03 Janeiro 2022
A concepção de um Deus “tapa-buracos” e transbordante de onipotência não está sequer na Bíblia, onde certamente há muitas páginas hoje inaceitáveis, mas que não devem ser lidas sem um método crítico, de modo fundamentalista e literal, o que, segundo a Comissão Teológica Internacional, seria “um suicídio do pensamento”.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 29-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Natal deste ano trouxe consigo uma série de provocações que abrem questões e pedem respostas de grande porte para todos.
A primeira provocação foi a do naufrágio dos migrantes ocorrido na noite de Natal. Quem se deu conta disso foi o jornalista Antonio Padellaro, que, como é costume no jornal Il Fatto Quotidiano, que sempre pede aos delinquentes que prestem contas dos seus crimes, no dia 28 de dezembro, no seu jornal, pediu que Deus prestasse contas por não ter estendido a sua mão para agarrar as mãozinhas das crianças que se afogavam no Mediterrâneo; para a resposta, pedia que o Pe. Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, se informasse a respeito junto ao Papa Francisco.
Ele não havia se dado conta, porém, que, na mensagem natalícia, o papa, repetindo o que havia dito em Mitilene e em muitas outras ocasiões, já havia assumido esse drama, invocando que não ficássemos indiferentes diante de “imensas tragédias que já passam em silêncio”, quando “corremos o risco de não ouvir o grito de dor e de desespero de tantos dos nossos irmãos e irmãs”, a começar pelos migrantes, pelos prófugos e pelos refugiados, cujos “olhos nos pedem para não nos voltarmos para o outro lado, não para renegarmos a humanidade que nos une, para assumirmos as suas histórias e não esquecermos os seus dramas”.
Mas a mensagem “Urbi et Orbi” do dia de Natal pode ser tomada como um marco também porque, nessa ocasião, o papa, como nenhum outro, assumiu e pediu para enfrentar e pôr fim a todos os conflitos, as contradições e as crises em curso no mundo inteiro: e citou o povo sírio, o Iraque, os filhos do Iêmen, a inimizade entre israelenses e palestinos, Belém, onde nasceu Jesus, o Líbano, o Oriente Médio, as populações em fuga da sua pátria, o povo afegão, o de Mianmar, atingido também na sua comunidade cristã e nos locais de culto, a Ucrânia, onde existe o risco de que “se espalhem as metástases de um conflito gangrenado”, a Etiópia, as populações da região do Sahel, os povos dos países do norte da África, afetados pelas divisões, pelo desemprego e pela disparidade econômica, os “tantos irmãos e irmãs que sofrem com os conflitos internos no Sudão e no Sudão do Sul”, os povos do continente americano, para que prevaleçam os valores da solidariedade, da reconciliação e da convivência pacífica, as vítimas da violência contra as mulheres, as crianças e os adolescentes, objetificados pelo bullying e pelos abusos, os idosos, “especialmente os mais solitários”, as famílias, os doentes, as populações mais necessitadas para que recebam as vacinas, os prisioneiros de guerra, civis e militares, dos conflitos recentes, os encarcerados por razões políticas, assim como as próximas gerações, para que, graças à nossa preocupação com a casa comum, possam viver amanhã em um ambiente respeitoso pela vida. E tudo isso o papa não só colocou com a sua oração nas “mãos de Deus”, mas também confiou às nossas mãos.
É claro que, se pensássemos em Deus como se ele tivesse que fazer tudo sozinho, a história acabaria e, na melhor das hipóteses, haveria apenas um paraíso, o “além”, mas sem o homem e a mulher e a maravilhosa possibilidade que eles têm de fazer o bem e o mal, de salvar e criar filhos ou de fazê-los morrer de abandono, de miséria e de fome, de perpetrar extermínios e genocídios ou de dar a vida pela pátria ou por todos os povos, aquilo que os homens e as mulheres podem fazer por serem feitos à imagem de Deus e da sua liberdade, além de serem uma centelha da sua razão e do seu poder.
No entanto, essa concepção de um Deus faz-tudo que os “pós-teístas” ou, segundo o velho nome, os “ateus” definiriam como “teísta” foi há muito tempo superada não só pelo cristão reformado Bonhoeffer ao preço do patíbulo, mas também pela teologia moderna mais reconhecida, além dos Concílios e das próprias Congregações vaticanas.
O Deus daquele modelo arrogante é bem diferente daquele em cujo nome o papa e o grão-imã muçulmano em Abu Dhabi, atribuindo à “sábia vontade divina” o desígnio de uma fraternidade universal e de um pluralismo também religioso, apelaram a crentes e não crentes e às suas instituições políticas, religiosas e educacionais para que se tornem responsáveis pelo bem e pela paz de todos, defendendo os direitos dos oprimidos e dos últimos por toda a parte.
Deve-se dizer, porém, que a concepção de um Deus “tapa-buracos” e transbordante de onipotência não está sequer na Bíblia, onde certamente há muitas páginas hoje inaceitáveis, mas que não devem ser lidas sem um método crítico, de modo fundamentalista e literal, o que, segundo a Comissão Teológica Internacional, seria “um suicídio do pensamento”.
No próprio livro de Jó, Deus rejeita as defesas que os zelosos amigos haviam feito dele, inspirando-se de mãos plenas no repertório bíblico: Gregório Magno, um grande antecessor do Papa Francisco, os define como “hereges”. De fato, diz o Papa Gregório em seu “Comentário moral sobre Jó” que, enquanto “na pessoa do bem-aventurado Jó estão representados os sofrimentos do Senhor e da Igreja, os seus amigos simbolizam os hereges, que, como já dissemos várias vezes, ofendem a Deus precisamente enquanto se esforçam para defendê-lo”.
De fato, aquele grande Padre da Igreja explica na mesma obra que “Jó significa ‘o Sofredor’. Ele é uma figura autêntica do Servo sofredor, isto é, d’Aquele que assumiu sobre si as nossas dores... Ele é justamente chamado de Servo, porque não desdenhou assumir a condição de escravo. E, assumindo a humildade da carne, não diminuiu a sua própria majestade, porque, assumindo aquilo que queria salvar e conservando aquilo que era, a humanidade não diminuiu a divindade, nem a divindade absorveu a humanidade”. Divindade, portanto, que não tem nada a ver com aquela divindade mundana do Deus “teísta” que a modernidade hoje rejeita, com razão.
Podemos citar como rica de esperança a visão proposta por Tomaso Montanari [disponível em italiano aqui], que, referindo-se também a Hannah Arendt, fala do Natal como da possibilidade que nos é dada de “esperar o inesperável”, porque em cada criança que nasce abre-se a esperança de que “aquela vida mudará tudo, e a injustiça não terá a vitória definitiva”; e ele também se refere à emoção de uma parturiente ao pensar que a sua filha que nasce “terá um irmão tão importante e doce como Jesus”.
Houve outras provocações estimulantes neste Natal, como a vitória do jovem Gabriel Boric, que veio liquidar a herança de Pinochet no Chile, a morte do grande bispo sul-africano Desmond Tutu e a do filósofo francês Jean Marie Muller, que nos repropõem, um, o legado da fraternidade e da integração racial, o outro, a lição gandhiana da não violência; mas é preciso receber também a mensagem expressada na coletiva de imprensa de Putin para uma melhoria nas relações internacionais, começando por aquelas com os Estados Unidos e o justo aviso para não estender a Otan aos países do Leste Europeu, levando ao limiar da Rússia a intimidação das suas armas nucleares; e também é preciso levar a sério e responder ao inesperado convite de Putin à Itália para se fazer mediadora de boas relações entre a Rússia e o Ocidente, em nome de uma amizade bem consolidada. E é verdade?
Portanto, considerando-se tudo, um Natal a ser lembrado.
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No Menino que nasce, o inesperável. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU