30 Agosto 2021
“A idealização da tecnologia, junto com demandas como a renda básica universal, o Green New Deal global e a semana de trabalho de quatro dias, aponta para um horizonte reformista da instituição do trabalho. As relações de produção permaneceriam intactas, então, mas seria um cenário otimista – progressista – para a força de trabalho”, escreve Florencia Benson, consultora em comunicação política e colaboradora em diversos meios de comunicação, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Agosto/2021. A tradução é do Cepat.
Um fantasma percorre os países centrais: a epidemia da “grande renúncia”. Nos Estados Unidos, quatro milhões de trabalhadores – trabalhadores de escritórios, comércio, gastronomia e supermercados, trabalhadores de transporte e cargas e “essenciais” (médicos, enfermeiros, professores, cuidadores) – apresentaram seu pedido de demissão em abril deste ano. No Reino Unido, há mais de um milhão de vagas de emprego que os recrutadores ou empregadores não conseguem preencher, apesar de existirem mais de dois milhões de pessoas procurando emprego.
Além disso, segundo o Índice de Tendências do Trabalho da Microsoft, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, ao menos 40% da força de trabalho juvenil está considerando abandonar seu emprego ou rever as condições para passar do modelo estável ao híbrido (entre presencial e remoto). Segundo a mesma pesquisa, os chefes declaram que durante a pandemia prosperaram significativamente, e a distância em relação aos empregados se tornou palpável, evidente, dolorosamente indisfarçável.
Os empregadores realizam tímidos esforços, até o momento, para tentar reingressar a demanda ao emprego formal: são oferecidos bônus na renda, aumento de salários e esquemas híbridos de trabalho (remoto-presencial), mas sem sucesso. Além disso, algumas empresas como LinkedIn e Twitter oferecem benefícios robustos para seus empregados, como férias com tudo pago ou bônus surpresa, a fim de segurar seus talentos. Como se chegou até aqui?
Os analistas concordam em destacar que, ao estourar a pandemia, os setores médios-baixos se viram no dilema entre pagar pessoas para o cuidado de seus filhos ou renunciar ao emprego para cuidar deles, o que financeiramente fez muito mais sentido, ao mesmo tempo em que evitaram a sua exposição e a da família ao vírus. Os trabalhadores de escritórios e outros profissionais, passando longas horas na solidão diante do computador, logo se encontraram questionando a relevância, o significado e o propósito de seus empregos. Em grande medida, foram esses bullshit jobs ou “empregos redundantes” os que foram abandonados pelos próprios empregados.
Segundo um estudo da Universidade Stanford, um dos principais fatores causais da grande desistência foram os maus-tratos no local de trabalho. Os trabalhadores e trabalhadoras tomaram a decisão de sair ou permanecer conforme a empresa os tratou (ou destratou) durante a pandemia. Aqueles que já estavam à beira da desistência foram empurrados ao ponto de ruptura.
Muitas das empresas reforçaram suas políticas restritivas e demitiram funcionários ou reduziram salários, o que fez com que aqueles não atingidos por essas medidas abdicassem de todas as formas, ao comprovar a hostilidade da empresa com a sua força de trabalho. Além disso, muitos destes empregados – já acostumados aos investimentos em criptomoedas, títulos ou ações –, utilizaram o seu dinheiro para passar o tempo de confinamento sem trabalhar. Incentivados pelo boom das redes sociais e pelo tempo disponível para consumi-las, outros tantos se lançaram no empreendedorismo, no e-commerce ou em seu passatempo como fonte de renda.
Essa “economia YOLO” (you only live once, ou só se vive uma vez), uma mistura de carpe diem com burnout digital, maus-tratos e culturas empresariais tóxicas, somada à descrença em relação às instituições políticas e econômicas para responder adequadamente à necessidade de segurança, proteção e contenção dos indivíduos, levaram ao que o Washington Post chamou de “uma revisão profunda do trabalho nos Estados Unidos” (embora o fenômeno também seja observado em outros países centrais).
Jack Kelly, jornalista da revista Forbes, foi além e identificou isso com a mudança do Zeitgeist [espírito da época]. “Houve uma mudança de humor e uma mudança no Zeitgeist. Aprendemos em primeira mão como a vida é frágil. Muitas pessoas reexaminaram suas vidas. Percebem que possuem um tempo limitado nesse mundo. Isso causou uma espécie de momento existencial. As pessoas começaram a refletir acerca do que vêm fazendo e se desejam continuar no mesmo emprego ou carreira pelos próximos 5 a 25 anos. Os resultados dessa introspecção mostram claramente que desejam fazer uma mudança”, afirma.
O trabalho não constitui apenas um eixo da economia. É também um ordenador sociopolítico, um mecanismo de controle social e uma instituição que hierarquiza, inclui e expulsa identidades e corpos. O trabalho organiza a vida familiar e comunitária, impacta nas crenças e cosmovisões e tem um papel crucial na dinâmica da disputa ideológica dentro da sociedade.
Na nova normalidade, a ética protestante parece entrar em conflito com o princípio do prazer. A restrição ao trabalho abre espaço para um inconsciente coletivo que busca o hedonismo para superar um tempo crítico e de morte. A lógica do desejo e sua satisfação está vinculada à pulsão erótica, ou seja, à continuidade da vida e da espécie: o prazer é indissociável da fecundidade, mesmo nos casos em que é mediado por técnicas artificiais.
Isso indica, justamente, a força com que a vitalidade irrompe e busca os caminhos para se materializar, com o esforço e os recursos que forem necessários. A pulsão erótica, nesse sentido, relaciona-se com a natalidade, como desejava Hannah Arendt. Cada ação humana acarreta o germe da disrupção, da introdução do inesperado, do improvável acontecendo. A natalidade, para Arendt, equivale à liberdade e esta à capacidade criativa e criadora da espécie humana.
Essa grande onda de desistências, essa Great Resignation, não é por acaso uma disrupção nas relações entre o trabalhador e patrão, a introdução de um repertório de ação social fora dos mecanismos tradicionais de protesto, mobilização e sindicalização? Por acaso, não se trata de uma inovação nas relações sociais, que foge completamente do caminho da luta e do conflito e se apropria dos instrumentos que o próprio opressor dispõe e de suas próprias regras para aliviar o jugo, melhorar suas condições de existência e compartilhar (pelas redes sociais, nem mais, nem menos) essas histórias de sucesso, ou seja, épicas, com quem queira ouvi-las?
Caso seja corroborada a tese de que estamos diante de um novo cenário de estagnação secular, conforme destaca Paula Bach, no qual o capitalismo se mostra frágil para ressurgir de sua crise (como é o seu modus operandi) e, além disso, os principais atores econômicos e políticos reconhecem essa falência – um dado não menor -, a crise da relação entre trabalho, renda e o uso do tempo é inevitável.
Por um lado, estão aqueles que argumentam que, no futuro próximo, simplesmente não haverá emprego para todos: a automação substituirá mais empregos do que serão criados (“alguns empregos não voltarão”, alertam os assessores de Joe Biden). Mas há correntes teóricas da automação que afirmam o contrário. Ou seja, que esse cenário não se verificará e que a força de trabalho humana continuará sendo essencial para que o capital possa se reproduzir.
Seja como for, a idealização da tecnologia, junto com demandas como a renda básica universal, o Green New Deal global e a semana de trabalho de quatro dias, aponta para um horizonte reformista da instituição do trabalho. As relações de produção permaneceriam intactas, então, mas seria um cenário otimista – progressista – para a força de trabalho.
Além disso, o boom dos investimentos financeiros, durante a pandemia, levou muitos trabalhadores a aumentar suas poupanças, tornando suas vidas cada vez mais confortáveis e independentes “das 9 às 5”. Para muitos, isso representa uma margem excitante e estimula a especulação com as criptomoedas e os mercados.
Em outras palavras, o divórcio entre a economia real e o mercado financeiro está em ascensão. Os comuns, os “plebeus”, encontraram agora a forma de se voltar em massa para a renda passiva, a “economia da paixão” (empreendedores, comerciantes, artesãos, profissionais independentes que trabalham como freelancers ou consultores), o trabalho autônomo ou uma mistura deles.
Assim, a gig economy ou economia de pequenos trabalhos – de empregados flexibilizados, precarizados e explorados – mostra seu outro lado na independência pessoal inerente ao sonho americano (self-made) e seu desafio aberto aos padrões corporativos abusivos, de maus-tratos avarentos. A trajetória da ambição yuppie retratada no velho filme Uma secretária de futuro, com a meritocracia e os arranha-céus como dispositivos de ascensão social, tem seu desfecho 40 anos depois no êxodo dos trabalhadores de escritório para o campo, onde redescobrem seu amor pelas galinhas, as hortas e a comunidade.
Em síntese, o mercado de trabalho das economias centrais tem duas fugas: as demissões em massa e o mercado financeiro. É nesta lenta sangria do capitalismo onde podemos localizar uma causa poderosa da estagnação secular.
Junto com a crescente desmaterialização, digitalização e abstração da economia (pensemos nas bilheterias digitais, nas criptomoedas ou nos vouchers não fungíveis), aumenta também a lacuna de acesso à inclusão financeira. Os setores médios das economias centrais já estão dando esse salto, graças à sua proximidade aos catalizadores, ressortes e explicadores do processo.
Para as economias periféricas como as da América Latina, esse cenário aprofunda o dilema em que se encontra a região atualmente, acelerado pela “nova normalidade”, dado que os investimentos diminuem e as economias centrais estão concentradas em resolver suas próprias dificuldades, absorvendo os fluxos de capital e as remessas de vacinas na mesma medida.
Observemos que enquanto Elon Musk e Richard Branson lançam a nova corrida espacial, buscando talvez reativar a economias, mas, mais importante ainda, ensaiando a missão de colonizar um novo território para exilar a espécie (ou o 1% dela), Bill Gates decide investir em ativos reais, nada mais do que a terra cultivável dos Estados Unidos. Chama a atenção que o bilionário decida investir naquilo que se anuncia que está para se extinguir. Nos três casos, de qualquer forma, o investimento permanece no circuito da economia central, sem possibilidade de saída ou inclusão qualquer.
Diante desse cenário centrípeto dos fluxos de riqueza, as periferias têm ao menos duas alternativas claras. Uma é assumir um maior endividamento, como provedores de mão de obra ultrabarata remota (outsourcing) e doméstica (imigrantes), receptores do dumping ambiental (porcos, salmões, mineração) e alimento para abutres financeiros. A outra é dar um salto análogo ao dos tigres asiáticos, investindo em educação financeira, premiando a audácia política e exercitando a disciplina coletiva.
Essas nações, sem dúvida, terão que brigar para entrar no Green New Deal global e adquirir todos os direitos sociais, ambientais e políticos do Primeiro Mundo (que, de outro modo, só serão privilégios).
O ponto para o qual talvez todos os discursos convergem é o ponto final imposto pelo trabalhador ao explorador, mas não como imaginado pelos marxistas. A opção pela saída para uma fonte de renda alternativa, benigna e soberana, quando é em massa, resulta em uma espécie de revolução silenciosa, um salto de consciência mais parecido a um despertar místico do que às milícias de Sierra Maestra.
Paradoxalmente, esse salto foi habilitado pelo próprio capital em sua busca insaciável de aumentar os lucros por meio de instrumentos derivativos e digitais. Com a desmaterialização do dinheiro, vem a desmaterialização do emprego, primeiro, em formato remoto, depois, como renda autônoma e, finalmente, passiva. A meta? Restaurar o prazer, aquilo que o capitalismo chama de “qualidade de vida”. Passar mais tempo com as pessoas que amamos, desfrutar do lazer, consumir qualidade, compartilhar experiências, desenvolver talentos e projetos criativos.
A revolução, portanto, também se desmaterializou e desterritorializou. A luta pela independência, a soberania nacional ou a democracia popular deu passagem ao combate pelo prazer, entendido como bem-estar integral do indivíduo e sua comunidade. O plot twist da espécie que volta à origem quando se sente ameaçada. Recupera seu instinto e não se desculpa, não questiona, não resiste, simplesmente obedece a um recurso ancestral implantado em sua memória antes do chip: a sobrevivência.
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Mudança do “Zeitgeist”: trabalho, renda e prazer na nova normalidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU