catalunya, UOC), nasce precisamente partindo de uma hipótese: existem padrões de auto-organização das diferentes revoltas que surgiram após a revolução dos Jasmins, de Tunis.
O objetivo deste grupo transdisciplinar é encontar padrões rede, elementos comuns e conexões nas mobilizações de Túnis, Egito, Espanha, Estados Unidos, México, Turquia e Brasil. Por exemplo, a conexão da Turquia com o Brasil aparece de alguma maneira na visualização realizada por Interagentes sobre a mobilização de 6 de junho, na qual duas contas turcas (Recep Tayyip Erdoğan – Türkiye’nin Gururu y Diren Gezi Parkı) figuram entre as dez mais compartilhadas no evento do Facebook de São Paulo.
As conclusões do primeiro encontro do grupo, “Três anos de revoltas interconectadas”, celebrado em Barcelona no final de outubro, destacam “a centralidade das redes de comunicação digital, sua dimensão global, a existência de padrões comuns de ação coletiva, assim como a defesa da democracia e a liberdade de acesso à informação”.
Javier Toret, coordenador do estudo “Tecnopolítica: a potência das multidões conectadas”, realizado pela 15MDatanalysis para a Universidade Aberta da Catalunha e um dos impulsionadores da GRRN, assegura que “os marcos teóricos tradicionais não estão à altura da complexidade destes novos movimentos em rede”. Por isso, prossegue, é necessário “usar métodos cruzados entre ciências complexas, como a teoria de redes, apoiado em dados, e cruzar campos disciplinares”. Um dos conceitos-chave para a investigação da GRRN é a tecnopolítica, que Toret separa do “clickativismo”, ou “ciberativismo”.
A tecnopolítica reconhece a multidão como um novo sujeito político. A tecnopolítica gera movimentos em rede. A tecnopolítica gera ação multicamadas, articulando e tornando híbridos espaços físicos e digitais. Das redes às ruas. E ao contrário.
Toni Blanco, participante do GRRN, afirma que não podemos chamar o 15M de movimento social: “ele é melhor descrito como uma “rede tecnopolítica cidadã”. Rede e não movimento. Tecnopolítica e não ciberativismo.
Um parágrafo do estudo “Tecnopolítica” do 15MDatanalysis precisa o conceito: “Esta multidão conectada tem uma anatomia híbrida, física e virtual, em que se destacam as identidades coletivas. Ela possui forma de rede e capacidade de produzir ativações emocionais, convertendo o mal-estar em empoderamento”. Ocorre o mesmo no 15M, no #YoSOy132, no Occupy, em Diren Gezi ou nas revoltas brasileiras?
Nada como o uso do denominado big data para se aprofundar nos padrões de rede que se repetem nas revoltas interconectadas. Os gráficos — visualizações de redes — das organizações tradicionais revelam um padrão claramente competitivo.
O estudo elaborado pelo 15MDatanalysis (acima, página 22 desta apresentação) sobre a relação dos partidos políticos espanhóis antes das eleições de 20 de novembro de 2011 mostra que não existem interações entre as diferentes comunidades dos partidos. Os atores centrais são os designados previamente como líderes.
O mesmo ocorre no estudo realizado pelo Labic do Brasil, que prova a endogamia do PT (vermelho) e do PSDB (azul) frente ao diálogo cruzado das comunidades do MovimentoPasseLivre e Anonymous.
As redes cooperativas das revoltas globais são muito distintas das redes competitivas dos partidos políticos de identidade fechada e de chefias permanentes. A topologia da rede do 15M (abaixo à esquerda) ou a do #YoSoy132 (abaixo à direita) revelam o diálogo de diferentes comunidades identitárias e geográficas.
Para a jornalista Sandra Yánez, integrante do grupo GRRN, os dados são vitais para perceber “análises quantitativas ou picos de emocionalidade”. Para Toni Blanco, o importante é “abordar a partir dos dados o fenômeno como um sistema complexo, não como sistema linear”. Dados que, mergulhando na relação dos nós, conseguem esmiuçar melhor revoltas que fogem de explicações do paradigma direita-esquerda.
Foi exatamente estudando dados que o 15MDatanalysis chegou a novos conceitos, como o de “liderança temporal distribuída”. Arnau Monty, do Ateneu Candela de Terrassa, explica de forma simples, afirmando que o 15M não desaparece, mas evolui: “A Primavera Valenciana, o 12M15M, 15MpaRAto, as marés ou a própria PAH demonstram a capacidade de atualização permanente destes movimentos e a facilidade para criar identidades coletivas novas para enfrentar problemas concretos.”
O pesquisador brasileiro Fábio Malini usa um conceito parecido para descrever o 15M, que denomina um “beta movimento”. Um movimento em constante mutação. Um sistema em rede que, em um determinado momento, passa a apoiar uma causa ou ação, seja o #25S (Cerca o Congresso) o a greve dos garis de Madri. A liderança não é sempre a mesma. E pode vir da periferia do sistema rede e não de seus nós centrais.
Algo similar ocorreu um ano depois do nascimento do Occupy Wall Street. Quando alguns desprezavam o movimento, o poder latente da rede criou o processo #OccupySandy. A norte-americana Joan Donovan, pesquisadora e participante do InterOccupy, aponta exatamente para o potencial das redes emergentes: “Não se trata do que Occupy Wall Street fez, mas da rede que foi criada.”
Uma das hipóteses mais importantes para o estudo mundial incipiente da Global Revolution Research Network é a importância das identidades coletivas na gestação, explosão e desenvolvimento das revoltas. No caso do 15M, a hipótese das identidades coletivas foi comprovada na visualização dos dados.
Por exemplo, o gráfico do dia de ação #15O (15 de outubro) de 2011 mostra como os nós das identidades coletivas @DemocraciaReal, @AcampadaSol, @15OctoberNet, @TakeTheSquare e @OccupyWallStreet foram os mais influentes. Os gráficos da rede de #YoSOy132 também revelam a preponderância de alguns nós, como o @Global132, @AnonOpaHispano ou @YoSoy132Camp. Os estudos do Facebook realizados por Interagentes sobre os protestos do Brasil também provam que as identidades coletivas moveram os atores tradicionais, ao longo do processo.
A peculiaridade brasileira faz com que no Twitter as celebridades convivam com as identidades coletivas em campanhas concretas como #AbaixoRedeGloboOPovoNãoÉBobo (página 15 desta apresentação). Ou que nos protestos do Rio de Janeiro nem famosos e nem identidades coletivas impusessem o ritmo: o gráfico da MediaLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre #ProtestosRJ apresenta uma rede feita por atores menores. Por outro lado, existem outros tipos de identidade coletiva a serem investigados, como as comunidades que surgiram nas redes sociais do Egito após a morte do blogueiro Khaled Said ou após a desaparição do pedreiro Amarildo, no Rio de Janeiro.
Marcelo Branco, ativista do software livre, destacou no recente encontro #RuasEmRede, em São Paulo, o papel, nas revoltas do Brasil em 2013, de “movimentos sem lideranças das organizações conhecidas tradicionais”. E frisou que a maior semelhança entre todas as revoltas tem mais a ver com uma nova (e mais aberta) arquitetura das convocações e dos protestos do que com componentes ideológicos.
Nas revoltas interconectadas, a agregação substitui a divisão (os torcedores das equipes de futebol de Istambul ou São Paulo desfilam juntos). Do “pró” (construção, acampamentos, protótipos, dispositivos) ao “anti” (destruição). E as emoções convertem-se em combustível que conecta os diferentes sistemas em rede.
O estudo #15MData: análise emocional, do Coletivo Outliers, revela que os tuítes da gestação do 15M espanhol têm o dobro de carga emocional que o normal. A indignação e o empoderamento são as duas emoções mais presentes. E precisamente a sequência indignação-empoderamento, ativada pela violência policial, tem sido a tônica nas revoltas de 2013.
A repressão policial na praça Taksin de Istambul fez brotar a indignação. E quando a mídia chamou os manifestantes de “chapullers” (vândalos), a indignação transformou-se em empoderamento. O movimento se autoproclamou “o movimento chapulling” e criou a çapul.tv.
Quando a mídia brasileira usou a palavra “vândalos”, os manifestantes se transformaram em vândalos empoderados, com seu VândalosNews e centenas de identidades coletivas.
Ainda que não esteja baseada em critérios de extração e dados de análise de rede, a Cartografia Afetiva dos protestos do Brasil torna também visível a potência de emoções como a indignação, o medo, a esperança ou o empoderamento. Por isso, Javier Toret insiste na necessidade de elaborar um estudo global rigoroso e baseado em big data sobre o papel das emoções nas revoltas em rede: “As emoções foram um fator-chave que disparou a velocidade, a viralidade e a conectividade entre pessoas, redes e causas destes movimentos rede. A multidão conectada afeta o mundo e ocupa o espaço urbano, desativando o feitiço das mídias de massa”.
Que mais elementos comuns apresentam as revoltas interconectadas dos últimos anos? Para o arquiteto e pesquisador Pablo de Soto, as revoltas da Turquia e do Brasil “colocam os bens comuns urbanos como novo eixo de lutas”. Pablo, que está desenvolvendo o projeto Mapeando os Comuns no Rio de Janeiro, assegura que 2013 confirma a tese das cidades rebeldes do geógrafo David Harvey. Também, a construção teórica de Antonio Negri e Michael Hardt, que consideram a cidade como o terreno onde a multidão cozinhará as novas instituições do comum.
O Diren Gezi da Turquia explodiu com a defesa do parque Gezi e de outros bens comuns. No Brasil, os principais eixos da luta também estão ao redor dos bens comuns urbanos. As campanhas pela Tarifa Zero (transporte), O Maraca é Nosso (uma proposta de gestão coletiva contra a privatização do estádio do Maracanã), os movimentos do Parque do Cocó (Fortaleza) ou os Comitês da Copa convertem a defesa do comum na essência de suas lutas.
Por outro lado, as “aulas públicas” durante os protestos do Brasil (aulas no espaço público) compartilham formato e protocolo com a #UniEnLaCalle ou a Universidad Indignada do 15M. De fato, ainda que o 15M não tivesse causas ou motivos urbanos para ocupar as praças ou ruas, está transformando a cidade no novo protótipo de participação política.
Um protótipo global (conecta territórios dispersos) e híbrido (combina redes analógicas e digitais). Um protótipo construído por assembleias, fluxos, rituais, protocolos, consensos de mínimos e forks (desvios, no jargão hacker) que nas palavras dos pesquisadores Alberto Corsin e Adolfo Stalella transformam a urbe na nova interface aberta.
O que têm em comum as revoltas interconectadas dos últimos anos? Veremos novas eclosões?
É difícil fazer qualquer tipo de previsão. Pablo de Soto pensa que 2014 verá nascer “um novo internacionalismo metropolitano pelos bens comuns”. A Global Revolution Research Network seguirá buscando respostas em sua pesquisa mundial, “um laboratório em tempo real de análise e prospectiva”. Héctor Huerga, do 15M Barcelona Internacional, dá ênfase a um detalhe: “Nas revoltas interconectadas, a convocatória parte de um meme. E é o sujeito receptor, não o emissor, que está dando as chaves para as novas revoltas”. A imprevisibilidade dos sistemas emergentes e das subjetividades em rede desenha um final aberto e múltiplo.
No momento, o estudo “Tecnopolítica: a potência das multidões conectadas” é um bom ponto de partida para estudar revoltas que, na maioria dos casos, não se encaixam com a definição de revolução clássica (tomada do poder), mas ultrapassam o formato de manifestação: “Compõem um sistema de rede mutante, com fronteiras móveis, híbrido, cyborg, um corpo coletivo que resiste ao tempo e que pode estender-se no espaço”
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Três anos de revoltas conectadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU