23 Mai 2022
Dom Darío de Jesús Monsalve (Valparaíso, 1948) é o arcebispo de Cali, a cidade que se tornou o epicentro da mais importante explosão social da Colômbia nas últimas décadas: a paralisação que jovens de todo o país realizaram durante quatro meses. De acordo com diversas ONGs, mais de 85 manifestantes foram mortos pela Polícia e o Exército, 68 deles em Cali, para onde o governo de Iván Duque enviou o comandante Zapateiro para coordenar a resposta àqueles que, em muitos casos, com mais de um ano de pandemia, passavam até mesmo fome e décadas de abandono do Estado.
Em um país onde a Igreja Católica costuma apoiar os setores mais elitistas e reacionários, Dom Darío não só defendeu os manifestantes, como também considera a repressão – que, além de mortes, provocou centenas de feridos, prisões e dezenas de mutilações oculares – uma prática a mais da “vingança genocida” do governo Duque.
Nós o entrevistamos em sua residência, localizada perto da Universidad del Valle, em uma região cheia de grafites que reivindicam a luta social, o feminismo, a proteção do planeta e denunciam a economia de guerra e a plutocracia, todos assuntos que protagonizarão a conversa. Ao final, além de continuar com as reflexões fora do microfone, o arcebispo oferece seu conhecido refresco aos visitantes: frutas com sorvete. Em meio a tanta tensão e crueldade, faz da palavra, em vez de carne, hospitalidade.
A entrevista é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 20-05-2022. A tradução é do Cepat.
Por que a repressão à paralisação foi tão violenta em Cali? De acordo com as investigações de organizações como a Anistia Internacional, entre muitas outras, nesta cidade foram mortos pelas Forças Armadas 68 dos mais de 85 jovens assassinados em toda a Colômbia, nos quatro meses de paralisação nacional.
As forças públicas na Colômbia, há muitos anos, vêm sofrendo uma grave mudança. Sua missão era proteger a vida e o país, a convivência pacífica e a democracia. Mas a doutrina de Segurança Nacional mudou essa visão em favor da manutenção da ordem interna. Hoje, as forças públicas na Colômbia identificam como inimigo interno e terrorista quem discorda do Governo central e do modelo político e econômico que o poder dirige aqui. E isso está relacionado às extremas-direitas internacionais como a de Trump.
Além disso, aqui, é o poder econômico hegemônico que tem o poder político, das armas e aparelhos do Estado. A Colômbia gerou forças hegemônicas extremamente agressivas que fazem o que for necessário para que nada mude. E que, além disso, buscaram uma resposta violenta contra a subversão, que também estava na luta armada e, desse modo, gerou-se uma competição sobre quem é o mais violento. Foi assim que chegamos ao extremo da violência para que nada mude e ao extremo de violência para mudar tudo. E ambas tinham em vista a eliminação do adversário. Esse é o clima do país.
Todos os dias temos notícias de signatários da paz que foram assassinados. Já foram assassinados mais de 400 signatários dos Acordos de Havana. Isso significa que na Colômbia há uma tendência ao genocídio e à vingança genocida. Assina-se um acordo de paz e já vai se arquitetando também um acordo subterrâneo de forças muito estranhas, onde, às vezes, misturam-se elementos institucionais para colocar os signatários na mira de uma arma.
Isso tem feito com que todo acordo de paz assinado na Colômbia leve a uma eliminação sistemática, progressiva e seletiva daqueles que o assinam. E isso provoca uma situação muito grave: quem irá se arriscar a um processo de paz para que, pela enésima vez, seja traído por meio dessas formas de eliminação do adversário [?].
É preciso tirar este país desses processos. No Governo de Juan Manuel Santos se tentou, mas depois vieram esses quatro anos de retrocesso e recrudescimento impressionantes da violência, de rejeição à restituição de terras, de interrupção na substituição de cultivos e de um impressionante aumento nos cultivos de coca.
O poder do narcotráfico na Colômbia cresceu enormemente neste período, os cartéis do Pacífico, do Atlântico, as rotas da droga por todas as partes e a ocupação paramilitar e de outros grupos subversivos dos espaços deixados livres pelas FARC. Hoje, o panorama de grupos armados e violentos na Colômbia é indescritível.
Pelo fato de dizer essas coisas, o senhor se torna um alvo a ser aniquilado por muitos grupos de poder deste país. E por essas afirmações que está fazendo, será rotulado como guerrilheiro, subversivo...
Sim, é inevitável, mesmo dentro da própria Igreja, especialmente por alguns setores, sobretudo diplomáticos, que não aceitam que essa linguagem seja utilizada para denunciar que o genocídio ocorre em uma sociedade como a nossa. Mas nós que somos pastores, que estamos caminhando com o povo, ajudando-lhes a construir sua convivência, a ter expectativas de futuro, temos que falar com certa franqueza e não dourar o discurso.
Naqueles dias, o senhor se empenhou em tentar impedir os assassinatos de jovens manifestantes pelas forças armadas e em estabelecer canais de diálogo com as instituições. Como foi o processo?
A militarização foi imediata e com ela veio o comandante Zapateiro, que dirigiu a resposta institucional que se transformou em repressão. Cali se tornou um teatro de operações militares e o prefeito da cidade sentiu que sua autoridade havia sido repassada à força pública, o que criou um vazio muito grande. Transformei esta casa em um local de reunião de acadêmicos, pesquisadores e empresários para coordenar uma rede operacional muito forte de comissões humanitárias na rua, com o acompanhamento dos 30 pontos de resistência que foram criados em Cali.
Acompanhei a ONU e a Comissão da Verdade nos espaços onde se reuniam. Nós os convidamos a entrar em espaços de diálogo. Não foi fácil, mas conseguimos fazer com que o prefeito reconhecesse os integrantes da linha de frente como sujeitos de interlocução. Isso favorece a diminuição da tensão entre os que protestavam e entre o empresariado, que se viu muito afetado pelas interrupções no trânsito, que forçavam os comércios a ficarem fechados, o que gerou uma situação muito difícil por muitos dias.
Eram jovens muito excluídos, com histórias de grande violência em muitos casos, e que decidiram lutar com a Polícia. A população que antes não os apoiava, passou a apoiá-los e reconhecê-los como seus porta-vozes. Propusemos alguns corredores humanitários que foram sendo aceitos e, finalmente, retiraram os pontos de resistência, mas não pela Força do Exército, que fracassou em sua tentativa de entrar à força e que precisou retirar seus tanques de guerra.
Seu trabalho de acompanhamento e apoio às comunidades indígenas é conhecido, também durante a paralisação, quando foram atacadas por civis armados.
Sim, houve setores dos estratos superiores que se armaram para enfrentar os indígenas, que são nossos vizinhos, quando vieram às suas mobilizações. Estivemos próximos de grandes tragédias. Um ano depois, a situação continua tensa. Fomos fortalecendo a autoridade institucional local, mas com muitas dificuldades porque o Governo central não só não coopera, como também suas agências, ao contrário, dedicam-se à provocação, gerando mais raiva e agitação nas pessoas. E temos uma situação econômica grave em que o poder econômico, que é o empresarial, busca pouco incluir as pessoas no emprego e apoiá-las.
O senhor mencionou essa parte da população mais rica que se armou para atacar os indígenas que vieram a Cali para se somar aos protestos. Em meios de comunicação como Caracol TV, as notícias se referiam a esse fato com um rótulo muito nítido da visão de mundo presente nas elites colombianas: “Cidadãos e indígenas se enfrentam”. Em que grau a Colômbia permanece racista?
Cali é uma cidade muito cosmopolita, na qual mais de 50% de sua população é negra, existem comunidades indígenas muito importantes... Então, era intolerável que uma parte dos cidadãos os tratasse assim. Telefonei para os párocos dos bairros dos agressores e pedi que utilizassem todos os meios ao seu alcance – chamadas telefônicas, redes sociais… – para lhes dizer que parassem, que voltassem para seus condomínios e que deixassem os indígenas protestar em paz. De fato, fui acompanhá-los e apoiá-los em seu direito de estar na cidade. E pedi perdão por todos os feridos, muitos quase até a morte.
Por que tanto ódio desses setores privilegiados contra os povos indígenas?
Mais do que ódio, eles têm medo. Em Cali, os problemas sociais são muitos, mas para as pessoas que têm poder econômico se resumem ao problema da terra e do porto. Veem os indígenas como uma ameaça às suas propriedades, aos seus latifúndios, por causa das reivindicações de terras que fazem. Os indígenas foram mantidos nos lugares de alta montanha que já foram muito explorados. Pedem que lhes deixem se estabelecer nas planícies e em áreas produtivas.
O outro medo é o porto de Buenaventura, muito próximo de Cali. Por ele, passam 80% do comércio internacional da Colômbia, os 17 tratados de livre comércio assinados por este país. Contudo, a cidade não se viu beneficiada em nada por esse porto. Sua população, que ultrapassa meio milhão, vive em condições terrivelmente deprimentes. E por isso sempre temem que isso aumente e que o tráfego com Cali seja interrompido, devido às consequências econômicas.
Como está a fome na Colômbia?
Pensava-se que fosse menos, mas a Associação de Bancos de Alimentos (ABACO), a maioria da Igreja Católica, trouxe números alarmantes. Temos enormes setores da população que só fazem uma refeição por dia ou, raramente, duas. Sem renda, sem emprego, junto à fome veio uma impressionante carestia dos preços de alimentos.
A Organização das Nações Unidas está solicitando um rápido retorno à agricultura alimentar, que foi trocada pela industrial para responder aos interesses das empresas mundiais. Junto à escassez de contêineres com alimentos que sofremos durante a pandemia, soma-se os entraves que a guerra da Ucrânia provocou na importação de alimentos, fertilizantes e inseticidas.
A Colômbia poderia ser um país autossuficiente porque tem terras disponíveis, mas como não tem os subsídios de outros países, os analistas dizem que não é produtivo. Mas, no imediato, não vamos comer barras de ouro, nem euros, nem qualquer outra moeda. A Colômbia precisa entrar em níveis de inclusão social que permitam que essa beleza de país não continue sendo destruída. E que a primeira fonte de riqueza e renda deste país sejam seus recursos naturais, a vinda de turistas para esta beleza de biodiversidade.
É um país que tem que acordar para uma consciência coletiva, que tem que configurar um rosto de paz nacional. Porque agora há muitos rostos de paz em todo o país, mas é preciso de um nacional que legitime o Estado. Tentou-se no governo anterior ao de Duque e agora precisa ser retomado.
Diante da realização de eleições presidenciais, a Colômbia está sofrendo um enorme aumento da violência contra os defensores de direitos humanos e contra lideranças sociais. E muitos deles sustentam que caso vença a proposta progressista, o Pacto Histórico, os poderes políticos e econômicos vão jogar o país no caos para derrubar seu Governo. Qual é a sua opinião?
Nesta violência, muitos setores, também internacionais, têm uma parcela de responsabilidade. Tem havido uma intensa cooperação internacional, que quando chega às comunidades ajuda muito. Mas a maior parte dessas enormes somas de dinheiro chega ao Estado e o Estado não chega a muitos territórios.
Os Estados Unidos investiram milhares de bilhões na luta contra o narcotráfico. O que resta de tudo isso? O que resta das ajudas destinadas às Forças Armadas para que grupos como o ESMAD (Esquadrão Móvel Antidistúrbios) enfrentem os protestos com tanta violência? Por acaso, não encontraram métodos mais civilizados para enfrentá-los sem provocar as pessoas para que não acabem agindo com violência? Além disso, quando não agem com violência, infiltram-se para desencadear atos violentos e desacreditar movimentos e mobilizações sociais.
É necessário que a população se sinta protagonista na construção da paz. Alguns candidatos deram algumas pistas do que gostariam nesse sentido. Uma paz que precisa ser desarmada. Os amigos da luta armada podem se entender com os dinossauros porque a Colômbia não vai mudar com a luta armada. Mas, em vez disso, os Estados se tornaram armamentistas.
O Exército e a Polícia da Colômbia estão entre os maiores e mais armados do continente. São mais de meio milhão de colombianos. Um Estado que administra essa ideologia de guerra e terrorismo não irá abandonar facilmente o poder. Nesse sentido, gosto muito dos documentos do Papa Francisco. É preciso desarmar a humanidade, temos que suprimir todos os sistemas de produção de armas. E precisamos dedicar todos esses orçamentos ao cuidado do planeta que está a ponto de entrar em colapso.
Qual foi o papel desempenhado pela Igreja Católica na guerra colombiana e que papel precisa desempenhar em sua paz?
A Igreja tem que aprender a ser uma comunidade mais horizontal, fraternal, sinodal. Essa foi a sua origem: o mandato para se afastar do endeusamento, da idolatria e da vida desordenada. Rezar e trabalhar pelos pobres. A Igreja precisa se voltar muito mais para a Fratelli Tutti e Laudato Si’, como defende o Papa, ser uma grande família que é o planeta.
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“Na Colômbia, há uma tendência à vingança genocida”. Entrevista com Dom Darío de Jesús Monsalve - Instituto Humanitas Unisinos - IHU