Por uma teologia da paz. Artigo de Sergio Tanzarella

Foto: Pixabay

28 Mai 2022

 

“O ensino da teologia parece-me hoje chamado a prestar atenção ao desarmamento dos espíritos e dos corações, à superação dos nacionalismos e das contraposições entre os povos, à condenação de toda tentativa religiosa de justificar a guerra, à superação dos neoconstantinismos, à crise ecológica humana em curso com a sistemática destruição do ambiente e da fraternidade.”

 

Publicamos aqui a carta aberta de Sergio Tanzarella, professor de História da Igreja na Pontifícia Faculdade de Teologia da Itália Meridional em Nápoles, onde dirige o Instituto de História do Cristianismo, e professor convidado na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma. A carta foi publicada em Settimana News, 23-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Aos reitores das Pontifícias Universidades na Itália

Aos decanos das Pontifícias Faculdades Teológicas na Itália

Aos diretores dos Estudos Teológicos e dos Institutos Teológicos

Aos diretores dos Institutos Superiores de Ciências Religiosas

 

Eminentíssimas autoridades acadêmicas,

 

Durante muitos anos, a propaganda da bondade da guerra fria fundamentada no princípio da dissuasão tentou nos convencer de que, com os relâmpagos nucleares de Hiroshima e Nagasaki, a guerra havia sido arquivada e, de fato, impossibilitada.

 

Evidentemente, era uma boa ilusão, mas também uma mentira, porque as guerras e os massacres na Indochina, na Coreia, na Argélia, no Vietnã, no Camboja, com os seus milhões de mortes, o uso frequente de armas químicas, o recurso sistemático à tortura estavam ali para desmentir essa tese otimista e negacionista. Ao mesmo tempo, na África, havia uma contínua sucessão de outras guerras, muitas vezes ignoradas, mas não menos letais, premissas para gravíssimas carestias e epidemias. Todas as guerras em que os mortos civis superavam em muito os mortos militares. 

 

Depois daquele agosto de 1945, portanto, houve uma sucessão de guerras coloniais e pós-coloniais, todas direta ou indiretamente provocadas e armadas pelas nações mais ricas do mundo, às quais se somaram formas sangrentas de repressão militar na América do Sul e Central, com dezenas de milhares de assassinos e desaparecidos.

 

A ilusão da queda do Muro

 

Em 1989, a queda do Muro de Berlim e, dois anos depois, a dissolução do império soviético iludiram muitos de que mais nenhuma guerra seria travada e que até mesmo os arsenais atômicos capazes de destruir muitas vezes a Terra, fruto da guerra fria e do princípio da dissuasão, seriam abandonados. Assim, todos os povos poderiam viver se preocupando com a educação e a saúde, em um novo tempo de paz.

 

A previsão estava totalmente errada, e as guerras se multiplicaram com maior intensidade e ferocidade, apesar de terem cada vez menos a coragem de pronunciar o próprio nome, tornando-se, com habilidosos eufemismos, operação de polícia internacional, missão humanitária, operação cirúrgica, operação militar especial.

 

Assim, nesses últimos 30 anos, houve uma sucessão de outras guerras: das duas no Iraque às do Afeganistão, da Líbia, do Iêmen, passando pelas da ex-Iugoslávia, da Síria e ainda, como sempre, regiões inteiras da África, até a guerra em andamento na Ucrânia, guerras apenas geograficamente circunscritas, mas que envolveram coalizões internacionais com exércitos enormes e armas cada vez mais sofisticadas, letais e caras.

 

Nessa condição de guerra generalizada e continuada – aquela terceira guerra mundial em pedaços, denunciada várias vezes pelo Papa Francisco –, enquanto produtores e comerciantes de armas (assassinos de cara limpa, de lábios amanteigados e de pródigas beneficências) continuam festejando, deveríamos ter entendido que todas as guerras estão destinadas a nunca mais se concluir, e isso não só pelos danos econômicos irreparáveis ​​e pela fome, pelos lutos e pelos mutilados, pelas viúvas e pelos órfãos, pelo fato de serem poderosas fábricas de refugiados, mas sobretudo pela consequência do ódio que não se extingue nem mesmo pela sucessão das gerações e que potencialmente produzirá outras guerras. Infelizmente, pode-se dizer que, desde o dia 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem sido constantemente violada.

 

O Magistério e a teologia diante da guerra

 

Diante dessa catástrofe de humanidade que foram e são as guerras modernas, o magistério pontifício refinou cada vez mais uma posição clara que, a partir de Bento XV, expressou uma total condenação e a recusa a oferecer justificativas morais e divinas à guerra. Especialmente depois da Pacem in terris, isso ficou ainda mais evidente!

 

No entanto, devemos nos interrogar se ainda faz sentido repropor aquela teoria da guerra justa, concebida antes mesmo de as armas de fogo serem utilizadas para a guerra. Aqui, não se trata mais de canhões de mão ou de bombardas, mas de bombas de fragmentação ou de fósforo, de projéteis de urânio empobrecido, de minas antipessoal e de minas-brinquedo, aquelas para mutilar crianças, e dos outros mil dispositivos e sistemas armados com os quais hoje se faz a guerra, e de ogivas nucleares com as quais se ameaça fazê-la.



Será que não só o uso dessas armas, mas também a sua simples posse não pede de nós hoje uma condenação sem apelação como Giacomo Lercaro já fizera durante o Vaticano II?

 

Mas, sobretudo, o ensino da teologia parece-me hoje chamado a prestar atenção ao desarmamento dos espíritos e dos corações, à superação dos nacionalismos e das contraposições entre os povos, à condenação de toda tentativa religiosa de justificar a guerra, à superação dos neoconstantinismos, à crise ecológica humana em curso com a sistemática destruição do ambiente e da fraternidade.

 

Urge que a teologia hoje ensine, com seus próprios instrumentos de estudo e com rigorosa cientificidade, a refutar toda guerra contra os migrantes – isto é, aquela realizadas com rejeições, afogamentos, muros, arame farpado, legislações persecutórias, deslocamento das fronteiras nacionais, campos de prisioneiros como os centros de detenção para repatriamento, novas formas de escravidão – e, sobretudo, que ela ajude a compreender que a mestiçagem não é um perigo, mas um dos sinais dos tempos que devemos acolher e compreender com gratidão.

 

Francisco e a prática teológica

 

Os nossos estudantes gostariam de entender, sobretudo gostariam de descobrir como o cristianismo e as outras religiões podem colaborar para se opor à guerra e como contribuir para a construção daquela fraternidade humana de que falam o documento de Abu Dhabi e a encíclica Fratelli tutti.

 

E, sobretudo, se não chegou a hora – talvez não mais por escolha livre e responsável, mas por sermos forçados pela urgência da história presente – de reconstruir todo o saber teológico sobre o sentido profundo da Paz, sentido constitutivo e fundante para o cristianismo e para a evangelização.

 

Não se trata de prever um curso específico, embora seja uma iniciativa meritória. Eu mesmo posso afirmar que, quase sempre, as autoridades acadêmicas das instituições onde lecionei se disponibilizaram, quando solicitadas, a concedê-lo. Hoje, não há necessidade de um curso, mas sim de uma nova estrutura teológica adequada às emergências da história e atenta aos sinais dos tempos.

 

O Papa Francisco na Veritatis gaudium – depois de observar que “não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise” – indicou com eficácia que “esta tarefa enorme e inadiável requer, no nível cultural da formação acadêmica e da investigação científica, o compromisso generoso e convergente em prol de uma mudança radical de paradigma, antes – seja-me permitido dizê-lo – para ‘uma corajosa revolução cultural’. A esse compromisso, a rede mundial de universidades e faculdades eclesiásticas é chamada a prestar a decisiva contribuição de fermento, sal e luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição viva da Igreja, sempre aberta a novos cenários e propostas”.

 

Parece-me que o convite do papa à mudança de paradigma e à revolução cultural, a partir também dos quatro critérios sugeridos no documento, ainda não foi respondido. Pelo contrário, temo que possa estar prevalecendo uma ossificação didática da teologia, uma incapacidade à experimentação e um medo da renovação.

 

O Mediterrâneo e a teologia

 

E isso apesar de Francisco ter explicitado ainda mais as suas indicações no discurso em Nápoles de 21 de junho de 2019, “A teologia depois da Veritatis gaudium no contexto do Mediterrâneo”:

 

“É preciso partir do Evangelho da misericórdia, do anúncio feito pelo próprio Jesus e dos contextos originários da evangelização. […] é necessária uma séria assunção da história no seio da teologia, como espaço aberto ao encontro com o Senhor. […] É necessária a liberdade teológica. Sem a possibilidade de experimentar caminhos novos, não se cria nada de novo e não se deixa espaço para a novidade do Espírito do Ressuscitado […]. Isso significa uma adequada revisão da ratio studiorum. […] dotar-se de estruturas leves e flexíveis que manifestem a prioridade dada à acolhida e ao diálogo, ao trabalho inter e transdisciplinar e em rede. Os estatutos, a organização interna, o método de ensino, o ordenamento dos estudos deveriam refletir a fisionomia da Igreja ‘em saída’. Tudo deve ser orientado nos horários e nos modos a favorecer o máximo possível a participação de quem deseja estudar teologia: além dos seminaristas e dos religiosos, também os leigos e as mulheres, sejam elas leigas ou religiosas. Em particular, a contribuição que as mulheres estão dando e podem dar à teologia é indispensável, e a sua participação, portanto, deve ser apoiada.”

 

À distância de três anos já, seria importante que cada instituição acadêmica iniciasse um processo de revisão à luz dessas reivindicações e que os resultados fossem tornados públicos para se tornarem exemplares para outras instituições e como encorajamento para todos.

 

O papa, “a partir do Evangelho da misericórdia e de uma séria assunção da história no seio da teologia”, sugere-nos um extraordinário espaço de liberdade e de responsabilidade operacional e criativa. Não há mais nenhum pretexto para as justificativas de um imobilismo repetitivo. Nessa assunção do tempo e do espaço, está implícita uma séria assunção dos mundos vitais e das condições de vida dos homens e das mulheres, em uma teologia contextual em uma escuta não distraída das perguntas relevantes e urgentes.

 

A história necessária

 

Um dos caminhos a serem seguidos é o da construção de um novo projeto didático de bacharelado inspirado na teologia para a paz, ao qual é preciso que a desejada e esperada nova ratio studiorum se adeque. Sagrada Escritura, História Civil e História da Igreja (não história acontecimental, aproblemática, apologética, mas análise crítica das fontes e desconstrução das mentiras e das generalizações, superando o uso público da história e de todas as construções de memórias funcionais à subserviência dos seres humanos) com adequados espaços no número de horas deveriam fornecer a base para um saber teológico que coloque no centro a Paz do Evangelho, não como um adjetivo opcional, mas como a própria substância do estudo teológico fundamentado nos princípios da não violência. As possibilidades aqui são enormes e todas devem ser experimentadas.

 

Apenas para dar alguns exemplos, pensemos na contribuição que pode oferecer o estudo dos escritos de autores como Erasmo de Rotterdam até chegarmos a Luigi Sturzo, da grande tradição do pensamento não violento clássico de Tolstói a Gandhi, de Giorgio Capitini a Danilo Dolci, até os católicos Lanza del Vasto, Jean Goss e Hildegarde Mayr, dos extraordinários testemunhos do século XX de Primo Mazzolari, Lorenzo Milani, Giuseppe Dossetti, Thomas Merton, Giorgio La Pira, Tonino Bello, Arturo Paoli, Desmond Tutu e de mártires como Martin Luther King, Óscar Romero, Marianella García Villas, Juan José Gerardi e Pierre Claverie.

 

São exemplos, entre muitos, de figuras que permanecem até hoje praticamente desconhecidas dos nossos estudantes. Considero que os seus escritos poderiam dar à didática teológica uma riqueza extraordinária, até hoje subvalorizada e, de fato, negada. Assim como permanece ainda ignorada a rica tradição da objeção de consciência cristã do recruta Maximiliano até Franz Reinisch, Franz Jägerstätter, Max Josef Metzger, Josef Mayr-Nusser, Jean Claudel, Jean Pezet, Giuseppe Gozzini, Rosemary Lynch e muitos e muitas que ofereceram um testemunho exemplar da não violência evangélica.

 

O atraso da teologia diante da história

 

Mas estamos atrasados, a teologia está muito atrasada. Somos chamados pelas perguntas da história a uma conversão da teologia.

 

Chamados a fazer confluir os nossos campos de pesquisa, muitas vezes muito especializados, em uma elaboração coletiva e corajosa de uma Teologia para a Paz fundamentada no sentido profundo da não violência inspirada no Evangelho.

 

Os estudantes olham para nós e nos pedem para ajudá-los a compreender a complexidade, a forma a sua consciência para um desarmamento das mentes, a formular um julgamento esclarecido diante dos armamentos, dos massacres, das torturas, dos bombardeios e sobretudo diante de um sistema financeiro militarizado que produz fome, empobrecimento, morte e que, de fato, governa ferozmente o mundo, condiciona os parlamentos e pretende justificar as desigualdades.

 

Eu não gostaria que, em uma hora tão terrível, se continuasse planejando estudos teológicos que deixam os estudantes indiferentes, ou resignados, em relação à realidade da inumanidade e da injustiça sistêmica. Se o resultado do nosso ensino for a indiferença ou a resignação, então é certo que fracassamos. Até porque não há rastro de indiferença e de resignação no Evangelho.

 

Em vez disso, inspiremo-nos naquilo que o papa ainda recomenda: “Sonho com faculdades teológicas nas quais se viva a convivialidade das diferenças, nas quais se pratique uma teologia do diálogo e da acolhida; nas quais se experimente o modelo do poliedro do saber teológico em vez de uma esfera estática e desencarnada. Nas quais a pesquisa teológica seja capaz de promover um exigente, mas convincente, processo de inculturação”.

 

Certamente, essas convivialidades, essas práticas, essas experimentações e esses processos serão a nossa contribuição – de instituições teológicas e professores – para a construção da Paz.

 

Leia mais