08 Fevereiro 2021
Especialistas discutem a possibilidade de o novo coronavírus tornar-se endêmico no país e analisam o que isso significaria para o sistema de saúde brasileiro.
A reportagem é de André Antunes, publicado por portal EPSJV/Fiocruz, 02-02-2021.
No momento em que está reportagem é escrita, a pandemia de Covid-19 não dá sinais de que deve terminar tão cedo. No Brasil, a chamada segunda onda de casos do novo coronavírus - que muitos especialistas já alertavam que poderia acontecer caso a flexibilização das medidas de isolamento social não fossem realizadas de maneira segura – dá mostras de que vem com força. O número de novos casos voltou a subir, sendo que em várias capitais do país a taxa de ocupação dos leitos de UTI tem chegado a patamares alarmantes, principalmente na rede pública, sendo que em alguns estados já se fala em retomar o chamado lockdown para conter o avanço da doença. No meio disso tudo há a corrida pela vacina, com alguns países, como o Reino Unido, dando início a campanhas em massa para vacinar idosos e profissionais de saúde com um dos imunizantes sendo produzidos contra a Covid-19. No Brasil, mesmo após o início da vacinação em muitos estados, ainda há muitas dúvidas sobre a eficácia das vacinas e a capacidade de imunizar boa parte da população em um curto prazo.
Ou seja, ao que tudo indica, os brasileiros terão que conviver com a Covid-19 por algum tempo ainda. E alguns especialistas não descartam a possibilidade de que esse tempo pode se estender para muito além do fim da pandemia, e até mesmo depois que uma vacina eficaz começar a ser distribuída. Esse alerta já havia sido feito lá atrás, em maio, pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS), que sinalizou que o fim da pandemia não significaria necessariamente a erradicação da Covid-19, que poderia passar a se comportar como mais uma entre as várias enfermidades com as quais os seres humanos tiveram que aprender a conviver em seu cotidiano. Essa nova realidade se enquadra no que a área de epidemiologia chama de uma doença endêmica.
Para responder a essa pergunta, cabe retornar aos conceitos de endemia e epidemia, que, segundo o epidemiologista Guilherme Werneck, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), remontam à Grécia Antiga, nos escritos daquele que é considerado um dos pais da Medicina, Hipócrates. “Em sua obra, ele já distinguia aquilo que seriam as doenças endêmicas, que estavam sempre presentes na população, das epidêmicas, que poderiam se tornar muito frequentes, mas que depois desapareciam”, explica Guilherme. E completa: “Na origem havia essa visão mais qualitativa dessa diferenciação: endemia era a doença que acontecia com frequência entre determinadas populações, permanecia estável ao longo do tempo. Já as epidemias eram aquelas cujo número de casos tinha maior variação ao longo do tempo, ou seja, elas desapareciam e reapareciam em determinados momentos”.
Segundo ele, essa concepção mais “qualitativa” predominou até o século 19. “Depois, com o crescimento da influência da quantificação, da estatística, passou-se a pensar essa diferenciação a partir de uma visão mais quantitativa, de que a endemia seria o comportamento usual, esperado de uma doença em uma população e a epidemia seria uma modificação significativa, ou seja, um aumento além do esperado dos casos de uma doença que habitualmente acontece em um local. Para isso você precisa ter uma definição do que é esperado e o que supera o esperado”, afirma Guilherme. Ele acrescenta que uma mesma doença pode ser endêmica sem deixar de apresentar ciclos epidêmicos ao longo do tempo. “É o caso da dengue no Brasil, onde todos os anos acontecem casos esperados, mas que se cruzam com períodos epidêmicos também”, afirma.
Para estabelecer os limites do que é uma endemia e o que é uma epidemia é preciso analisar a série histórica dos dados relativos à incidência de determinada doença em um dado território. “A ideia é pegar o histórico recente daquela doença naquele território, digamos, nos últimos sete anos, por exemplo. E aí você vê mais ou menos a média do número de casos em cada mês, e define mais ou menos aquilo que você esperaria com uma certa variação que a gente diria que é esperada. Claro que você tem que retirar dessa série histórica aqueles momentos que foram epidêmicos, porque não são representativos do que seria esperado”, explica Guilherme.
Assim, diz Maria Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), é possível estabelecer o que ela chama de limite endêmico. “Esse limite varia dependendo da série histórica, cada doença tem o seu. Por exemplo, todos os anos a gente espera um determinado número de casos de meningite meningocócica. Quando ultrapassa esse limite do que é esperado, ela ultrapassou o limite endêmico e está se tornando uma epidemia”, diz.
São muitas as doenças consideradas endêmicas no Brasil ou em parte do território nacional. Guilherme explica que elas costumam ser divididas em grupos. Um deles é o das doenças que ele chama de tropicais negligenciadas, que reúne enfermidades como a dengue, a leishmaniose, a esquistossomose, a malária e a hanseníase, entre outras. “A hanseníase, popularmente conhecida como lepra, talvez seja a doença endêmica mais típica. É muito raro você ver uma epidemia de hanseníase, mas ela está sempre presente em níveis constantes”, aponta o vice-presidente da Abrasco. Na verdade, segundo Maria Glória Teixeira, a doença pode ser considerada hiperendêmica atualmente no Brasil, que só perde para a Índia em número de casos anuais. Na última década foram registrados cerca de 30 mil novos casos por ano no Brasil. “Hiperendemia são aquelas doenças cujo número de casos é estável ano após ano, mas em níveis elevados, como é também a leishmaniose cutânea atualmente na região amazônica, por exemplo. E na história do Brasil já tivemos doenças hiperendêmicas que matavam muito, como a doença de Chagas e a malária por exemplo. Hoje já não se considera que elas são hiperendêmicas, porque caiu bastante a sua incidência.
Há pouco tempo atrás, nas décadas de 1970 e 1980 tínhamos uma transmissão contínua de doença de Chagas em várias partes do país que era um horror. Hoje a transmissão ativa foi eliminada do país praticamente. Ainda tem, mas muito pouco”, diz Maria Glória, e complementa: “A malária a gente já não chama de hiperendêmica porque se no passado tínhamos em torno de 600 mil casos por ano, hoje temos 120, 150 mil casos. Mas ela continua endêmica”, diz a professora da UFBA. Além destas, há o grupo das doenças imunopreveníveis, que são aquelas que podem ser evitadas com a vacinação. É o caso do tétano, da difteria e da meningite, entre outras. Além dessas, há ainda a AIDS, que junto com a malária e a tuberculose, é considerada uma doença endêmica em nível mundial. “Nós temos tuberculose em em todo o mundo praticamente, com crescimento em alguns países, inclusive desenvolvidos, principalmente quando ela se associa com a AIDS. Porque como a AIDS diminui a resistência dos indivíduos, a tuberculose se aproveita, digamos assim. Essa é hoje uma grande preocupação da Organização Mundial da Saúde”, diz Maria Glória.
Como destaca Guilherme Werneck, os conceitos de endemia e de epidemia são centrais para o que ele chama do “braço aplicado da epidemiologia”, a vigilância epidemiológica, atividade desenvolvida pelo Sistema Único de Saúde que, sob a pandemia, acabou ganhando centralidade sem precedentes. “A incorporação desses conceitos se reflete na própria organização dos programas dentro do Ministério da Saúde, onde há coordenações, diretorias, que são responsáveis por determinadas doenças e que vão monitorando e construindo o que a gente chama de indicadores de endemicidade. Então, existe um grupo de trabalho técnico do Ministério só de leishmaniose, que produz manuais, faz acompanhamento, treinamento, organiza o sistema. E assim também para a malária, para a esquistossomose, para as arboviroses, para as doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS e a hepatite, e também para as doenças imunopreveníveis”, enumera.
'Se por acaso a incidência da doença cair muito em 2021, a gente até pode começar a pensar que ela está se tornando endêmica. Mas não é isso que a gente está observando. Ao que tudo indica, vamos ter uma segunda onda epidêmica' - Maria Glória Teixeira, professora do ISC/UFBA
Mas e no caso de uma doença nova, como a Covid-19, em que não há dados dos anos anteriores que permitam a elaboração de uma série histórica e a definição do que é ou não esperado? Faz sentido falar em endemia? “No caso do novo coronavírus, quando se fala que ela vai ficar endêmica quer dizer que, possivelmente, ela vai continuar circulando entre as pessoas, mas em níveis bem mais baixos do que no início ou quando todo mundo estava suscetível à doença”, destaca a pesquisadora do Cidacs. E completa: “Agora, a Covid-19 vai ficar endêmica? É uma questão que eu não posso afirmar com certeza. Possivelmente, mas pode ser que não”, aponta Maria Glória, lembrando da pandemia causada por um outro coronavírus no início da década de 2000. “Entre 2002 e 2003 tivemos a SARS, ou síndrome respiratória aguda grave, causada por um vírus que se chamava Sars-Cov, que hoje a gente chama Sars-Cov1, para diferenciar da Covid-19, que é causada pelo vírus Sars-Cov2. A SARS desapareceu, não tem mais casos de síndrome respiratória aguda grave causada pelo coronavírus Sars-Cov1”, resgata.
Um dos possíveis motivos para que ela não tenha se tornado endêmica, segundo a pesquisadora, é que o seu poder de transmissão, representado na epidemiologia pelo termo R0 (R zero), que indica quão contagiosa é uma doença infecciosa, era baixo. No caso do Sars-Cov 1, esse número girava em torno de 0,5, o que significa que cada indivíduo infectado transmite a doença para menos do que um indivíduo. “O Sars-Cov1 causava uma doença muito grave, em geral as pessoas eram hospitalizadas, isoladas, e quando passava para alguém, era dentro do hospital. Ela não tinha capacidade de circular nas comunidades como a Covid-19 tem”, ressalta Maria Glória.
No caso do novo coronavírus, segundo ela, o R0 chega a 3, o que indica que cada indivíduo infectado transmite a doença para em média três pessoas. “Por ser um agente novo, muita coisa nós não sabemos ainda. Pode ser que esse poder de transmissão caia, se mantenha ou até mesmo aumente. Mas por ter um R0 elevado, ele tem potencial de se tornar endêmico”, alerta a pesquisadora. E ressalta: “Se por acaso a incidência da doença cair muito em 2021, a gente até pode começar a pensar que ela está se tornando endêmica. Mas não é isso que a gente está observando. Ao que tudo indica, vamos ter uma segunda onda epidêmica”.
Guilherme Werneck concorda. “Ainda estamos em uma fase em que podemos ter novas epidemias, novas ondas. É um momento difícil para a gente pensar na perspectiva de ela permanecer endêmica, mas eu diria que esse é um risco bastante razoável. Eu só acho que isso é mais para o longo prazo. A gente ainda vai ter que conviver com a Covid-19 nos próximos anos, até para poder ver realmente se ela vai se tornar endêmica”, diz o vice-presidente da Abrasco.
Para Maria Glória, a existência de uma vacina eficaz contra a Covid-19 e a capacidade do governo de fazê-la chegar a uma parcela expressiva da população em um curto prazo são fatores determinantes para avaliar o risco de o novo coronavírus se tornar endêmico. “Se a vacina for boa e a gente vacinar muita gente, nós podemos, teoricamente, eliminar a circulação do vírus. Não é que a gente vá erradicá-lo, mas a gente pode eliminar a circulação dele aqui”. Foi o que aconteceu, segundo ela, com o tétano neonatal. “Era uma doença endêmica no Brasil, que matava 80% das crianças que pegavam tétano logo após o nascimento. Hoje é uma doença que está praticamente eliminada, por conta da vacinação das gestantes e crianças recém-nascidas”, aponta Maria Glória.
Guilherme Werneck lembra ainda o exemplo da poliomielite, ou paralisia infantil, doença que deixou de ser endêmica no país muito por conta de uma bem-sucedida campanha de vacinação, por meio da qual o Brasil recebeu da OMS em 1994 o certificado de eliminação da doença, que permanece endêmica em alguns países. “A pólio não é mais uma doença endêmica no Brasil, mas é claro que é preciso continuar monitorando, vacinando, fazendo a vigilância, para que ela não seja reintroduzida”, destaca. O alerta não é trivial: em 2019 o Brasil perdeu o certificado da OMS de eliminação do sarampo obtido em 2016, depois de registrar surtos da doença em 2018, com mais de 10 mil casos, principalmente nos estados do Amazonas e Roraima. Entre dezembro de 2019 e maio de 2020 foram registrados outros 3.629 casos da doença, para a qual existe uma vacina que integra o calendário nacional de vacinação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) .
“Como nós tivemos problemas de cobertura vacinal nos últimos anos, o sarampo voltou a circular. Mas aí a gente não chama de endemia, a chama de surto, porque começou a circular bem acima do que esperava. O que a gente esperava? Nenhum caso, porque ele estava eliminado. Se acontecem dez casos, já é um surto”, diz a pesquisadora. Como a doença ressurgiu no país em 2018, ainda não é possível traçar uma série histórica para determinar que ela se tornou novamente endêmica no país. Mas o risco existe. “O sarampo foi eliminado de grande parte das Américas e também da Europa, mas permanece sendo endêmico em vários países. E está voltando por conta queda da cobertura vacinal, que não chega nem a ser baixa. É uma cobertura até elevada, mas o sarampo é um vírus que tem um R0 que varia de 12 a 18, ele é extremamente transmissível”, afirma.
Como o sistema de saúde lida com uma doença endêmica e que adaptações seriam necessárias caso a Covid-19 adquira esse padrão nos próximos anos? Para projetar como isso se daria, Guilherme Werneck usa o exemplo do procedimento adotado nos casos de meningite meningocócica, doença que segundo ele tem no Sistema Único de Saúde (SUS) um sistema de vigilância consolidado. “Eu trabalhei durante muitos anos no Centro de Saúde Belizário Penna, em Campo Grande [bairro do Rio de Janeiro]. Lá tinha uma equipe de vigilância epidemiológica que recebia as notificações de casos de meningite meningocócia. Nesse caso a equipe fazia uma visita domiciliar, ia ao hospital, ia à escola em que a criança estudava, identificava os contatos. No caso da meningite meningocócica existe um tratamento preventivo, então quem tinha tido contato recebia uma dose de rifamicina, que é um antibiótico para prevenir que se espalhe. É uma tentativa de quebrar a transmissão”, explica o professor do IMS/UERJ, complementando que no caso, por exemplo, do sarampo, o procedimento é parecido, com a diferença de que nesse caso entra em cena a vacinação daqueles que tiveram contato com a pessoa infectada, bem como seu isolamento. “Se o novo coronavírus se tornar endêmico, ele vai ter que entrar nesse sistema de vigilância e monitoramento cotidiano dos casos suspeitos para isolamento e identificação dos contactantes, que a gente fala que tem que ser feito, inclusive, agora, na pandemia”, destaca Guilherme, e completa: “Hoje uma criança chega ao hospital com meningite meningocócica, todo mundo sabe qual o tratamento, quais os sinais de que tem que colocar respirador, levar para a UTI. Existem protocolos.
No caso do novo coronavírus, esses protocolos estão sendo atualizados, porque a gente conhece pouca coisa, mas se ela é endêmica, o sistema vai ter que estar preparado para lidar com isso, vai ter que ter respirador, vai ter que ter leito de UTI, se tiver vacina tem que vacinar, ela tem que entrar no Programa Nacional de Imunização e passar a ser administrada todo ano, etc.”. Segundo Maria Glória, um complicador no caso da Covid-19 é que ainda não foi desenvolvido um medicamento eficaz para o seu tratamento. “A gripe é muito ruim, principalmente para os mais idosos, porque pode se tornar uma pneumonia, que geralmente é causada por infecções bacterianas que nós temos como tratar com antibiótico; para alguns tipos de influenza nós temos antiviral. Agora, no caso da Covid-19, a gente não tem nenhum tratamento a não ser o que a gente chama de manejo clínico, de suporte, com respirador, etc., mas não tem uma terapêutica específica para matar o vírus”, diz a pesquisadora do Cidacs, que projeta também a necessidade de ampliação dos leitos caso a doença venha a se tornar endêmica. “Vamos precisar ter um número de leitos hospitalares e de UTI um pouco mais elevado do que tínhamos antes da pandemia”, destaca.
Já Sylvia Lemos, médica infectologista e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), chama atenção para a necessidade de incorporar ao cotidiano algumas práticas adotadas em meio à pandemia do novo coronavírus que podem contribuir em um possível cenário em que a doença se torne endêmica. “Eu acho que teremos que nos habituar com o uso de máscaras em algumas situações pelos próximos anos. Mas ela sozinha não adianta, ela não pode ser tocada com as mãos sujas, então precisa haver um estímulo para que as pessoas passem a higienizar as mãos com água e sabão com mais frequência, assim como a utilizar o álcool-gel. Por outro lado, as pessoas precisam ter mais cuidado onde tocam, a gente sabe que o vírus pode ficar no plástico, na madeira, no papelão. E outra coisa é o distanciamento físico, que é muito importante, mas é difícil, principalmente em comunidades periféricas”, pontua Sylvia.
Ela lembra ainda a importância dos protocolos de biossegurança, que para ela se mantêm pertinentes mesmo após o fim da pandemia. “Esse foi o grande boom no mundo inteiro a partir da pandemia. Quando se começou a flexibilizar as medidas de isolamento social, os estabelecimentos todos que reabriram tiveram que apresentar protocolos de segurança. Isso envolve não só uso de máscara, mas uso de EPIs [equipamentos de proteção individual], estabelecimento de fluxo de entrada e saída, revisão de aparelhos de ar-condicionado e da circulação do ar... Mas esses protocolos precisam ser seguidos, fiscalizados. Acho que são mudanças positivas, que precisam permanecer”, assinala Sylvia.
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Teremos que aprender a conviver com a covid-19? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU