05 Outubro 2021
“A Igreja está enfrentando uma crise de segurança e confiança. Nenhum passo em direção à solidariedade pode ser dado sem levar em conta a dor e a raiva, o pesar e a traição causados por ela. A solidariedade permanecerá um slogan vazio até que haja uma mudança drástica na forma como o poder é exercido na Igreja, corrigindo assimetrias que negam o poder a alguns e o consolidam por meio de estruturas que reforçam o hierarquismo e o clericalismo”, escreve Marcus Mescher, professor associado de ética cristã na Universidade São Francisco Xavier, em Cincinnati, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 04-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Para os católicos estadunidenses, a publicação da Fratelli Tutti em outubro de 2020 pareceu ser obnubilada pelo drama do pré e pós eleições nacionais. A leitura solene do Papa sobre os “sinais dos tempos” expressada pelas suas preocupações com os “sonhos dilacerados” devido às “visões antropológicas reducionistas” que degradam, privam e dividem a luta para encontrar um ponto de apoio entre as pessoas consumidas pelas crescentes tensões e pela intensificação do partidarismo político.
A encíclica repreende a polarização e o partidarismo que infecta não apenas nosso país, mas também a Igreja, condenando as guerras culturais fomentando as mentalidades de “nós contra eles”. Um ano depois, está claro que alguns católicos dos EUA ainda precisam aprender estas lições.
Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco não apenas confronta a disseminação de mentiras e a divisão, ele também lamenta que “nós estamos mais sozinhos que nunca”, e direciona nossa preocupação para aqueles sujeitos à discriminação, exclusão e violência. Ele fala da vulnerabilidade das mulheres e do flagelo do racismo em muitos contextos sociais, mas nunca reconhece a forma que a Igreja perpetua a marginalização e a desigualdade entre seus membros.
A insistência da encíclica sobre o termo “fraternidade” e nas fontes e exemplos exclusivamente masculinos compromete a credibilidade do documento para modelar um tipo de solidariedade entre “pessoas que estarão constantemente abertas a novas sínteses através de suas habilidades de acolher as diferenças”.
O Papa encoraja-nos a reconhecer os problemas sociais como problemas espirituais, o que levanta a questão de como a Igreja lidará com suas abordagens inadequadas da formação religiosa e moral que contribuem para esses problemas espirituais.
A pandemia causou e revelou que muitas pessoas pararam de ir à Igreja e muitas pessoas pararam de se ver como uma Igreja.
O lockdown e as mortes causadas pela pandemia de covid-19 impactam irrevogavelmente a composição e a recepção de Fratelli Tutti. Em todo o mundo, as pessoas estão carregando uma grande dor e pesar pelo tributo humano que suportamos nos últimos 19 meses. Além das consequências individuais, sociais e econômicas, há também a questão prática de que cada vez menos católicos participam da vida paroquial.
Embora um bom número de pessoas possa estar sintonizando fielmente as liturgias por streaming ou participando pessoalmente para receber a Eucaristia, uma fração considerável do corpo de Cristo há muito se sente isolada da comunidade.
Isso é verdade para aqueles que consideram as missas transmitidas como uma aproximação insustentável para “uma participação ativa e plenamente consciente nas celebrações litúrgicas”; aqueles que se sentem inseguros para ir à Igreja pessoalmente devido aos riscos de exposição ao coronavírus; e aqueles que se sentiram invisíveis e insignificantes pela Igreja, como é o caso de muitas mulheres, pessoas LGBTQIA+, católicos negros e latinos, aqueles que se divorciaram e se casaram novamente, viúvas e outros que a Igreja muito raramente acolhe e prioriza com o cuidado pastoral.
Por décadas, muitos católicos estadunidenses viram a paróquia mais como um lugar onde os sacramentos são ofertados do que como o centro da vida comunitária. Em uma sociedade de consumo, isso tende a treinar os católicos para ver os funcionários da paróquia como “prestadores de serviços” e os paroquianos como “destinatários de serviços”.
Se os leigos não gostam de música, homilias ou educação religiosa em uma paróquia, eles podem “fazer compras na Igreja” até encontrar uma experiência mais satisfatória para o cliente, talvez até contando com avaliações online de Igrejas que correm o risco de comparar locais de culto a restaurantes ou lojas.
Isso apenas reforça a visão da Igreja como um lugar para ir, ao invés de um povo chamado à comunidade unida pela missão de seguir e imitar Jesus Cristo. A pandemia causou e revelou que muitas pessoas pararam de ir à Igreja e muitas pessoas pararam de se ver como uma Igreja.
Existem muitas razões para isso, é claro. Parte disso tem a ver com a marginalização das mulheres, os maus-tratos a pessoas LGBTQIA+, cumplicidade com a supremacia branca e exemplos de julgamento, hipocrisia e corrupção em uma testemunha do ensino de Jesus e ministério de cura orientado para a inclusão e misericórdia.
Parte disso tem a ver com exaustão e frustração com a visão estreita dos bispos em algumas questões (nomeadamente, o aborto) e falta de urgência em relação a outras questões sociais, seja racismo sistêmico, legislação antidemocrática que restringe o direito de voto ou a crise climática exacerbada pelos combustíveis fósseis.
Muito disso tem a ver com a catástrofe moral do abuso sexual do clero e seu encobrimento. Dois anos atrás, uma pesquisa do Gallup revelou que menos de um terço dos católicos acreditam que os padres são honestos e éticos. Desacreditar, envergonhar e silenciar os sobreviventes do abuso do clero aumenta a má prática espiritual da Igreja e rouba os fiéis da verdade do que aconteceu em nossas comunidades.
Mesmo após vir à luz que milhares de padres abusaram de mais de 100 mil pessoas, a Igreja está fazendo um fraco progresso em direção à verdade, contrição e justiça restaurativa.
Uma Igreja que exclui alguns membros da mesa da comunhão, que depende da obrigação ou culpa para obrigar a participação, que protege os perpetradores de abusos espirituais e sexuais e que constrói barreiras que impedem a transparência, responsabilidade e prevenção tem pouca autoridade moral para condenar antropologias culturais prejudiciais.
A Igreja está enfrentando uma crise de segurança e confiança. Nenhum passo em direção à solidariedade pode ser dado sem levar em conta a dor e a raiva, o pesar e a traição causados por ela. A solidariedade permanecerá um slogan vazio até que haja uma mudança drástica na forma como o poder é exercido na Igreja, corrigindo assimetrias que negam o poder a alguns e o consolidam por meio de estruturas que reforçam o hierarquismo e o clericalismo.
Quando Francisco se apresentou ao mundo há oito anos, ele apresentou uma visão da Igreja que deveria ser mais como um hospital de campanha do que uma fortaleza. Embora isso nos dê uma imagem convincente para fazer a triagem necessária para cuidar dos feridos, não se ajusta à escala dos problemas que a Igreja enfrenta.
Um hospital de campanha oferece atendimento urgente, mas não pode reparar danos ou prevenir ferimentos. Como Fratelli Tutti, também envia a mensagem de que existem problemas no mundo, mas não na própria Igreja. Para onde nós voltamos quando o hospital de campanha está causando – e não curando – feridas?
A visão de solidariedade de Francisco encontra inspiração no Bom Samaritano (Lucas 10, 25-37). O Papa nos exorta a adota seu testemunho de ir ao próximo, ir ao encontro do necessitado, e fazer o que nós podemos “para reconstruir o mundo ferido”, sendo que “qualquer outra decisão nos faz tanto um ladrão ou qualquer um que passou caminhando sem compaixão... Nós não podemos ser indiferentes ao sofrimento, nós não podemos permitir que ninguém viva desamparado”.
Em vez de atender a gostos pessoais, conforto e conveniência – como nossa sociedade de consumo insiste que deve ser a norma – somos desafiados a “humildemente considerar os outros como mais importantes do que nós mesmos, cada um zelando não pelos próprios interesses, mas todos pelos dos outros” (Filipenses 2, 3-4).
Este é o preço de amar a Deus, amando o próximo, de abraçar a nossa vocação de “feitos para amar”, um amor destinado a forjar o parentesco que é “aberto a todos” e “não exclui ninguém”.
Fratelli Tutti ressalta que o amor é social e político. O quinto capítulo é dedicado a como o amor pode inspirar um “melhor tipo de política” para unir as pessoas apesar das diferenças. Sem dúvida, o cenário político certamente se beneficiaria de um compromisso mais robusto com a prática de virtudes como humildade, curiosidade e compaixão por meio do diálogo honesto e de um compromisso compartilhado com o bem comum global.
Mas respeito mútuo, igualdade e preocupação recíproca são necessários em todas as áreas, e especialmente em nossa igreja ferida hoje. A formação acontece em nossos relacionamentos e nas práticas que compartilhamos; nós somos o que fazemos repetidamente juntos.
Se a Igreja local pode ser mais do que um lugar onde os sacramentos são dispensados, ela terá que ser o lar de rituais vivificantes que facilitem encontros inclusivos, promovam a segurança e a confiança, pratiquem o diálogo autêntico e vulnerável, forneçam apoio e responsabilidade e iniciem a colaboração para defender a dignidade e os direitos humanos na busca da paz e da justiça para todos. As pessoas terão de ser convidadas a passar de espectadores a interessados. A solidariedade só é possível quando todos concordam em colocar um pouco de pele no jogo.
Esta última encíclica oferece uma visão elevada de catolicidade, celebrando – não apenas tolerando – a unidade na diversidade. O chamado de Francisco para “sonhar juntos” com uma comunhão cada vez mais inclusiva e interdependente oferece um recurso iluminador e encorajador diante de tanta fragilidade e fratura social.
Apelar para os nossos sonhos é um convite para contemplar quem queremos depois da pandemia, para não nos contentarmos com a Igreja ou o mundo como são. Os sonhos nos permitem acessar nossos desejos mais profundos. Nas Escrituras, os sonhos revelam o que Deus deseja para e de nós. Na melhor das hipóteses, os sonhos podem ampliar o que imaginamos ser possível, para que não nos tornemos complacentes com um status quo injusto. Na pior das hipóteses, eles provocam dor ou brincam com o medo.
Em qualquer dos casos, eventualmente, temos que acordar de nossos sonhos. Um ano após o lançamento da Fratelli Tutti, temos que retomar o trabalho de passar do sonho para a realização para que essas palavras proféticas encontrem expressão por meio de rituais compartilhados que ampliam a hospitalidade, animam o diálogo honesto e ativam uma robusta corresponsabilidade na entrega de esperança e cura para nossa Igreja e sociedade.
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Um ano depois da Fratelli Tutti: é tempo de a Igreja sair do sonhar para o fazer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU