31 Março 2022
"Estou começando a suspeitar que esta é uma tarefa que vai além do próprio papado e que – não demorando – deveria levar à convocação e realização de um Concílio Vaticano III para abordá-la", escreve Jesus Martinez Gordo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Noticias Obreras, 26-03-2021.
A Constituição Apostolica, Pregar o Evangelho é uma obra magnífica, típica de um artista – ou de uma equipe de artistas –, atento às linhas finas. Nada a ver com o pincel largo. Essa primeira impressão não surpreende, tendo em conta os nove anos que levou para escrever e, suponho, que inúmeros ajustes e emendas, alguns dos quais são perceptíveis no cruzamento de linguagens que o texto percorre, desde o início para terminar: o teológico, o eclesiológico, o espiritual, o pastoral e, sobretudo, a partir do terceiro capítulo, o jurídico e organizacional. Quem o ler vai encontrar um texto muito bem pensado e melhor escrito do qual, exagerando, pode-se dizer que não falta uma vírgula ou supérflua.
É também um documento que aconselho a examinar lentamente, especialmente os primeiros capítulos (o Preâmbulo) e o segundo (dedicado aos Princípios e Critérios). Já no número com que começa o Preâmbulo, emergem algumas verdades que, evidentemente, não foram muito comuns até agora em muitos círculos teológicos, espirituais e eclesiais: pregar o Evangelho do Filho de Deus, Cristo Senhor, passa por testemunhar –em palavras e atos– da misericórdia que a própria comunidade cristã recebeu gratuitamente, seguindo o exemplo de Nosso Senhor e Mestre, lavando os pés de seus discípulos. Isto significa que a Igreja é chamada a inserir-se na vida cotidiana dos outros, encurtando as suas distâncias, assumindo a vida humana e tocando a carne sofredora de Cristo nas pessoas. E é assim, como o povo de Deus cumpre o mandato do Senhor que nos exorta a cuidar dos irmãos e irmãs mais fracos, doentes e sofredores.
E o mesmo deve ser dito das passagens dedicadas à conversão missionária de toda a Igreja, mistério de comunhão; ou sobre a sinodalidade, vivida e compreendida como "escuta mútua" entre "Pessoas Fiéis, Colégio Episcopal e Bispo de Roma". E, da mesma forma, sobre os bispos individuais que dizem representar suas respectivas Igrejas “e todos, juntamente com o Papa, representam a Igreja universal em um vínculo de paz, amor e unidade” (nº 6). E, inclusive, o que se pode ler sobre as Conferências Episcopais quando afirma que constituem atualmente um dos meios mais significativos de expressão e serviço à comunhão eclesial que é necessário aumentar as suas potencialidades. Diante deles, sublinha-se, a Cúria vaticana não deve "agir como interposição" (nº 9), mas como serviço (nº 8).
Admito que foi particularmente agradável para mim ler todos estes pontos (e outros de semelhante relevância); muitos dos quais foram objeto de muitas dúvidas e reinterpretações distorcidas no período pós-conciliar.
Mas, deixando para depois uma possível análise mais detalhada, gostaria de fazer um comentário urgente sobre dois pontos que surgiram na minha leitura desta Constituição Apostólica: o primeiro, referente à capacidade governativa e magisterial dos leigos e, o segundo , –que fica para uma entrega posterior– sobre a reforma da Cúria vaticana e sua estreita ligação com o que o Papa Francisco entende e promove como “conversão do papado”.
Suspeito que os comentários sobre o número 10 do Preâmbulo e o número 5 da seção dedicada aos Princípios e Critérios exigirão rios de tinta. Eles já estão aparecendo, sem ter tido tempo de fazer uma leitura moderadamente calma de toda a Constituição.
No número 10 do Preâmbulo, o Papa Francisco sustenta que a reforma da Cúria deve “prever o envolvimento dos leigos, inclusive nas funções de governo e de responsabilidade”. Uma tese surpreendente que é destacada posteriormente, no número 5 da seção dedicada aos Princípios e Critérios, quando proclama que "qualquer fiel pode presidir a um Dicastério ou a um Organismo", tendo em conta que "cada instituição curial cumpre sua missão em virtude do poder recebido do Romano Pontífice, em cujo nome atua com poder vicário no exercício de seu munus primacial.
É, como se vê, uma afirmação clara e contundente que, entre outros, foi encarregado de qualificar Gianfranco Ghirlanda, professor emérito da Faculdade de Direito Canônico da Pontifícia Universidade Gregoriana; Cardeal Macello Semeraro, atual prefeito da Congregação para as Causas dos Santos e secretário do Conselho dos Cardeais, Marco Mellino.
É indiscutível, explicou Ghirlanda, a novidade de ter leigos em Dicastérios como Leigos, Família e Vida. Mas não se pode ignorar que esta Constituição Apostólica não revoga o Código de Direito Canônico quando estabelece “que os clérigos devem decidir sobre as questões que afetam o clero”. Tal seria o caso dos Dicastérios de bispos, sacerdotes e culto, instados, portanto, a ter ministros ordenados à sua frente. Esta observação, prosseguiu, não impede a tese central da nova Constituição Apostólica ("os leigos têm o mesmo poder vicário que os consagrados"), mas chama a atenção para a necessidade de articular "a igualdade fundamental entre todos os batizados” com “diferenciação e complementaridade”.
O que está em jogo nesta proclamação papal sobre o envolvimento dos leigos nas funções de governo e responsabilidade e nas ponderadas considerações, entre outras, de Gianfranco Ghirlanda?
De forma rápida: a questão do “mais” de poder que é conferido a um batizado para receber o ministério ordenado. Suspeito que o Papa Francisco acaba de abrir, como gosta de dizer, um "processo" sobre o dito "mais" de poder; reservado, até agora exclusivamente, para o ministério ordenado tanto no governo como no magistério da Igreja. E acho que o faz a partir de uma máxima que, tradicional na Igreja, foi esquecida há muito tempo: "o que afeta a todos deve ser decidido por todos", não apenas pelos ministros ordenados: bispos, sacerdotes e diáconos. A apropriação do “poder” na Igreja pelo ministério ordenado terá que ser debatida e, claro, devidamente atualizada. E teremos que entrar nesses caminhos tirando-o de sua estrutura tradicional de compreensão e exercício, absolutista e autoritário, em favor de outro corresponsável e sinodal.
Especificamente, creio que isso significa que devem ser dadas explicações, teológica e dogmaticamente fundamentadas, sobre por que homens e mulheres leigos só podem intervir no governo e no ensino da Igreja "participando" da autoridade ou poder do ministério que, cristológico, é típico dos ministros ordenados: é o Senhor – sustenta-se há séculos – quem os “escolhe e os designa”, dando-lhes “do alto” as tarefas que, “reconhecidas e realizadas” em seu nome, lhes correspondem exclusivamente, graças ao sacramento da Ordem. Por isso, os leigos – e, especificamente, o ministro leigo – só se preocupam em “colaborar mais diretamente no apostolado da hierarquia”, deixando claro que sua tarefa “não deve ser global”.
Ao contrário desta interpretação – ainda muito usual, mesmo nos círculos eclesiais progressistas – no Vaticano II há, juntamente com este modelo de apropriação da raiz cristológica da ministerialidade (e da eclesiologia e modo de governo que ela patrocina), outra, que funda a "participação" dos leigos na direção da Igreja, não no ministério ordenado, mas no sacerdócio de Cristo (LG 10).
Portanto, a noção de “participação” tem dois sentidos: ou como dependência dos leigos do clero em uma eclesiologia hierárquica ou como articulação estruturante dentro de uma participação conjunta – corresponsável e sinodal – de todos os batizados (incluindo aquele diferenciado pelo sacramento da Ordem) na tríplice função de celebração, ensino e também governo.
No Vaticano II nos encontramos com um duplo modelo eclesiológico, ministerial, magisterial e governamental: um, hierárquico e marcadamente clerical. E outra, muito promissora, quando explica o fundamento cristológico dos tria munera (palavra, santificação e governo) e, especificamente, o sacerdócio comum dos fiéis: isso não é por participação do sacerdócio ministerial, mas do sacerdócio de Cristo.
Como se sabe, no período pós-conciliar assistimos a um estacionamento – e posterior esquecimento – deste segundo modelo. É o que, até agora, tipifiquei como "o infarto teológico" do Vaticano II, pois a "colaboração" com o ministério ordenado é mais importante do que a "participação" no governo e no magistério ("realeza"), conferida por Cristo no batismo.
A experiência das equipes ministeriais da diocese de Poitiers (1994-2011), em sintonia com muitas igrejas do Terceiro Mundo, continua sendo um ponto de referência para o desenvolvimento pós-conciliar desse modelo. E, com ele, a uma necessária revisão da identidade e espiritualidade do ministério ordenado que, nessa ocasião, foi acompanhado por Dom Teobaldo e torpedeado, nas suas implicações e consequências organizativas, durante o pontificado de Bento XVI. Claro, com a sua aquiescência.
Mas este é um vento do Espírito muito difícil de aplacar e, muito menos, silenciar. Isso é evidenciado, por exemplo, pela recente nomeação de um leigo, um religioso e um diácono como "representantes do bispo" (os chamados "vigários") nos renomados "territórios pastorais" (os antigos "vicariatos") nas dioceses suíças de Lausanne, Freiburg e Genebra por iniciativa de seu arcebispo, Charles Morerod; um avanço completo – suponho porque não jejuou de coragem evangélica – a esta Constituição Apostólica, pelo menos neste momento.
Há uma segunda questão substantiva suscitada pela leitura deste texto e que deixarei para um momento posterior: em que medida esta reforma da Cúria – em sintonia com a “conversão do papado” liderada pelo Papa Bergoglio – é mais corresponsável do que colegial ou primacial? Já prevejo que Francisco está a dar alguns passos nesse sentido, mas, na minha opinião, é um "processo" que, dependendo do ponto de vista, é percebido como muito lento e desproporcionalmente colegial e pouco corresponsável; pelo menos, por boa parte dos cristãos da Europa Ocidental. Mas também como fugitivo por outros setores.
Estou começando a suspeitar que esta é uma tarefa que vai além do próprio papado e que – não demorando – deveria levar à convocação e realização de um Concílio Vaticano III para abordá-la. Seria a única maneira de calibrar e sair da ameaça de cisma que as minorias eclesiais gostam de expor.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Praedicate Evangelium”: como começar a superar o “infarto teológico” do Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU