03 Março 2021
Além de mais transmissível, a P.1 dribla os anticorpos produzidos por quem já foi infectado pela doença. E pode estar presente em todo o país. E mais: depois de sabotar vacinação, Bolsonaro e Guedes tramam entregá-la a mega-empresas.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 02-03-2021.
Desde que a capital do Amazonas entrou novamente colapso, vários especialistas vinham levantando possíveis causas para a catástrofe: a nova cepa possivelmente era mais contagiosa e capaz de gerar mais reinfecções. Agora, pela primeira vez, um estudo traz números sobre isso – e são preocupantes. Os pesquisadores calcularam que a P.1 pode ser de 1,4 a 2,2 vezes mais transmissível, e ainda que consegue driblar o sistema imune em algo entre 25% e 61% das pessoas previamente contaminadas pelo SARS-CoV-2. Esse seria, portanto, o percentual de indivíduos propensos a se reinfectarem com a nova variante. Os cientistas mostraram ainda que a nova cepa levou apenas sete semanas para se tornar dominante em Manaus.
O trabalho, conduzido pelo CADDE (Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), ainda não foi revisado por pares. Os autores ressaltam que os número são aproximados, porque foram calculados por meio de um modelo matemático que cruzou dados genômicos e de mortalidade. “De qualquer modo, a mensagem que os dados passam é: mesmo quem já teve covid-19 precisa continuar se precavendo. A nova cepa é mais transmissível e pode infectar até mesmo quem já tem anticorpos contra o novo coronavírus. Foi isso que aconteceu em Manaus. A maior parte da população já tinha imunidade e mesmo assim houve uma grande epidemia”, diz, no site da Fapesp, a professora da USP Ester Sabino, que coordena o grupo.
Outro estudo conduzido por eles, ainda em 2020, calculou que cerca de 70% dos manauaras já tinham sido infectados no ano passado e que a cidade poderia ter atingido a imunidade coletiva – o que recebeu grandes críticas, principalmente após a nova escalada nos casos e mortes.
Apesar de indicarem que a P.1 escapa da imunidade natural (adquirida por infecções prévias), os novos dados não trazem nenhuma indicação sobre problemas com vacinas. Porém, quanto a isso, outro trabalho (também ainda sem revisão de pares) traz notícias potencialmente ruins: ele sugere que essa variante pode escapar dos anticorpos produzidos pela CoronaVac. No Estadão, a repórter Fabiana Cambricoli alerta que se trata de uma pesquisa ainda preliminar, feita com apenas oito pacientes, e que portanto são necessários estudos maiores para confirmar os achados.
O que os cientistas fizeram foi pegar o plasma dessas oito pessoas, que tinham tomado a segunda dose da vacina cinco meses antes, e testar a capacidade dos seus anticorpos de neutralizarem os vírus. Eles verificaram que o nível e anticorpos necessários para deter a P.1 foi muito pequeno, abaixo do limite de detecção no exame. E ainda que, mesmo para a linhagem B (a mais comum no Brasil, ao menos antes de a P.1 surgir), o nível deles não foi muito alto.
Mas os autores lembram que o sistema imune não usa só os anticorpos para combater as infecções; de acordo com eles, o fato de os estudos clínicos terem mostrado alta proteção da CoronaVac contra as formas graves da covid-19 é um bom indicador de que outras células de defesa, como os linfócitos T, continuam agindo mesmo diante da redução dos anticorpos.
Mas a verdade é que ninguém sabe ainda o quanto as vacinas disponíveis protegem contra essa cepa. Ontem o médico Paulo Menezes, coordenador do Centro de Contingência da covid-19 do governo do estado de São Paulo, disse que o Instituto Butantan deve liberar até o fim desta semana dados sobre a eficácia da CoronaVac diante da P.1, mas não informou se se trata de testes de eficácia, em seres humanos, ou de ensaios em laboratório.
Em tempo: o Reino Unido identificou seis casos de infecção pela P.1 na Escócia e na Inglaterra, e as autoridades começaram uma busca frenética por uma das pessoas. É que um “viajante desconhecido” fez o teste ao entrar na Inglaterra mas não preencheu o formulário com seus dados pessoais. Agora, há pressa para chegar até ele, rastrear seus passos e impedir o espalhamento.
Os secretários estaduais de saúde pressionam para que o governo federal coordene a adoção de medidas padronizadas para o enfrentamento da crise sanitária e coloque na rua um plano de comunicação que conscientize a população da gravidade do momento. Dentre as ações, eles defendem lockdown em todos os estados que ultrapassarem o índice de 85% de ocupação dos leitos de atendimento dedicados à covid-19. Para os locais onde a situação não chegou a esse nível, a carta prega pela adoção de outra medida coordenada: o toque de recolher nacional, que funcionaria das 20h às 6h, inclusive nos finais de semana.
Segundo a colunista Bela Megale, o documento teve apoio unânime de todos os responsáveis pelas pastas de saúde – incluindo os aliados de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro –, embora seja assinada apenas por Carlos Lula, presidente do conselho de secretários estaduais, o Conass. O texto fala com todas as letras que o país enfrenta o pior momento da pandemia e, ainda assim, continua faltando “uma condução nacional unificada e coerente” para a crise.
Questionado pelo jornal O Globo, o Ministério da Saúde se portou como avestruz, repetindo fórmulas vagas. A pasta comandada por Eduardo Pazuello respondeu que recomenda o uso de máscaras (embora o ministro não as use) e que as pessoas evitem aglomerações (das quais o general participa). “Cabe reforçar, ainda, que estados e municípios têm autonomia para definir a organização local de acordo com a necessidade e situação epidemiológica de cada região”, diz o ministério na nota.
As medidas defendidas pelo Conass colocam numa saia justa também os governadores ao serem muitíssimo mais rigorosas do que os anúncios que vêm sendo feitos por eles nas últimas semanas. A proibição de eventos presenciais, inclusive os religiosos, está na lista. Pois ontem mesmo o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), assinou um decreto em que considera cultos e missas como atividades essenciais.
Na Bahia, atos religiosos também estão a salvo do decreto de restrições do governador Ruy Costa (PT). As regras vão sendo prorrogadas a conta gotas: começaram a valer na sexta, foram prorrogadas domingo por apenas 48 horas… Apesar de determinarem fechamento de comércio, dão a dimensão do medo de desagradar parcelas da população que tem sido a regra geral diante do colapso no sistema de saúde. “Não é fácil. É duro receber mensagens de pessoas que perguntam assim: ‘E o meu negócio? E a minha loja?’. O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando, ou a vida humana?“, questionou o governador emocionado durante uma entrevista concedida ontem.
Considerando apenas os leitos de UTI, o lockdown defendido pelo Conass deveria ser decretado já na metade do Brasil. Segundo um levantamento do jornal O Globo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Goiás, Distrito Federal, Rondônia, Roraima, Ceará e Pernambuco já estão na casa dos 90%. Há outros nove estados que oscilam entre uma ocupação de 80% e 89%.
Por falar em lockdown, chamou atenção uma nota do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal contra a medida. Contrariando todas as evidências científicas, a entidade afirma que o lockdown se mostrou “ineficaz” e dá como exemplo desta tese o Amazonas, onde nunca ocorreu lockdown de verdade. O conselho também aproveita para tirar de contexto a frase do oficial da OMS para a covid-19, David Nabarro que disse em outubro que a medida não deveria ser a primeira no cardápio de opções para o controle dos contágios (deveria haver testagem, isolamento, rastreamento de contatos…). Na época, bolsonaristas como a deputada federal Major Fabiana (PSL) aproveitaram para propagar que a OMS era contrária ao lockdown. Meses depois, o CRM-DF resolveu fazer o mesmo.
Outra carta foi assunto na segunda-feira, desta vez assinada por 19 governadores contrariados com a nova tática de Jair Bolsonaro para terceirizar a responsabilidade pela crise sanitária. No domingo, o presidente e sua Secretaria de Comunicação começaram a divulgar o total de repasses que cada estado recebeu do governo federal em 2020. Propagandearam que o dinheiro foi enviado para “saúde e outros”, dando a entender que tinha a ver com a pandemia quando, na verdade, o montante se refere a todas as obrigações da União com os estados, principalmente repasses constitucionais, pagamento de royalties, etc.
Na conta do Planalto, reproduzida amplamente pela rede bolsonarista, o governo federal enviou R$ 837,4 bilhões para os estados – dinheiro mais do que suficiente para lidar com a crise… Na carta, os governadores apontam que só em impostos federais pagos pelos cidadãos e empresas de todos os estados, o governo arrecadou R$ 1,479 trilhão. “Onde foram parar os outros R$ 642 bilhões?”, perguntam. A manobra presidencial incomodou aliados como Ronaldo Caiado (Goiás), Ratinho Júnior (Paraná) e Claudio Castro (Rio), que subscreveram a carta.
Para escapar à avalanche de críticas por parte dos governadores, Jair Bolsonaro quer acelerar a vacinação no país. Mas, segundo uma apuração do Valor, pretende fazê-lo por caminhos tortos. A reportagem traz informações de uma longa reunião feita no domingo, quando o presidente conversou com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e com os ministros Paulo Guedes (Economia), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Braga Netto (Casa Civil).
Bolsonaro quer a rápida aprovação pelos parlamentares do projeto que facilita a compra de imunizantes pelo setor privado, e sua ideia é que as empresas fiquem responsáveis pela aquisição das vacinas da Pfizer, assumindo as cláusulas “leoninas”. Só que a possibilidade aventada na tal reunião é a de o governo federal entrar com os recursos, e o consórcio de empresas apenas intermediar o negócio. Lembramos que, neste momento, a proposta do Congresso é que as empresas só precisem doar metade das doses compradas ao SUS, desde que os grupos prioritários tenham sido imunizados no país.
No mesmo encontro, Pazuello prometeu que haverá mais de 450 milhões de doses de vacinas no Brasil até o fim de 2021. Mas é aquela história: o que o general diz quase nunca se cumpre. Como lembra a Folha, em janeiro ele previu que a esta altura seríamos o país com o maior número de vacinas já aplicadas. Mas somos o sexto. Pela taxa que leva em conta o número de habitantes, é pior ainda, claro: ficamos apenas na 47ª posição. É verdade que, no geral, os países mais bem colocados nesse ranking são muito pequenos, mas mesmo assim.
O principal problema é que a produção em larga escala ainda não conseguiu começar, por conta dos atrasos na chegada das matérias-primas. O Instituto Butantan entregou pouco mais de 13 milhões de doses. A Fiocruz só rotulou quatro milhões de doses prontas, e ainda não começou a fornecer doses envasadas aqui. O presidente de Bio-Manguinhos, unidade da Fiocruz responsável pela produção, já prevê atrasos no segundo semestre.
Ontem, João Doria anunciou que pretende recorrer ao Supremo para fazer com que o Ministério da Saúde envie agulhas e seringas para a vacinação contra a covid-19 em SP. “Desde janeiro cobramos o Ministério da Saúde sobre isso, que faz parte do Plano Nacional de Imunização. O ministério não providenciou seringas e agulhas para os estados, que estão usando suas reservas nas campanhas de vacinação. É obrigação do governo federal”, criticou.
No sábado, Bahia, Maranhão e São Paulo obtiveram uma vitória importante em outra seara, a dos leitos de UTI. A ministra Rosa Weber determinou que o Ministério da Saúde precisa voltar a custear as UTIs de atendimento à covid-19 nesses estados. É bem possível que a decisão, que ainda precisa ser confirmada pelo plenário mas tem aplicação imediata, incentive outros governos a pleitearem o mesmo. Ontem, Doria falou que só nos meses de janeiro e fevereiro, SP desembolsou R$ 245 milhões por mês com as UTIs dedicadas à covid. A intenção do estado é cobrar o ressarcimento do governo federal.
Jair Bolsonaro sancionou ontem a MP que autoriza o governo a aderir à Covax Facility, e que trazia vários artigos para agilizar a aprovação de vacinas. A sanção veio com vetos.
A pedido do diretor-presidente da Anvisa, o contra-almirante Antônio Barra Torres, foi retirado o prazo de cinco dias para a agência aprovar vacinas autorizadas em outros países. Além disso, o presidente vetou o trecho que previa a possibilidade de estados e municípios adotarem as medidas necessárias para a imunização, em caso de omissão ou coordenação inadequada da União. Os vetos ainda vão passar por análise do Congresso, que pode ou não derrubá-los.
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Covid: a gravidade da cepa encontrada no Amazonas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU