01 Julho 2022
“Duas sombras mortais pairam sobre o mundo: a catástrofe ambiental e a guerra nuclear”, escreve Ivonaldo Leite, professor da Universidade Federal da Paraíba.
“No caso das armas nucleares, sabemos qual é a solução, ou seja, livrar-se delas, com medidas adequadas, o que é tecnicamente factível. No caso da crise ambiental, parece que ainda há tempo para evitar as piores consequências, mas isso exigirá ações que vão muito além das que estão sendo tomadas atualmente”, avalia.
O artigo é publicado por Rebelión, 30-06-2022. A tradução é do Cepat.
Já há muito tempo, há sinais muito fortes de que as contradições e conflitos do sistema-mundo ameaçam desencadear forças capazes de gerar não apenas resultados destrutivos para a prosperidade, a justiça e a paz social, mas também impactos análogos para a democracia e a civilização humana como um todo.
Conforme destacado por Chomsky [1], quando a União Soviética se desintegrou, Mikhail Gorbachev propôs um sistema de segurança apropriada ao continente e os Estados Unidos o rejeitaram e insistiram em preservar e expandir a OTAN. Gorbachev se mostrou favorável a permitir que uma Alemanha unificada se unisse à OTAN, o que é uma concessão notável à luz da história. No entanto, havia uma condição a ser respeitada, ou seja, que a OTAN não se expandisse “sequer uma polegada para o leste”, referindo-se à Alemanha Oriental.
Foi o que o presidente Bush I e o secretário de Estado James Baker prometeram, mas não no papel. Foi um acordo verbal e os Estados Unidos argumentaram que não era vinculante. Então, o tempo mostrou que esta foi uma falsa promessa.
A OTAN se expandiu para a Alemanha Oriental e, em anos posteriores, para a fronteira da Rússia. Como parte deste processo expansionista, a Ucrânia foi convidada a aderir à OTAN. Temos assim uma das variáveis geopolíticas da guerra ucraniana. Tal conflito simboliza uma nova guerra fria e, simultaneamente, molda a primeira sombra a que me refiro neste artigo: a sombra de uma guerra nuclear.
As armas nucleares constituem uma das grandes ameaças à humanidade, mas as potências mais importantes resistem em aboli-las. Os estrategistas nos Estados Unidos explicam, com muita convicção, por que é importante manter essas armas. Uma das explicações mais claras está em um documento parcialmente desclassificado da era Clinton, criado pelo Comando Estratégico dos Estados Unidos (USSTRATCOM), responsável pela política e o uso de armas nucleares.
O documento se chama Essentials of Post-Cold War Deterrence [2] (Aspectos essenciais da dissuasão pós-guerra fria). “Dissuasão”, o mesmo que “defesa”, é um termo orwelliano que se refere à criação e ao ataque. No documento, explica-se que as armas nucleares projetam sua sombra sobre qualquer crise ou conflito e, portanto, devem estar à disposição e prontas para o uso.
Uma parte do relatório, intitulada Manutenção da ambiguidade, diz “que se o adversário souber que as temos [armas nucleares], e que podemos usá-las, deve recuar”. Ressalta que a possibilidade de os Estados Unidos se tornar irracional e vingativo, caso seus interesses vitais sejam atacados, deve fazer parte da imagem nacional que o país projeta, acrescentando que é benéfico para a postura estratégica da nação que alguns elementos [países, líderes políticos, movimentos] possam parecer como potencialmente fora de controle.
No entanto, os “senhores do universo” não veem que a própria existência de armas nucleares é uma ameaça para eles também. Assim, a guerra na Ucrânia é um conflito com muitos riscos e com a possibilidade de evoluir para uma situação dramática. Embora, por enquanto, só se fez referência às armas nucleares de dissuasão (“mobilização de forças de dissuasão”), e não às armas nucleares “estratégicas”.
De qualquer forma, o risco de um desastre real com armas nucleares é maior hoje do que durante a antiga guerra fria, devido à ameaça de terrorismo nuclear e as guerras regionais. Um dos principais perigos vem do programa de modernização das forças nucleares dos Estados Unidos, iniciado durante a presidência de Barack Obama.
A capacidade de extermínio total dos Estados Unidos multiplicou por três [3]. Essa situação deixa apenas uma opção para os inimigos de Washington, ou seja, recorrer a um preventivo ataque surpresa para garantir uma mínima sobrevivência. Isso significa que, em um momento de crise, sendo que há muitos, os estrategistas russos podem concluir que, sem uma razão dissuasória, sua única esperança de sobrevivência seja um primeiro ataque, o que significaria o fim de todos nós.
A segunda sombra que atemoriza a humanidade é a do aquecimento global e a mudança climática. Embora a desigualdade econômica, a falta de crescimento e de novos empregos e o declínio dos níveis de vida tenham se tornado características das sociedades avançadas contemporâneas, o desafio da mudança climática levanta uma ameaça real para o planeta como um todo.
Dessa forma, entre os cientistas, parece que se chegou ao consenso de que o aquecimento global e a mudança climática representam um perigo terrível para o planeta. Caso as tendências atuais persistam, o resultado será catastrófico em pouco tempo. Grandes partes do mundo se tornarão quase inabitáveis, afetando centenas de milhões de pessoas.
A comunidade científica tem dado como certo que entramos em uma nova era geológica, o Antropoceno, na qual o clima da Terra se vê radicalmente modificado pela ação humana e dá lugar a um planeta muito diferente, que talvez não possa sustentar a vida organizada humana de uma forma que possamos tolerar. Há razões para acreditar que já entramos na Sexta Extinção, um período de destruição de espécies em grande escala, comparável à quinta, de 65 milhões de anos atrás, quando três quartos das espécies da Terra foram destruídas, ao que parece, por um gigantesco asteroide.
Já faz muito tempo que estudos apontam para um aumento nas temperaturas. Os alertas que são dados há décadas pelos cientistas não são mais apenas teóricos, pois o gelo terrestre derrete e o nível do mar aumenta.
O dióxido de carbono atmosférico está crescendo a um ritmo sem precedentes nos registros geológicos, há 55 milhões de anos [4]. A preocupação é que o aquecimento global, ampliado pelas respostas à fusão do gelo polar, a liberação de metano pelo permafrost e os incêndios florestais extensos, possa se tornar irreversível, com consequências catastróficas para a vida na Terra, incluindo os humanos.
Portanto, duas sombras mortais pairam sobre o mundo: a catástrofe ambiental e a guerra nuclear. No entanto, é necessário ter presente aquela célebre frase do romancista francês Romain Rolland, que muitos erroneamente atribuem a Gramsci: exercitar simultaneamente o pessimismo da razão e o otimismo da vontade.
No caso das armas nucleares, sabemos qual é a solução, ou seja, livrar-se delas, com medidas adequadas, o que é tecnicamente factível. No caso da crise ambiental, parece que ainda há tempo para evitar as piores consequências, mas isso exigirá ações que vão muito além das que estão sendo tomadas atualmente.
[1] Chomsky, Noam y Polychroniou, C. J., Optimism over despair: on capitalism, empire, and social change, London: Peguin Books, 2017.
[2] Disponível em: https://www.nukestrat.com/us/stratcom/SAGessentials.PDF. Consultado em 16 de junho de 2022.
[3] Chomsky, Noam y Polychroniou, C. J., op. cit.
[4] Ibibem.
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O mundo e o império do caos, duas sombras mortais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU