05 Janeiro 2019
Diante da agenda da Igreja e de Francisco em 2019, o papado continuará sendo um dos mais interessantes centros de pensamento e de ação desta era.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 03-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Haverá uma série de compromissos importantes para o Papa Francisco e a Igreja Católica em 2019, começando com mais viagens papais às periferias do nosso mundo.
O papa de 82 anos viajará ao Panamá para a Jornada Mundial da Juventude em janeiro, antes de partir para os Emirados Árabes Unidos e para o Marrocos, países de população majoritariamente muçulmana, em fevereiro e março. Depois, ele irá para os países predominantemente ortodoxos da Bulgária e da Macedônia em maio.
Também está na agenda papal do início deste ano a reunião sem precedentes dos presidentes de todas as Conferências Episcopais do mundo, de 21 a 24 de fevereiro em Roma, para discutir a crise dos abusos sexuais. Depois, em outubro próximo, o papa convocará uma sessão especial do Sínodo dos Bispos para se concentrar nos problemas enfrentados pela região amazônica.
Também se espera que Francisco emita uma nova constituição apostólica no primeiro semestre de 2019, que codificará aquele que tem sido um processo de cinco anos de reforma da Cúria Romana.
E provavelmente haverá algumas surpresas, dado o estado turbulento da comunhão católica. A tensão ficou evidente em 2018 nos Estados Unidos. Por exemplo, duas dezenas de bispos mostraram um apoio sem precedentes e inimaginável ao arcebispo Carlo Maria Viganò quando ele pediu que Francisco renunciasse. O ex-núncio papal em Washington fez isso em agosto passado, divulgando um “testemunho” enquanto o papa visitava a Irlanda.
Mas agora olhamos para o futuro à nossa frente. E um modo de fazer isso é ponderar sobre certos marcos do passado recente e menos recente. Como William Faulkner notoriamente escreveu, os aniversários podem nos ajudar a lembrar que “o passado nunca está morto. Ele sequer passou”. E isso é particularmente verdade para a Igreja Católica.
Um dos eventos históricos que a Igreja celebrará em 2019 é o 150º aniversário do Concílio Vaticano I. A comemoração provavelmente será marcada por livros recém-publicados e por vários congressos e outros eventos eclesiais – geralmente, são modos de sinalizar uma mudança de política sob o pretexto de falar sobre eventos passados.
Pio IX abriu o Vaticano I em dezembro de 1869, mas a assembleia foi suspensa (não formalmente concluída) em setembro de 1870. Foi o último concílio realizado com um papa que também era rei.
O Vaticano I é conhecido principalmente pelo dogma da infalibilidade papal. Os bispos do concílio votaram em “linhas partidárias” – infalibilistas versus anti-infalibilistas. Não houve nenhum esforço real para criar unanimidade, especialmente por parte do Papa Pio IX, que fez intervenções decisivas nos momentos mais importantes do concílio.
Mas o Vaticano I foi mais do que apenas a infalibilidade papal. A Igreja Católica hoje deve lembrar dois outros aspectos importantes desse concílio.
Primeiro, a contribuição do Vaticano I para o crescimento do papado no mundo contemporâneo deveu-se mais à sua ênfase no primado papal do que à infalibilidade, que rapidamente se revelou como uma arma altamente impraticável nas mãos do papado. É por causa do primado que a Igreja Católica hoje é muito mais papista do que nunca. Isso se deve ao Vaticano I e apesar do Vaticano II (o Concílio Vaticano II).
Por outro lado, como John O’Malley SJ observa em seu último livro sobre o Vaticano I, a vitória da maioria infalibilista no concílio também foi uma vitória póstuma para a minoria do modo não extremista em que a definição de infalibilidade papal tem sido interpretada na Igreja e pelo magistério desde 1870.
Em segundo lugar, o Vaticano I sancionou e endossou oficialmente um movimento teológico-político em reação ao liberalismo, que havia começado na primeira metade do século XIX. O Movimento Ultramontano (representado por intelectuais como De Maistre, Lamennais e Veuillot na França, Cortes na Espanha, Görres na Alemanha, e Manning na Inglaterra) recentralizou o catolicismo em torno do papa e de Roma. Ele era contra não apenas o galicanismo, mas também contra o liberalismo em geral.
Existem paralelos interessantes entre o movimento ultramontano que começou há 150 anos e o movimento neotradicionalista no catolicismo do início do século XXI – isto é, contemporâneo –, evidenciados pelo papel desempenhado por alguns recém-convertidos ao catolicismo e pela mídia católica.
O ano de 2019 dirá algo sobre a força e a coesão desse ataque ao papado por pequenas alas neotradicionalistas da Igreja Católica, depois do “tiro não certeiro” que foi o desajeitado coup d’eglise arquitetado pelo arcebispo Viganò e sua rede de apoiadores visíveis e invisíveis em meados de 2018.
Outro aniversário em 2019 do qual a Igreja de hoje pode obter uma intuição é o centenário da fundação do partido político de inspiração católica da Itália, o Partito Popolare Italiano (PPI). Ele marca a primeira vez em mais de quatro décadas que o papado permitiu formalmente que os católicos italianos se envolvessem ativamente na política, depois que o papa Bento XV suspendeu a proibição imposta por Pio IX em 1874.
O fundador do PPI, Pe. Luigi Sturzo, foi enviado ao exílio pelos fascistas poucos anos depois, mas não sem o encorajamento do papado. O exílio do padre precedeu um acordo entre Mussolini e a Santa Sé para encontrar uma solução para a “questão romana” e para lutar contra o comunismo e o socialismo.
O centenário é um aniversário interessante, porque a fundação do PPI marcou o experimento mais importante de um partido político inspirado na doutrina social da Igreja. Ele também recorda o desconforto das autoridades vaticanas, que consideravam o Pe. Sturzo muito independente do seu controle. E isso ilustra como o papa optou por lidar com a questão mais geral da época – a ameaça do totalitarismo – e que tipo de compromissos a Igreja estava disposta a fazer a fim de sobreviver.
A causa da beatificação do Pe. Sturzo está em andamento agora, e o 100º aniversário do PPI pode dar um impulso ao processo.
No entanto, o centenário também é um lembrete daquilo que mudou desde os dias de Luigi Sturzo. Há um século, os católicos viviam um breve período de liberdade das garras da hierarquia eclesiástica. Embora Sturzo tenha sido exilado em 1924, e o partido estivesse dissolvido, pelo menos por algum tempo os católicos na Itália receberam a autonomia para explorar as complexidades de lidar com a cidade terrena.
Mas, após 20 anos do seu exílio e com a conclusão da Segunda Guerra Mundial, muitas das intuições de Sturzo sobre a Igreja e a política moderna voltaram à tona e contribuíram para a construção de uma nova Itália e de uma nova Europa. Os católicos puderam dialogar e trabalhar em conjunto com socialistas democráticos e liberais. Foi o início do modelo social europeu, que agora está em perigo. E poderia haver ainda mais perigo depois das eleições do novo Parlamento Europeu em maio de 2019.
É uma batalha na qual alguns católicos – como Steve Bannon e seus aliados na América do Norte e na Europa – estão tentando impor uma nova ordem política europeia. Eles estão fazendo isso através de uma rede de intelectuais e de figuras influentes, incluindo alguns prelados católicos, que se opõem ao Papa Francisco. Provavelmente nem mesmo “São Luigi Sturzo” poderia salvar o legado da ordem internacional criada pelos partidos cristão-democratas na batalha em curso pelo futuro político da Europa.
Um terceiro aniversário em 2019 diz respeito ao nexo entre a crise da globalização e a globalização das religiões. Ele está relacionado a dois grandes eventos de 1979 que mudaram o mundo em que as religiões têm operado até hoje.
O primeiro foi a Revolução Iraniana. Liderada pelo aiatolá Khomeini, ela marcou a derrubada do último xá e transformou a Pérsia na República Islâmica do Irã. Quatro décadas depois, o equilíbrio de poder entre o Islã xiita e sunita no Oriente Médio mudou muito.
A ascensão dos xiitas iranianos teve um grande impacto sobre os principais atores da região – Israel, Arábia Saudita, Turquia e especialmente a Síria. Isso teve enormes consequências para as relações entre o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. Mas ela impactou mais significativamente sobre a minoria cristã da região, especialmente depois das guerras envolvendo coalizões ocidentais no Iraque entre 1991 e hoje.
O segundo evento de 1979 ocorreu na China. Um novo líder comunista, Deng Xiaoping, forjou uma política inovadora que desencadeou um renascimento econômico e lançou a China no cenário global – não apenas economicamente, mas também culturalmente – pela primeira vez desde a revolução de 1949.
Isso introduziu a China na geopolítica da religião e do cristianismo. O futuro do cristianismo não pode ser entendido sem olhar para a sua presença na China, que é uma das razões do recente acordo histórico entre o Vaticano e Pequim sobre a nomeação de bispos católicos.
A maioria dos observadores na época não percebeu a magnitude que esses eventos de 1979 tinham para o futuro do mundo. Isso incluiu aqueles que interpretavam tudo através das lentes da “teoria da secularização”, para a qual o ressurgimento da religião era apenas uma quimera de curta duração.
Mas a Santa Sé estava entre os poucos que imediatamente entenderam as implicações geopolíticas que essas enormes mudanças teriam para o catolicismo.
Os papas e o Vaticano demonstraram nesses últimos 40 anos uma notável independência política e intelectual em relação ao Ocidente ao lidar com o crescente poder no Oriente Médio (Irã) e na Ásia (China). Eles demonstraram disposição para percorrer até mesmo os caminhos mais estreitos e quase impossíveis de diálogo com poderes percebidos como inimigos do centro geopolítico do cristianismo ocidental.
Isso é essencial para entender o Vaticano e o seu papel nesta era de globalização rompida.
O Papa Francisco, em particular, promoveu a tradição católica do saudável desencanto com a ocidentalização do cristianismo. Olhando para o seu plano de viagem internacional de 2019, há boas razões para acreditar que o papado continuará sendo um dos centros de pensamento e de ação mais interessantes desta era.
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Três aniversários em 2019 para entender melhor a Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU