09 Março 2021
Articulação para contrapor-se à negligência de Bolsonaro é ótima notícia — mas precisa ir além da retórica. Primeiro teste: destravar produção, no país, de três vacinas: Coronavac, Oxford e Sputnik. E mais: fecha-se cerco sobre assessores de Pazuello.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 08-03-2021.
Com o governo federal jogando contra as quarentenas, o Fórum Nacional dos Governadores resolveu se articular para estabelecer critérios gerais de restrições que ajudem a diminuir as curvas de contágio do novo coronavírus. A notícia foi dada ontem pelo governador do Piauí, Wellington Dias (PT), que afirmou à imprensa que 22 governadores já haviam concordado com a criação de um “pacto nacional de contenção da covid-19”.
De acordo com a coluna Painel, da Folha, a ideia não é fazer um lockdown, mas estabelecer algumas proibições simples no país inteiro, como a venda de bebidas alcoólicas a partir de um determinado horário e o de impedimento de eventos com aglomeração. Continuará cabendo a cada governador decretar quarentena em face do colapso do seu sistema de saúde.
O período de consulta aos governadores acaba hoje, e a ideia é que as medidas entrem em vigor em caráter experimental até o próximo domingo (14). Até ontem à noite, cinco estados não haviam se manifestado sobre a proposta: Mato Grosso do Sul, Tocantins, Acre, Rondônia e Roraima. Os dois últimos são governados pelo PSL.
O Conass, conselho que reúne os secretários estaduais de saúde, ajudou na elaboração da proposta. No final de semana passado, a entidade publicou uma carta aberta ao Ministério da Saúde, pedindo que a pasta instituísse um toque de recolher nacional, mas recebeu do general Eduardo Pazuello a resposta de que Jair Bolsonaro não concordaria com nada que tivesse a ver com restrições à circulação.
Um dos objetivos do pacto dos governadores também é fazer um contraponto no plano da comunicação, indo contra as orientações genocidas do presidente da República e enviando uma mensagem unificada à população de que o momento é crítico e há necessidade de que a circulação seja reduzida para diminuir a ocupação nos hospitais. No plano político, o Valor observa que a ação também servirá para diluir o ônus político dos gestores locais que decretam medidas restritivas.
“Não adianta o meu estado fazer e outro não fazer. Isso é o que chamei de ‘enxugar gelo’, ou seja, a transmissibilidade tem que ser cortada nacionalmente. É claro que o ideal é como fazem outros países, o poder central estar fazendo isso”, disse Wellington Dias em entrevista à GloboNews.
Na mesma entrevista, o governador do Piauí indicou que os governadores vão renovar a pressão para que a Anvisa libere a Sputnik V: “É importante a gente acelerar aqui com a Anvisa. A gente não pode ter uma operação de guerra, e a Anvisa com exigências que são próprias de um [período de] normalidade. A Sputnik tem vacina, pode oferecer. Tem a União Química, que produz no Brasil. É o Brasil com seus laboratórios, com cientistas brasileiros – Fiocruz, Butantan e União Química – que vai produzir a maior quantidade, especialmente nessa fase de maior disputa mundial”.
O objetivo dos governadores é sair do patamar atual de 8,2 milhões de vacinados (o equivalente a 3,8% da população) para 50 milhões em abril. Lembramos que o número se refere apenas aos brasileiros que receberam a primeira dose da vacina. Contando quem já recebeu duas doses, o percentual cai para 1,2% (2,6 milhões de pessoas).
Além da Sputnik V e das vacinas produzidas pela Fiocruz e Butatan, os governadores querem que o Brasil receba prioridade no envio de imunizantes da Covax Facility. Argumentam que a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) vem apontando a gravidade da situação no país.
O Brasil teve 10,4 mil mortes por covid-19 na última semana, com uma média diária de quase 1,5 mil (média que, aliás, bateu seu nono recorde seguido). O próprio Ministério da Saúde estima que em breve pode haver mais de três mil óbitos diários. Não se sabe de onde saiu essa previsão, mas, se as restrições decretadas por estados e municípios não forem adiante, o número é bem verossímil.
Entre as dez nações com mais mortes pela doença, o Brasil foi o que teve a maior alta de óbitos nos últimos 14 dias, segundo uma análise do Estadão. Oito desses países registraram quedas. A Índia teve alta de 8,9% nas mortes, mas não chegou nem perto do crescimento brasileiro: 30,5%.
Hoje, há mais de 1,3 mil pacientes na fila de espera por uma UTI em seis estados: Bahia, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rondônia e Acre. Em Santa Catarina, onde pelo menos 16 pessoas morreram na semana passada à espera de uma vaga, os doentes começaram a ser transferidos para o Espírito Santo.
O Rio Grande do Sul é o estado mais preocupante, com casos e óbitos nas alturas e uma fila de quase 300 pessoas. O Hospital das Clínicas de Porto Alegre não tem mais respiradores pulmonares suficientes e está improvisando, utilizando ventiladores com capacidade menor do que a exigida pelos pacientes.
E várias capitais do Nordeste ultrapassaram 90% de ocupação nas UTIs. A Folha descreve o cenário: “Contêiner para armazenamento de corpos no estacionamento de um hospital, novas covas abertas nos cemitérios, pacientes graves na fila por uma vaga de UTI e espera de até seis horas dentro de uma ambulância”. Tem gente morrendo nas ambulâncias e na porta das UPAs, relata o médico Pedro Julião, que atua no Samu de Salvador.
Apesar de o Rio Grande do Norte ter mais de 80 pessoas na fila, os prefeitos da capital e de algumas cidades do interior se revoltaram contra as medidas restritivas decretadas pela governadora Fátima Bezerra (PT). Decidiram deixar bares e restaurantes abertos até 21h, além de shoppings.
No Amazonas houve melhora: em duas semanas, a redução nas mortes foi de 54%. Mas, claro, isso é porque antes o caos era absoluto. A situação hoje ainda é muito grave, e o estado tem 85% dos leitos de UTI ocupados. Mesmo assim, o governador Wilson Lima (PSL) avança nas flexibilizações. Na sexta, liberou a reabertura de shoppings, academias e até salões de beleza.
O colunista do UOL Jamil Chade, que vive na Suíça, narra uma série de situações em que estrangeiros demonstram insegurança diante da presença de brasileiros. “De tanto usar a nacionalidade chinesa para deliberadamente designar a doença, Jair Bolsonaro e sua milícia digital passaram a ter de engolir de seu próprio veneno ao ver o nome do Brasil, agora, qualificar um vírus ainda mais perigoso”, escreve, referindo-se ao pânico de autoridades ao redor do mundo em relação à P.1. Conclui:
“A ideia de que somos pária no mundo não é verdade. Isso já está ultrapassado. Hoje, somos uma das ameaças e o novo epicentro da crise global. (…) A ameaça que alimenta a desconfiança vem de quem está no poder. Um dos alertas feitos por cientistas nas reuniões internacionais se refere ao ‘apagão’ de dados no Brasil sobre a circulação da variante encontrada em Manaus. Para outros, o que existe no país é o equivalente a um grupo de bombeiros cegos enviados a combater um incêndio“.
Enquanto isso, o Ministério da Saúde reduziu, mais uma vez, sua previsão de doses disponíveis para março. Esse número já foi de 46 milhões, passou na última quinta-feira para 38 milhões e, no sábado, chegou a 30 milhões. A nova baixa se deve à exclusão de um imunizante que não tem autorização da Anvisa e sequer chegou ao território brasileiro: a Covaxin, produzida pelo laboratório indiano Bharat Biotech. Restarão ao Brasil neste mês doses do Butantan (23,3 milhões), da Fiocruz (3,8 milhões) e do consórcio Covax (2,9 milhões).
O rebaixamento das expectativas da campanha de vacinação deverá ser discutido hoje em uma reunião no Rio de Janeiro que envolve Wellington Dias, o general Pazuello e a Fiocruz.
Já dissemos algumas vezes que deixar o vírus circular livremente pode resultar no aparecimento de variantes mais perigosas – e que deve ter sido exatamente isso que aconteceu em Manaus. Uma reportagem da BBC chama a atenção para o fato de que o mesmo pode se passar caso se vacine a população a conta-gotas, como tem acontecido.
“Se você é vacinado numa segunda-feira, você não está imediatamente protegido. Leva algumas semanas para os anticorpos da vacina aparecerem e você ainda pode se infectar pelo vírus original ou pela variante P.1. Se esses anticorpos da vacina surgem enquanto a infecção está ocorrendo e replicando no seu corpo, o vírus pode se replicar de maneira a evadir o anticorpo que está sendo produzido. As mutações mais benéficas ao vírus sobrevivem e se replicam, num movimento de seleção natural”, explica Julian Tang, da Universidade de Leicester, no Reino Unido. Com isso, a pessoa vacina que foi infectada pode passar essa nova versão do vírus adiante.
Como os dados até agora sugerem que a P.1 tem chances razoáveis de escapar dos anticorpos, a situação aqui no Brasil se complica ainda mais, porque talvez ela possa ‘furar’ a vacina com maior facilidade.
Quanto à prevalência dessa cepa nos estados, um estudo da rede Dasa de laboratórios em parceria com cientistas da USP mostra que a P.1 já domina a Grande São Paulo. Foram analisadas 91 amostras de pacientes infectados, e em 77% delas a nova cepa foi identificada.
Uma notícia boa, porém ainda incompleta: a Reuters vazou a informação de que a vacina de Oxford/AstraZeneca produz resposta adequada contra a variante P.1. Depois o Estadão confirmou com pesquisadores brasileiros envolvidos nos testes, liderados pela farmacêutica e pela universidade britânica. Segundo as fontes, o estudo em andamento indica que não será preciso adaptar esse imunizante para combater a nova cepa. Os resultados devem sair oficialmente ainda em março.
No sábado, uma reportagem da Folha retoma o erro do Ministério da Saúde ao rejeitar o acordo oferecido pela Pfizer em agosto do ano passado. Antes de jogar os holofotes nas cláusulas contratuais, a pasta justificava a decisão observando que a farmacêutica não teria capacidade de enviar muitas doses ao país. Acontece que se o acordo fosse levado a cabo (é sempre bom lembrar que a empresa não vem cumprindo todas as promessas feitas aos países que assinaram contratos com ela), o Brasil já teria recebido três milhões de vacinas. Pouco? Pois é o equivalente a 20% das doses já distribuídas pelo ministério até agora.
A matéria revela que à medida que outros países foram fechando com a Pfizer, o total e os prazos oferecidos pela farmacêutica ao Brasil foram piorando. Se a primeira oferta previa o recebimento de 500 mil doses em dezembro passado, a previsão agora nem inclui quantidade, mas um incerto “a partir de maio”. A assinatura do contrato com a Pfizer só depende da sanção da MP 1.026 pelo presidente, o que deve acontecer “nos próximos dias”, segundo os repórteres.
A situação dos militares aboletados no Ministério da Saúde piorou sensivelmente desde ontem, com a revelação de que há mais uma prova material da negligência da pasta na crise de falta de oxigênio de Manaus. No dia 11 de janeiro, a empresa White Martins pediu o apoio logístico da pasta para deslocar o insumo de vários locais até Manaus. O apelo aconteceu em uma reunião convocada pelo próprio Eduardo Pazuello, e foi formalizado em um e-mail enviado horas depois.
A mensagem é direcionada ao coronel Nivaldo Alves de Moura Filho, que tem cargo na Secretaria Executiva da pasta, e lista quatro itens com necessidade imediata de apoio logístico. Detalhe: dois desses pedidos já estavam sendo tratados com outro militar ocupante do ministério, o tenente-coronel Alex Lial Marinho que é coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos.
“O item 1 do e-mail eram 350 cilindros de oxigênio gasoso, oriundos de Campinas (SP) e Belo Horizonte. A carga tinha um peso de 24,5 toneladas e deveria ser transportada por via aérea. O item 2 eram 28 tanques de oxigênio líquido, que deveriam percorrer a rota Guarulhos (SP)–Manaus, em cinco voos distintos. O peso total da carga era de 53,5 toneladas. Duas remessas já estavam de prontidão naquele momento. Outras três remessas estavam prontas para serem transportadas nos dias 12 e 13. O e-mail ainda registra o pedido por ajuda para levar sete isotanques a Belém (PA) e para deslocar 11 carretas da capital do Pará a Manaus”, descreve o repórter Vinicius Sassine, que teve acesso ao e-mail.
O ministério teria dado conta apenas do item 1 antes da falta de oxigênio que estouraria três dias após o e-mail, em 14 de janeiro. O caso é investigado em um inquérito da Polícia Federal aberto pelo STF a pedido da Procuradoria-Geral da República.
Parece não ser coincidência o vazamento da semana passada de que o Ministério da Saúde não age diante do recrudescimento da pandemia “porque Bolsonaro não deixa”. De acordo com a coluna Painel, Eduardo Pazuello tem dito a governadores e secretários estaduais que precisa de ajuda – e tem participado ou dado força a uma articulação para passar o comando do combate à pandemia do Executivo para um grupo com parlamentares e gestores.
“Depois de quase dez meses obedecendo todas as diretrizes do presidente, Pazuello passou a indicar a gestores nos últimos dias que não consegue tomar as medidas que lhe são cobradas por não ter respaldo no Palácio do Planalto. (…) Para pessoas que falaram com o general nos últimos dias, a impressão é a de que a sinalização dele agora é reflexo da preocupação com a investigação de que é alvo em meio ao crescente número de mortes, que não para de bater recordes”, escreve Camila Mattoso.
O embrião do tal grupo surgiu na reunião que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), teve com governadores na semana passada. Dentre outras coisas, o grupo se concentraria na fabricação e compra de vacinas, leitos de UTI e equipamentos para hospitais. Mas é importante notar que uma das iniciativas discutidas – medidas de restrição para frear a transmissão do vírus –, está sendo tocado pelo próprio Fórum Nacional dos Governadores, como você leu no início da newsletter, de modo que o esforço pode ser menos o de instituir um espaço formal e mais o de fortalecer uma articulação política paralela ao Planalto. O Supremo também teria sido convidado para dar força à iniciativa. “A costura tem sido feita nos bastidores e com cuidado para não provocar a ira do presidente”, diz a colunista da Folha.
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Pandemia: os governadores evitarão o pior? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU