23 Janeiro 2021
'Se é verdade que os principais focos de poder sobre os processos eleitorais no Brasil permanecem nas mãos dos privilegiados, também é verdade que este sistema – até Bolsonaro – vinha sendo “depurado” em termos político-eleitorais, até que sofresse um brutal impacto da “santa aliança” do grande capital. Esta, sacralizada com a mídia oligopólica, foi ampliada com adesão das bases fisiológicas que participaram de todos os governos no Brasil, pós-ditadura militar e durante aquele período. Este artigo quer propor uma outra visão sobre a responsabilidade da instituição militar – não sobre os militares singularmente tomados – na matança que o Governo Federal proporciona com a sua política sanitária genocida', escreve Tarso Genro, ex-ministro da justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, publicado por Sul21, 21-01-2021.
Na tarde cinzenta de quarta-feira assisto apreensivo pela Globo News a posse do presidente Joe Biden. Temo que o matem. Quatro presidentes americanos foram assassinados quando exerciam as suas funções e nove deles sofreram atentados. Lincoln foi morto em 14 de abril de 1865 com um tiro traiçoeiro, na nuca, por John Both, um sulista, racista, segregacionista, que encerrou a vida do presidente que liderou a Guerra contra a escravidão, no país que nascia para a democracia. Com Trump, os EUA iniciaram sua decadência política interna sem eliminar as raízes miseráveis das chagas culturais da escravidão. A história americana não é rósea, mas violenta externa e internamente e os atacantes do Capitólio a representam de maneira medular.
Gosto de Biden porque ele me lembra mais os soldados russos e americanos libertando os campos de concentração da fera nazista e menos os EEUU imperial, que sempre transformou seus países aliados em territórios “livres” de forças que acreditassem em igualdade, independência e soberania. E isso é muito e é o bastante nos dias em que sofremos o pesadelo bolsonariano. Os indivíduos não fazem a História, mas eles podem, em certas circunstâncias, interferir de forma substancial nos modos de resolução dos grandes problemas que ela nos coloca.
Os moços e moças da Globo, autenticamente emocionados com a posse de Biden – e isso é bom para o Brasil – falam da democracia americana sem se dar conta (ou saber), que a grande política de Trump foi tentar transpor – para a ordem jurídica interna – as formas jurídicas externas através das quais o Estado americano no seu direito internacional clandestino sempre tratou os territórios e os povos que pretendiam controlar, a ferro e fogo. Que o digam Allende, as crianças incendiadas pelo Napalm no Vietnã, os torturados no Brasil por “professores” de interrogatório dos sinistros “Serviços” dos EUA, e que o diga Che Guevara, morto na Bolívia na luta contra as corjas de generais traficantes que controlavam aquele povo.
A indignação que toma conta da maioria (fragmentada) da sociedade brasileira e os efeitos devastadores, na vida política e na economia do país, de um governo de “capangagem”, corrupção e aparelhamento explícito do Estado, não pode embaçar nossa visão sobre a paisagem que se abre dentro da crise. José Murilo de Carvalho escreveu que na República Velha, “além de ser inútil, votar era muito perigoso. Desde o Império as eleições na capital eram marcadas pela presença dos capoeiras, contratados pelos candidatos para garantir os resultados” e (…) “as eleições eram decididas por bandos que atuavam em determinados pontos da cidade e alugavam seus serviços aos políticos.”
“Os bandos mais sofisticados que atuam” em todos (ou determinados) ponto do globo – no tempo atual – têm seus crimes perdoados ou estes prescrevem nos modorrentos escaninhos do “devido processo legal”. Steve Bannon, um dos criminosos mais importantes dos tempos pós-modernos, cuja tarefa cotidiana é acabar com a democracia liberal e fazer, portanto, o trabalho sujo na sua decadência, acaba de ser perdoado por Trump, juntamente com um bando de delinquentes de extrema direita, que quase levaram de arrasto as instituições da democracia política americana.
Não se pode dizer sobre o voto, nos dias de hoje, o mesmo que escrevia José Murilo: não é inútil votar, nem é irrelevante mobilizar-se nas ruas, nas redes; nem é inútil denunciar no espaço global os desmandos dos canalhas; nem é impossível comunicar-se de forma coletiva, furando as “bolhas” de controle dos fascistas; nem é impossível resistir nos campo da cultura e da ciência, contornando ou batendo de frente com as trevas, a ignorância e a mentira deslavada. Nem é irrelevante ter vozes sensatas na grande mídia, que se ergam valentes, seja por consciência ou por interesses no mercado.
Se é verdade que os principais focos de poder sobre os processos eleitorais no Brasil permanecem nas mãos dos privilegiados, também é verdade que este sistema – até Bolsonaro – vinha sendo “depurado” em termos político-eleitorais, até que sofresse um brutal impacto da “santa aliança” do grande capital. Esta, sacralizada com a mídia oligopólica, foi ampliada com adesão das bases fisiológicas que participaram de todos os governos no Brasil, pós-ditadura militar e durante aquele período. Este artigo quer propor uma outra visão sobre a responsabilidade da instituição militar – não sobre os militares singularmente tomados – na matança que o Governo Federal proporciona com a sua política sanitária genocida.
A visão de José Murilo de Carvalho acima referida, serve mais para designar o que Bolsonaro quer restaurar (que devemos bloquear com urgência), do que aquilo que já está montado nas instâncias de poder do país. O Rio de Janeiro adianta um pouco o que o Presidente quer para o país e explica a sua verdadeira obsessão em controlar o território, por dentro das estruturas policiais e por fora, com sua base miliciana em estado puro. O Brasil de amanhã não pode ser o que hoje é o Rio, massacrado pelas religiões do dinheiro e por uma boa parte da sua “elite”, que se confunde com o próprio crime organizado. Penso que os militares do país – na sua ampla maioria – não querem que o país seja – no futuro – o que é o Rio de Janeiro hoje. Este é o meu ponto de partida.
O golpe contra Dilma e a Constituição Federal pode ter tido a simpatia de uma parte das forças militares do país, mas não foi promovido por nenhuma delas. É compreensível que o cenário de barbárie suscite a rejeição de todo o “sistema de poder” montado após as eleições que levaram Bolsonaro ao poder, mas não é correto – nem tática nem estrategicamente – colocar todas as instituições no mesmo saco. E não é correto, igualmente, outorgar responsabilidades “concentradas” sobre os militares, na mortandade em curso, porque – se é verdade que no complexo jogo de xadrez do poder político todos os gatos podem ser pardos – a identidade guiada por esta aparência imediata pode levar a equívocos graves.
No caso, esta atribuição aos militares do Exército pode contribuir para dar maior opacidade à política, amortecendo as responsabilidades principais do que ocorre aqui, que não foi provocado pela instituição que, no fundamental, respeitou os protocolos mínimos republicanos da nação. No caso de fixar-se esta culpa, ficaria mal resolvida uma questão de fundo: por que um presidente, precisamente por não trair a sua sórdida mensagem eleitoral depois da eleição, conseguiu sobreviver como governante de uma nação, sem qualquer respeito à moralidade republicana e se fez o projeto das suas classes dominantes, emprestando a sua face ao corpo político neoliberal do país?
Com isso quero dizer que é errado, do ponto de vista político, e injusto, do ponto de vista histórico, identificar o Exército Brasileiro com a chacina sanitária. É errado, porque ajuda a extrema direita militar a se reorganizar na ativa e é errado porque Bolsonaro não representa nem de longe a moralidade média das FFAA – nem sua vocação política que é positivista conservadora, mas não fascista -; e é errado, porque reduz a responsabilidade objetiva e subjetiva dos militares da reserva, dos políticos do entorno de Bolsonaro, das religiões do dinheiro que lhe dão sustentação e do consórcio midiático-empresarial que o elegeu presidente e ainda lhe mantém no poder. Este é consórcio responsável pela crise política em curso e pela mortandade em escancarar o seu terror.
É errado, finalmente, porque é impossível construir República e Democracia no Brasil, sem que a maioria das Forças Armadas seja conquistada para um projeto de nação, cuja soberania estará depositada – em grande parte – nas mãos destas instituições, por dentro do Estado Democrático de Direito, tenha ele características de um Estado Social, seja ele um Estado de Direito meramente liberal-democrático. Estas considerações estão em polo totalmente oposto aos “puxões de orelhas”, que alguns militares da ativa e da reserva querem dar em jornalistas que denunciam os seus desmandos e a total falta de integridade deste governo, atacando diretamente a liberdade de crítica e de opinião.
Trump se foi ameaçando voltar. Se no nosso país generoso, do samba, do riso e do futebol – das lutas históricas pela democracia e em defesa dos direitos – foi possível Bolsonaro encarnar uma parte do espírito do nosso povo, não é absurdo Trump voltar. Mas sua expulsão da Casa Branca, em nome da vida e da lei, também indica que é possível tirar os néscios do governo, mesmo que eles aparentem ser fortes, para arquivá-los no lixo da nossa História.
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O culpado da mortandade não é o Exército. É Bolsonaro e seus políticos liberais e fascistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU