“Kirill estreitamente ligado ao Kremlin. É impensável um seu ‘não’ ao conflito”. Entrevista com Enrico Morini

Vladimir Putin e o Patriarca Kirill (Foto: www.kremlin.ru | Wikimedia Commons)

10 Março 2022

 

A relação muito próxima com o Kremlin, o diálogo ecumênico e, acima de tudo, interno. Não há dúvida de que o conflito na Ucrânia representa um desafio complexo para a Igreja Ortodoxa russa.

 

Solicitado a se expor, mesmo por certo descontentamento interno, no domingo o patriarca Kirill se posicionou, legitimando de fato a ofensiva de Putin, na base da qual estaria a luta contra modelos de vida contrários ao cristianismo. Especialmente culpadas são as paradas gays, um teste de pertencimento, ou melhor, de lealdade, ao império ocidental de "consumo excessivo" e "liberdade visível". Aqueles que se opõem, como as repúblicas de Donbass, à imposição de "um pecado condenado pela lei de Deus", correm o risco de destruição, principalmente moral.

 

"A posição do Patriarca Kirill - observa Enrico Morini professor da Universidade Alma Mater de Bolonha, ex-professor de História e Instituições da Igreja Ortodoxa - é extremamente difícil e não creio que possamos esperar dele uma condenação explícita desta guerra louca, embora sem dúvida seja entristecido como cristão. Nesses treze anos estabeleceu um vínculo muito forte com o presidente Putin, baseado em um modelo comum de sociedade, alheia a valores importados da sociedade ocidental. Não é por acaso que na homilia de domingo ele tenha falado em referência ao Donbass - teatro de guerra como um lugar onde, na sua opinião, se tentava impor uma "cultura antropologicamente decadente da civilização ocidental".

 

Além disso, não há dúvida de que, considerando-se também patriarca da Ucrânia, vê na atual liderança daquele país um forte impulso desagregador de unidade, fundada na fé ortodoxa comum, entre todos os povos da antiga Rus' (Rússia, Ucrânia e Bielorrússia). Por fim, a Igreja russa, para prosseguir, após os setenta anos de perseguições, na reconstrução das suas estruturas e na reevangelização do país, avalia como importante o apoio do poder”.

 

A entrevista com Enrico Morini é editada por Riccardo Maccioni, publicada por Avvenire, 09-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Fortes críticas à guerra, por outro lado, foram expressas pelo metropolita Onufriy, que lidera a Igreja ucraniana fiel ao patriarcado de Moscou: é concebível que o conflito em curso leve a uma mudança nas relações de poder intraortodoxas?

 

A posição do metropolita Onufriy é ainda mais dilacerante: ele é ucraniano e sua Igreja é autônoma, mas faz parte do Patriarcado de Moscou, de cujo Sínodo ele é membro. Portanto, ele não podia deixar de tomar partido de seu país e o fez com coragem. Mas não sei se isso será suficiente para superar o mal-estar de sua Igreja, que está dramaticamente dividida entre a fidelidade à nação ucraniana e a sua dependência de Moscou. Os primeiros sinais desse mal-estar já podem ser percebidos: um bispo, o superior do mosteiro de Pocajiv e outros sacerdotes se abstiveram de comemorar na liturgia o Patriarca Kirill e este declarou que isso equivale a um cisma. Além disso, é muito provável que Onufriy, já fiel ao seu próprio país, também permaneça fiel à sé patriarcal. Isso é comprovado pelo fato de que, depois de ter pedido autocefalia para sua própria Igreja no passado, ele se conformou à recusa de Moscou.

 

Depois, há a Igreja Ortodoxa autocéfala ucraniana liderada pelo Metropolita Epifanyi, cujo reconhecimento por Bartolomeu I está na base da ruptura desta última com Kirill, entre o patriarcado ecumênico de Constantinopla e o patriarcado de Moscou.

 

A relação entre a consistência numérica das duas Igrejas ucranianas - moscovita e autocéfala - não é uniforme em todo o país (compreensivelmente, nas áreas de língua russa, Onufriy tem uma forte maioria). Considerando as dioceses e paróquias (uma estimativa do número de fiéis não é confiável), parece-me que a Igreja autônoma seja pouco menos do dobro da autocéfala. Na realidade, quando esta última nasceu no Concílio de União de 2018, apenas dois bispos da Igreja pertencente a Moscou (dos nove que alguns esperavam) passaram para a Igreja autocéfala.

 

 

Poderia este conflito mudar a geografia do mundo ortodoxo?

 

É difícil prever suas consequências no quadro geral da ortodoxia ucraniana. É possível supor uma transferência dos fiéis - e talvez até a passagem de alguns bispos da jurisdição russa de Onufryi para a autocéfala de Epifanyi, devido à exasperação geral antirrussa da população, mas é impossível prever em que medida. Na minha opinião, existem dois pontos firmes.

 

Mesmo supondo que no final de cada guerra não há vencedores, mas todos são vencidos, se a Ucrânia prevalecer, acredito que a Igreja Russa de observância moscovita continuará a existir, sobretudo em virtude da solidariedade de Onufryi com seu próprio povo: a dependência de Moscou é um fator identitário para ela. Se, por outro lado, a Rússia prevalecer, acredito que esta Igreja ainda manterá sua autonomia dentro do âmbito do patriarcado russo (como já manteve a jurisdição sobre a Crimeia mesmo após a anexação russa). Para a Igreja de Moscou, perder toda a jurisdição sobre a Ucrânia significaria ver fortemente reduzido seu primado numérico na Ortodoxia (de suas 30.000 paróquias, 12.000 estão na Ucrânia, com uma hipertrofia devida à exigência ortodoxa de fazer frente à Igreja greco-católica).

 

Nos últimos dias, 236 padres e diáconos ortodoxos russos assinaram um apelo contra a invasão da Ucrânia. A liderança de Kirill é menos firme?

 

Não acredito que o dissenso público desses clérigos possa enfraquecer o papel de liderança do Patriarca Kirill (no máximo, é sinal de uma diminuição de seu prestígio).

Muito mais deletério, no que diz respeito ao seu papel eclesiástico e institucional, seria um rompimento com Putin, dado o autoritarismo desenfreado do presidente.

 

Leia mais