Entrevista especial com Rubens Ricupero, Leonardo Boff, Roberto Romano, Edgard de Assis Carvalho, Luiz Gonzaga Belluzzo, Agbonkhianmeghe E. Orobator e Faustino Teixeira
Francisco, o papa, parafraseia Francisco, o de Assis, no título de sua mais recente encíclica, Fratelli Tutti, em que recupera a fraternidade como valor central das relações não somente entre os humanos, mas entre os humanos, todas as demais espécies e o planeta. Nesse sentido o documento é, ao mesmo tempo, o testemunho de um mundo ferido e uma lúcida proposição de caminhos para enfrentarmos os dilemas contemporâneos a partir de uma visão que tem o amor e o cuidado aos mais vulneráveis como pano de fundo. Esta entrevista, realizada por e-mail, reúne uma série de análises sobre o documento publicado no domingo.
“Sentia-se a falta de uma nova grande síntese que refletisse sobre as profundas transformações que ocorreram no contexto social do mundo desde os fins do século XX: o desaparecimento da União Soviética e do comunismo real, a globalização, a revolução digital, o aquecimento global, a crise financeira de 2008, a pandemia”, pondera Rubens Ricupero. “Num mundo órfão de lideranças à altura dos desafios, onde os chefes dos mais poderosos países da terra encarnam o que há de pior na natureza humana, Francisco confirma em definitivo que representa hoje a consciência moral e intelectual da humanidade”, complementa.
Leonardo Boff salienta que “as saídas são fundadas em valores derivados da irmandade universal, do amor e da amizade, da solidariedade, começando sempre a partir de baixo, articulando o local com o universal e dando ênfase à região, o que em ecologia se chama de biorregionalismo”.
Para Roberto Romano, a posição tomada pelo Papa Francisco é pelo bem da coletividade e, em certo sentido, contrária à postura geopolítica das últimas décadas do século passado. “Ele tudo faz e tudo diz para que os interesses imperiais não se sobreponham ao Bem do gênero humano. Assim, Francisco retoma com brilho profético o papel desempenhado por João XXIII e Paulo VI no século XX, bem longe da postura assumida por João Paulo II, o alinhamento a uma geopolítica que favoreceu apenas a parte mais poderosa e rica do planeta”.
De acordo com Edgard de Assis Carvalho, dentre os pontos principais da encíclica está o “apelo para a urgência de se pôr em prática uma política da civilização planetária multilateralista, voltada ao bem comum, à solidariedade, ao convivialismo, ao reconhecimento da igualdade e da fraternidade. O discurso também deixa claro que os estados-nações precisam se voltar para uma governança global capaz de imunizar o planeta contra os ‘vírus da desigualdade’”.
Já o economista Luiz Gonzaga Belluzzo destaca que "a questão central da Fratelli Tutti é a afirmação do amor fraterno em sua dimensão universal. Não há fraternidade se esse sentimento e sua prática estiverem confinados às fronteiras nacionais, às discriminações de religião, raça, gênero e classe social".
O jesuíta Agbonkhianmeghe Orobator diz que "Papa Francisco promove a fraternidade e a amizade social em nosso contexto atual para nos lembrar que somos uma família comum e com um propósito comum; daí o imperativo de construirmos uma comunidade de solidariedade e pertença".
Faustino Teitexeira descreve a encíclica como um documento que "convoca-nos a olhar para o alto, pedindo forças para enfrentar com coragem esses tempos sombrios, de escuridão, solidão e dor. Como no evangelho, há uma cristalina opção pelos mais pobres".
Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Diplomata de carreira desde 1961, exerceu, dentre outras, as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984/1985), assessor especial do presidente da República José Sarney (1985/1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda no governo Itamar Franco. Foi também embaixador do Brasil na Itália e secretário-geral da UNCTAD, órgão da ONU, deixando o cargo em setembro de 2004, quando se aposentou como diplomata. Entre suas obras, destacamos A diplomacia na construção do Brasil. 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017).
Leonardo Boff é doutor em Teologia pela Universidade de Munique. Foi professor de teologia sistemática e ecumênica com os Franciscanos em Petrópolis e, depois, professor de ética, filosofia da religião e de ecologia filosófica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É assessor de movimentos populares, reconhecido pelo seu trabalho com a Teologia da Libertação e nas áreas de filosofia, ética, espiritualidade e ecologia. Publicou diversos livros acerca desses temas, dos quais destacamos Nossa ressurreição na morte (Petrópolis: Vozes, 2012), Jesus Cristo libertador (Petrópolis: Vozes, 2011), Cristianismo: o mínimo do mínimo (Petrópolis: Vozes, 2011), Imitação de Cristo de Tomás de Kempis e Seguimento de Jesus (Livro V) (Petrópolis: Vozes, 2016) e Ecologia - Grito da terra, grito dos pobres. Dignidade e direitos da mãe terra (Petrópolis: Vozes, 2015) e Reflexões de um velho teólogo e pensador (Petrópolis: Vozes, 2018).
Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Cursou doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França. Escreveu, entre outros livros, Igreja contra Estado. Crítica ao populismo católico (São Paulo: Kairós, 1979), Conservadorismo romântico (São Paulo: Ed. UNESP, 1997), Moral e Ciência. A monstruosidade no século XVIII (São Paulo: SENAC, 2002), O desafio do Islã e outros desafios (São Paulo: Perspectiva, 2004) e Os nomes do ódio (São Paulo: Perspectiva, 2009).
Edgard de Assis Carvalho, coordenador do núcleo de estudos da complexidade, correpresentante brasileiro da CIUEM, cátedra itinerante UNESCO Edgar Morin, vice-presidente do Instituto de estudos da complexidade, coeditor da revista Espiral. Obras mais recentes: Conexões da Vida. Uma antropologia da experiência (Natal: UNA, 2017), Espiral de ideias: textos de antropologia fundamental (São Paulo: Livraria da Física, 2018). Tradução mais recente: Edgar Morin. Fraternidade. Para resistir à crueldade do mundo (São Paulo: Palas Athena, 2019).
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social - Ilpes/Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas - Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas - Facamp, onde é professor. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp-Editora Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da Riqueza - Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outras obras.
Agbonkhianmeghe E. Orobator é presidente da Conferência dos Superiores Maiores Jesuítas de África e Madagáscar - Jesam, com sede em Nairobi, no Quênia. Nascido na Nigéria, é doutor em Teologia e Estudos Religiosos pela Universidade de Leeds, na Inglaterra. Atuou como superior provincial da Província da África Oriental entre 2009 e 2014. Também foi diretor da Hekima University College – Escola Jesuíta de Teologia e do Instituto de Estudos de Paz e Relações Internacionais, em Nairobi, Quênia. É autor de Theology Brewed in an African Pot (Orbis, 2008) e Religion and Faith in Africa: Confessions of an Animist (Orbis Books, 2018). Ainda editou Reconciliation, Justice, and Peace: The Second African Synod (Orbis, 2011) e, junto com Linda Hogan, também editou Feminist Catholic Theological Ethics: Conversations in the World Church (Orbis, 2014).
Faustino Teixeira é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. É doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É autor de Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu (São Paulo: Terceira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mística e Literatura Moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2014). Também organizou, entre outros, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e As orações da humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018), em parceria com Volney Berkenbrock.
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Para discutir o novo documento papal, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove a palestra virtual Encíclica Fratelli Tutti: uma leitura francisclariana, com Prof. Dr. Ildo Perondi - PUCPR e Prof. Dr. Luiz Carlos Susin - PUCRS, na quinta-feira, 08-10-2020.
Na sexta-feira, 09-10-2020, o cardeal português José Tolentino de Mendonça ministrará a conferência virtual Pandemia, um evento global. Repensar o futuro da casa comum a partir da Encíclica Fratelli Tutti.
IHU On-Line – Qual é a mensagem central da Encíclica Fratelli Tutti e que reflexões ela propõe para cristãos e não cristãos? Quais são os três pontos que destacaria do texto?
Rubens Ricupero – Terceira encíclica do Papa Francisco, segunda inteiramente dele (a primeira, Lumen fidei, resultou de colaboração com Bento XVI), a nova encíclica traz como subtítulo Sobre a Fraternidade e a Amizade Social. Tanto no título, extraído de um texto de São Francisco de Assis como o da Laudato si’, quanto no subtítulo, já se revela o tema central do documento, a fraternidade humana.
Rubens Ricupero na Unisinos (Foto: Rodrigo W. Blum | Unisinos)
Há tempos se reclamava uma nova grande encíclica que atualizasse o pensamento social da Igreja tal como expresso nos quatro documentos mais importantes do passado recente: as encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), de João XXIII, a constituição apostólica do concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (1965) e a encíclica Populorum Progressio (1967), de Paulo VI. Houve desde então outros documentos do gênero, como a encíclica Centesimus Annus (1991), de João Paulo II, e as encíclicas Deus Caritas Est (2005) e Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI. Sentia-se, no entanto, a falta de uma nova grande síntese que refletisse sobre as profundas transformações que ocorreram no contexto social do mundo desde os fins do século XX: o desaparecimento da União Soviética e do comunismo real, a globalização, a revolução digital, o aquecimento global, a crise financeira de 2008, a pandemia.
É esse vazio que o Papa Francisco se propôs a preencher, primeiramente com a Laudato si’ (2015), “sobre o cuidado da casa comum”, quer dizer, sobre o planeta, o meio físico e natural, a ecologia integral. Seu complemento natural é agora a Fratelli Tutti, sobre os problemas da sociedade e dos seres humanos. O próprio autor assinala essa ligação inseparável entre as duas encíclicas ao escrever num bilhete manuscrito enviado a um cardeal: “Compartilho contigo a encíclica Fratelli Tutti, cujo título é a mensagem de Jesus pela qual nos anima a nos reconhecermos todos como irmãos e irmãs e assim viver na casa comum que o Pai nos confiou”.
Chama a atenção no documento sua forma simples, despojada, linguagem direta, sem o ranço eclesiástico das encíclicas do passado. Quem sonharia que um papa tivesse um dia a audácia de citar numa encíclica oficial o nosso Vinicius de Moraes, com um verso do Samba da Bênção, “a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”, citação retirada do disco Um encontro no Au Bon Gourmet? (parágrafo 215, nota 204, p. 89).
Da mesma forma que a Laudato si’, a nova encíclica é dirigida não apenas aos católicos ou cristãos, mas a todas as pessoas de boa vontade, independente da crença religiosa ou da ausência de crença. Seu espírito é aberto, ecumênico. Logo no início, Francisco confessa que, assim como havia se inspirado no Patriarca ortodoxo Bartolomeu para o documento anterior, neste caso se tinha sentido estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem se encontrara em Abu Dhabi em 2019. Afirma que a encíclica recolhe e desenvolve muitos dos temas da declaração conjunta firmada naquele encontro. No final, declara que foi motivado especialmente por São Francisco de Assis e outros irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros.
Ao evocar a visita de São Francisco ao Sultão Malik-al-Kamil do Egito, o Papa salienta que o Santo adotava a atitude que recomendava aos discípulos: “quando forem para o meio de sarracenos [...] não promovam disputas nem controvérsias, mas se submetam a toda humana criatura por Deus”. Comenta que São Francisco evitava toda forma de agressão e contenda, não fazia guerra dialética, não impunha doutrinas, mas comunicava o amor de Deus. Esses parágrafos introdutórios fornecem uma das principais chaves para a compreensão da encíclica. Em contraste com os documentos de outrora, empenhados em condenar erros e heresias ou em definir dogmas, o atual busca dar testemunho do amor de Cristo, sem polêmicas, sem condenações, sem o ânimo belicoso do passado ou afirmações dogmáticas.
Francisco rejeita a ênfase quase exclusiva de inúmeros documentos religiosos nas questões de moral individual, os temas que alimentam a guerra cultural dos fundamentalistas religiosos: questões sexuais, aborto, limitação de nascimentos, divórcio. Não que seja indiferente a isso, pois já tratou largamente do assunto em outros pronunciamentos, em especial na exortação Amoris Laetitia (2016). Em sua encíclica atual, o Papa reequilibra o debate, fazendo com que a atenção prioritária volte a se dirigir aos temas vitais de moral social, coletiva, que têm a ver com a injustiça, a marginalização, a exclusão e outros males da sociedade. Obra de teologia política e, ao mesmo tempo, reflexão profunda sobre as ideias políticas clássicas da liberdade, igualdade e, sobretudo, a mais difícil de todas em termos de conteúdo concreto: a fraternidade.
Tratando-se de panorama vastíssimo que abrange praticamente todos os desenvolvimentos que transformaram a vida social dos últimos 30 anos, seria empobrecer o documento apontar apenas três ou quatro pontos principais. Mas, se quisermos ir ao coração da mensagem que Francisco quis transmitir, podemos encontrar sua síntese no § 6º:
“As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas deter-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos.” Descreve essa encíclica social como “humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, diante de formas diversas e atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não fique só em palavras”.
Leonardo Boff – A encíclica que o Papa Francisco chama de social tem como eixo central a irmandade universal e a amizade social, ambas em uma perspectiva globalizadora. Ela é uma convocação universal para gestar esse novo sonho. Eu destacaria três pontos relevantes: o nº 6, que diz: “Entrego esta encíclica social como uma humilde contribuição à reflexão para que, face às diversas e atuais formas de eliminar ou de ignorar a outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não fique só nas palavras”. O segundo é um conjunto de textos onde detalha o amor social: nº 183. O terceiro é um conjunto de afirmações que falam da ternura, nº 194: “Também na política há lugar para amar com ternura os mais pequenos, os mais débeis, os mais pobres devem enternecer-nos, pois têm o direito de encher-nos a alma e o coração”; nº 196: “que é a ternura? É o amor que se faz próximo e concreto; é um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos e às mãos”. Vale dizer que o nº 223 sobre a “amabilidade”, que significa o princípio gentileza, completa a concepção da ternura.
Leonardo Boff (Foto: UFJF)
Roberto Romano – Permitam que, para tentar responder, eu evoque o bispo Dupanloup. Em 1865, ao responder aos ataques dos que defendiam a plena abolição do fato religioso na vida pública, ele assim se pronunciou: “Vocês nos falam de progresso, de liberalismo e de civilização como se fôssemos bárbaros e não soubéssemos uma só palavra de tais coisas; mas aqueles vocábulos sublimes desnaturados por vocês, fomos nós que lhes ensinamos, lhes demos o verdadeiro sentido e, melhor ainda, a realidade sincera. Cada uma daquelas palavras teve, apesar de vocês, e ainda conserva e conservará para sempre um sentido perfeitamente cristão; no dia em que tal sentido perecer também perecerá todo progresso real, todo liberalismo sincero, toda civilização verdadeira”. Dupanloup defendia a encíclica Quanta cura, de Pio IX.
No século vinte ressoa no planeta inteiro a palavra de um papa, às vésperas do terror nuclear que poderia reduzir o planeta às cinzas. Em outro polo da tradição eclesiástica, mas sempre mantendo a linha central do ensino católico, João XXIII publica o monumento de civilização intitulado Mãe e Mestra, proclamando direitos humanos e abrindo a Igreja para um mundo alternativo ao lucro assassino e selvagem. Se o escândalo com Pio IX foi gerado pelos vários liberalismos capitalistas, agora o escândalo foi aberto nas veias das finanças que dominam o mundo. A encíclica de Paulo VI, Populorum progressio, foi debochada pelo The Wall Street Journal como “marxismo requentado”.
Roberto Romano (Foto: Ricardo Machado | IHU)
O Papa Francisco continua o embate de seus antecessores mais lúcidos. Na Laudato Si’ e na Fratelli Tutti ele clarifica pontos essenciais das doutrinas cristãs sobre o convívio humano. Não temos nenhum metro para aquilatar a situação do mundo desde Pio IX até os nossos dias. Está pior? Melhor? Sempre ruim? É tarefa de adivinhação que beira o embuste dizer que há uma lógica de ferro na História, rumo ao melhor e ao pior. A Guerra Fria que levou o mundo à beira do Nada foi sucedida pelo triunfo das forças “democráticas” do chamado Ocidente, com o fim da URSS. A partir daí o capitalismo aumentou seu potencial letífero com as vestes do neoliberalismo, cujo maior feito é aumentar com desmesura a miséria humana, a destruição do planeta, o retorno do fascismo.
O primeiro ponto que chama a atenção na Fratelli Tutti é a inacreditável lucidez de Francisco. A seguinte frase marca uma fenomenologia rigorosa da situação planetária e resume toda uma filosofia cristã do tempo: “A história dá mostras de estar voltando para trás. São acesos conflitos anacrônicos que julgávamos superados, ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Em vários países uma ideia da unidade do povo e da nação, penetrada por diversas ideologias, gera novas formas de egoísmo e perda de sentido social sob as máscaras de uma suposta defesa de interesses nacionais”. A História, retoma Francisco as lições da Patrística sobre o tempo, não é uma linha contínua em ascensão ou queda. Ela segue um roteiro ondulatório que pode jogar a Humanidade em situações novas que repetem pesadelos antigos. A descrição feita pelo Papa capta o vagido dos fascismos vários que ecoam em todo o mapa mundi.
O segundo ponto que traz um sinal de alerta é a caracterização de nossas vidas como tremenda prisão em solitárias. É como se o pontífice traduzisse em termos pastorais a lição de Kafka: somos entes solitários e presos à nossa solidão. “A sociedade cada vez mais globalizada nos faz mais próximos, mas não mais fraternos”. Assim, a política “se torna cada vez mais frágil face aos poderes econômicos transnacionais que aplicam o ‘divide e reinarás’”. Com o domínio do capitalismo transnacional e o fracasso da política perdem sentido vocábulos como “democracia, liberdade, justiça, unidade”. A profecia de Dupanloup se cumpre por inteiro. Solidão das mulheres, avanço das máfias que espalham o medo, solidão dos imigrantes. Solidão dos povos pobres sob o tacão dos ricos. Os primeiros têm sua autoestima rebaixada de propósito pelos segundos, tendo em vista sórdidos interesses econômicos e geopolíticos.
O terceiro ponto, o que vai mais fundo na diagnose de nosso tempo, encontra-se no uso magistral da Parábola do Bom Samaritano. O padre Vieira tem excelentes considerações sobre a narrativa. Ele vai direto ao conceito de propriedade e a interpretação polissêmica que tal princípio acarreta. O mesmo realiza Francisco, companheiro da Ordem que acolheu Vieira e que hoje cumpre um papel de sentinela avançada dos direitos humanos e dos valores cristãos. Os itens 118 e seguintes da encíclica são cruciais no rompimento com a ideologia privatista da propriedade: “O mundo existe para todos”.
Muitos católicos verão em tais passagens do Sumo Pontífice a pior heresia. Ele nega a sacralidade da apropriação privatista da natureza e dos bens culturais. Compreende-se o ódio votado a Francisco por hordas que se afirmam cristãs e católicas mas aceitam o comando de adversários do cristianismo como Bannon e asseclas. E tais católicos se instalam inclusive na mais alta hierarquia eclesiástica.
Com propósito firme, o santo Padre capta na parábola o seu caráter imperativo, nunca opcional. Francisco retroage aos primeiros versículos da Bíblia para recordar Caim e Abel. Ele cita a frase mais relevante das Escrituras quando vista pelo prisma humano, egoísta e assassino. “Acaso sou guardião de meu irmão?” Se não somos responsáveis pelos nossos irmãos, logo aparece um “guardião de todos” que se arroga o direito divino de vida e morte sobre indivíduos e coletivos.
Não por acaso o católico trânsfuga mais notável do século vinte jurídico, Carl Schmitt, dará à sua apologia da ditadura e do poder discricionário do presidente da Alemanha o título polêmico de “O Guardião da Constituição”. Com base em tal poder o Líder nazista e seus cúmplices planejaram e definiram o Holocausto.
Com a ruína da política segue o enfraquecimento do Estado nacional (item 172 da encíclica) devido à insaciável exploração econômica. Daí, pensa Francisco, o urgente reforço de instituições internacionais capazes de impor regras à selva planetária. O Papa, aqui, retoma um tema exaustivamente examinado desde Erasmo de Rotterdam, Grotius, Padre Saint-Pierre e Immanuel Kant: a instauração de um poder mundial capaz de atenuar os malefícios das guerras por interesses definidos na raison d’État. Ele se coloca nitidamente em polo oposto ao de Hobbes, Fichte e Hegel. Para aqueles pensadores “não existe juiz do mundo”, sendo a guerra de todos contra todos impossível de ser erradicada em plano universal.
A posição do Papa é clara: ele tudo faz e tudo diz para que os interesses imperiais não se sobreponham ao Bem do gênero humano. Assim, Francisco retoma com brilho profético o papel desempenhado por João XXIII e Paulo VI no século XX, bem longe da postura assumida por João Paulo II, o alinhamento a uma geopolítica que favoreceu apenas a parte mais poderosa e rica do planeta.
Termino com uma surpresa que certamente será compartilhada por vários analistas. Não é novidade a citação, em encíclicas, de autores leigos. Mas na atual é mais do que estratégica a lembrança do filósofo Gabriel Marcel: “só me comunico realmente comigo na medida em que me comunico com o outro” (Du refus à l’invocation). É notável a citação do autor de Les hommes contre l’Humain (Os homens contra o humano). Marcel integrou o número dos que advertiram contra a “agonia do homem” no desastre das culturas modernas e contemporâneas. Não se trata, pois, de um adereço erudito a mais no documento. A pequena frase de Marcel representa a espinha dorsal da encíclica. A fraternidade só existe na comunicação com o outro, numa troca na qual estou envolvido, empenhado. Comunicar sem que o próprio Ego se comprometa não é ser fraterno: é fazer obra de propaganda, proselitismo, terror contra os demais.
Surpresa maior encontramos na lembrança do Samba da Bênção, muito conhecido dos brasileiros. Eu diria que o ritmo e a melodia da encíclica seguem os versos de Vinicius de Moraes. O Papa cita uma frase do poeta “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Todas as passagens que o Pontífice nos presenteia têm o sabor e o perfume daquela poesia: “é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz no coração”. Tal é o alvo perseguido pelas mais elevadas mentes da Humanidade. Basta recordar o Hino à Alegria ideado por Schiller e musicado por Beethoven.
Mas o cristianismo de Francisco não é um código de Poliana, como aliás nenhum cristianismo autêntico: ele capta a tristeza que serve de contraponto à euforia da vida. “Mas para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”. Assim é a Fratelli Tutti: o Santo Padre nos mostra a esperança no ser humano, marca de todos os seus pronunciamentos e atos, sobretudo em seu discurso célebre e recente na ONU. Mas não se exime da missão dolorosa que consiste mostrar o quanto nos afogamos num oceano sombrio de indiferença, desprezo pelos nossos irmãos e, consequentemente, por nós mesmos e, como base de toda a desgraça, o desprezo por Deus e pela natureza.
Finalizando, eu diria que Francisco empunha o báculo do bom pastor e nos adverte para princípios antropológicos e naturais estratégicos, se queremos permanecer, como gênero, num planeta habitável e no qual a vida não seja Inferno absoluto. Nós, brasileiros, temos na encíclica muito consolo e incentivo para lutar pela fraternidade, sobretudo quando observamos a massa de ódio que se avoluma sempre mais entre os cidadãos e a sistemática e louca devastação da natureza, comandada por um poder de Estado sob controle dos filhos de Caim.
Edgard de Assis Carvalho – Com oito capítulos e 287 proposições, a Fratelli Tutti é um apelo à fraternidade e à amizade social dos povos da Terra.
Destaco três pontos:
1. Fica explícito que estamos diante de duas forças contraditórias: as disjuntivas, que separam, excluem, ampliam as desigualdades e exclusões; as conjuntivas, que solidarizam, religam, lutam em prol de uma política de civilização que combata a crueldade do mundo e quaisquer formas de totalitarismos. Teremos que optar por uma delas para garantir um futuro melhor para todos;
2. A defesa dos ecossistemas é garantia inegociável para a preservação do patrimônio ambiental. Destruí-lo, como acontece no Brasil, é um atentado à dignidade e integridade do homo sapiens sapiens;
3. Só a consolidação da democracia fundada na solidariedade e na ética será capaz de regenerar o humanismo e enfrentar as incertezas do futuro. Discriminações de cor, sexo, ideologia são retrocessos que não condizem com a unidade e a diversidade dos sistemas vivos em geral.
Edgard Carvalho (Foto: reprodução blog Sombra da Oiticica)
Luiz Gonzaga Belluzzo - Vou iniciar a resposta com uma citação do item 6 inscrito no preâmbulo da Encíclica Fratelli Tutti: “As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos. Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade.”
A questão central da Fratelli Tutti é a afirmação do amor fraterno em sua dimensão universal. Não há fraternidade se esse sentimento e sua prática estiverem confinados às fronteiras nacionais, às discriminações de religião, raça, gênero e classe social. Francisco afirma: “Não é o falso universalismo daqueles que precisam viajar constantemente porque não podem e não amam seu próprio povo. Aqueles que olham para seu povo com desprezo estabelecem em sua própria sociedade categorias de primeira ou segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos. Desta forma, nega que haja espaço para todos”.
Belluzzo em conferência no IHU (Foto: Ricardo Machado)
Francisco faz uma crítica do cosmopolitismo dos ricos e poderosos, o falso universalismo ancorado no individualismo radical que se espraia nas sociedades competitivas. Aqui se desenrola um paradoxo da vida contemporânea: O cosmopolitismo individualista está conjugado ao nacionalismo agressivo e retrógrado, matriz da rejeição dos imigrantes e dos diferentes. Assim como os ricos viajantes rejeitam seu povo, os ficantes empobrecidos renegam os que chegam à sua terra: “A mera soma de interesses individuais não é capaz gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas, o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum.”
O terceiro ponto é a compreensão do mercado como um instrumento do progresso e da criatividade coletiva e individual, desde que organizado em torno dos valores da igualdade e da fraternidade: “O mercado sozinho não resolve tudo, mesmo que novamente eles queiram que acreditemos nesse dogma da fé neoliberal. É um pensamento pobre e repetitivo que sempre propõe as mesmas receitas diante de qualquer desafio que venha à tona. O neoliberalismo se reproduz sem mais, voltando-se para o mágico "derramamento" ou "gotejamento" — sem nomeá-lo — como a única maneira de resolver problemas sociais. Não se nota que o suposto derramamento não resolve a desigualdade, que é a fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social.
Por um lado, uma política econômica ativa destinada a "promover uma economia que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial”, é imprescindível para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, "sem formas internas de solidariedade e confiança mútua, o mercado não pode cumprir plenamente sua própria função econômica. Hoje, precisamente essa confiança falhou." O fim da história não foi tal, e as receitas dogmáticas da teoria econômica predominante mostraram que elas não eram infalíveis. A fragilidade dos sistemas globais frente às pandemias mostrou que nem tudo é resolvido pela liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política sólida que não está sujeita ao ditame das finanças, "devemos trazer a dignidade humana de volta ao centro e que nesse pilar as estruturas sociais alternativas de que precisamos sejam construídas."
Agbonkhianmeghe Orobator - O Papa Francisco promove a fraternidade e a amizade social em nosso contexto atual para nos lembrar que somos uma família comum e com um propósito comum; daí o imperativo de construirmos uma comunidade de solidariedade e pertença. A fraternidade reside em uma cultura de encontros autênticos cuja condição prévia é a abertura criativa ao outro.
Agbonkhianmeghe Orobator (Foto: jesuitespao.com)
Francisco propõe um caminho novo na direção de uma cultura de fraternidade fundada em um “encontro misericordioso” e amor usando o exemplo do Bom Samaritano. A fraternidade universal forja um laço social renovado de solidariedade que cuida dos pobres e vulneráveis para além de fronteiras estreitas, interesses e preconceitos.
Para o Papa Francisco, o amor sem fronteiras transforma a humanidade em uma comunidade ilimitada de pessoas próximas que transcendem o Eu e criam uma solidariedade de serviço pelo outro.
Faustino Teixeira – Estamos diante de uma bela encíclica, marcada pela tonalidade do evangelho. Há nela a conjugação da coragem destemida, do cuidado com a casa comum e com os mais sofridos, bem como uma ternura que vem sendo um traço singular no pontificado de Francisco. Utilizando aqui uma expressão de Leonardo Boff, é uma encíclica que une vigor e ternura. É uma encíclica, que na mesma rota da Laudato Si' (LS), convoca-nos a olhar para o alto, pedindo forças para enfrentar com coragem esses tempos sombrios, de escuridão, solidão e dor. Como no evangelho, há uma cristalina opção pelos mais pobres. Junto com eles, o carinho que se derrama sobre os excluídos, os mais velhos e todos que se encontram abandonados num mundo carente de solidariedade. Trata-se de “cuidar da fragilidade” (FT 188), ou seja, “assumir o presente na sua situação mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo com dignidade” (FT 188). O pontificado de Francisco será lembrado como aquele que defendeu com as garras do coração uma outra globalização, fraterna e solidária, contra todo o ritmo nefasto deste tempo do Antropoceno, ou como vem lembrando L. Boff, do necroceno, em razão da ação predatória do humano sobre a Terra. Ela agora “geme e se rebela” (FT 34).
Faustino Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)
Como arauto do evangelho, Francisco convoca a todos a uma ira santa: “Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isto fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43). Não há por que calar-se nesse tempo de passividade e indiferença, é o que revela Francisco com a medula do evangelho. Sua dor vem acentuada com a indiferença como o mundo globalizado vem, em geral, tratando os tocados pela epidemia do coronavírus, sobretudo os velhos, rechaçados como força de produção falida. Idosos são abandonados e isolados, “sem acompanhamento familiar adequado e amoroso”. Tudo isso provoca a mutilação e empobrecimento da própria noção de família (FT 19).
Francisco adverte na encíclica sobre o empobrecimento da humanidade. Lembra que “seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor” (FT 31). É o sentimento de “pertença à humanidade” que se fragiliza numa sociedade do “mínimo eu”, do narcisismo desenfreado, da defesa do particular com todo o aparato de muros intransponíveis. Francisco denuncia as “novas barreiras de autodefesa”, para que vibre solitariamente o mundo privado do eu, mas de um eu sem mundo. E as vozes que ousam contestar essa lógica perversa são caladas ou ridicularizadas, como percebemos na oposição à resistência dos povos originários (FT 17). Nos esquecemos que são essas vozes que podem nos salvar. Aliás, ninguém se salva sozinho, mas a salvação envolve o sentimento de comunidade, que vem se ofuscando a cada dia (FT 32). O papa se coloca ao lado daqueles que promovem os essenciais “gestos barreiras”, para utilizar uma expressão de Bruno Latour. São aqueles que se opõe à dinâmica em curso, e que anseiam pela “interrupção” dessa globalização. Assim como o vírus conseguiu parar por um tempo o mundo, há esperança de que os “pequenos e insignificantes gestos, acoplados uns aos outros, conseguirão: suspender o sistema produtivo” (B. Latour. Onde aterrar – 2020).
Além da defesa de uma ira sagrada contra os donos do mundo, a encíclica defende com vigor o caminho da paz e do diálogo. A busca da paz é outro dos traços novidadeiros do pontificado de Francisco. Ele sublinha que em inúmeras partes do mundo urgem iniciativas que promovam “percursos de paz”, que possam “cicatrizar as feridas”, de “artesãos da paz prontos a gerar, com inventividade e ousadia, processos de cura e de um novo encontro” (FT 225). Providencial é a citação do livro dos provérbios (12.20): “No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria” (FT 256).
Aqueles que são aquecidos pelo evangelho vivem o dom da alegria, é o que nos lembra todo tempo Francisco em sua travessia de amor pela vida. Daí sua sensibilidade à capacidade de doação e de misericórdia, que são dons absolutamente gratuitos. E os artesãos da misericórdia também estão por aí, ao nosso redor, com seus semblantes acolhedores e anônimos. Lembra-nos Francisco, “de vez em quando verifica-se o milagre de uma pessoa amável, que deixa de lado as preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT 224). Sim, estamos diante da globalização da indiferença, é o que nos lembra Francisco a todo momento. Curioso, num tempo pontuado por tantas conexões, de velocidade louca, prevalece a surdez e a desumanidade. Diz Francisco, em pensamento lapidar e certeiro: “Hoje podemos reconhecer que alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade” (FT 33). Como bem lembrou, “a conexão digital não basta para lançar pontes” (FT 28). Esta é a dura verdade. E o ambiente das redes vem contaminado com rancor e ira, na defesa da “solidão dos que têm razão”. Francisco nos adverte contra esta acidez social, irradiada nas redes (FT 44) e convoca a um diverso sentimento, captado na Carta aos Gálatas, de amor, alegria e paz: “um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta”. Isso é o que o nosso tempo mais necessita, de uma paz que leve ao conforto e ao cuidado.
Outra mensagem que a encíclica carrega, como voz preciosa, é a do diálogo. Francisco cita o poeta Vinicius de Moraes para assinalar que “a vida é a arte do encontro” (FT 215). Só através de sua ponte o mundo é capaz de encontrar uma vida melhor (FT 198). O diálogo “tem seu próprio valor”, como diz o belo documento Diálogo e Anúncio (1991). Assim também Francisco quando diz não ser necessário saber “para que serve o diálogo” (FT 198). O diálogo é, na verdade, autofinalizado. Quando Francisco fala em diálogo, está pensando no diálogo entre as culturas, mas também entre as religiões. O diálogo é um dom que preserva as belas coisas que temos em comum com os outros (FT 297). Numa sociedade pluralista, o diálogo inter-religioso firma-se como caminho essencial de ultrapassagem dos muros. As religiões são respeitadas pelo Papa na sua dignidade sagrada. Com base em passagens de discursos no filme dirigido por Win Wenders sobre o seu pontificado, Francisco sinaliza: “Entre as religiões é possível um caminho de paz. O ponto de partida deve ser o olhar de Deus. Porque 'Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor'” (FT 282). Lança assim um convite ao “amor universal”, que deve animar o caminho da igreja. Isso sem perder o referencial singular da pertença. O diálogo não se opõe ao amor à própria religião. Se outros bebem de “outra fonte”, também reconhecida como expressão de beleza, os cristãos são brindados com um “manancial de dignidade humana e fraternidade” fundados no evangelho de Jesus Cristo (FT 277). E todos são cobertos com o manto da dignidade do Mistério sempre maior. O diálogo requer uma pedagogia singular, que envolve um aprendizado de abertura do coração e ampliação do olhar (FT 254). A igreja vem convocada a tal gesto de desprendimento e escuta, do Mistério que está por aí.
IHU On-Line – Que relações o senhor percebe entre a Encíclica Fratelli Tutti, a Laudato Si', o recente discurso do Papa Francisco na ONU e seus pronunciamentos acerca da economia e da justiça social? Nesse sentido, como esta encíclica se insere no pontificado de Francisco?
Rubens Ricupero – A nova encíclica constitui uma espécie de Summa, uma síntese completa, abrangente, do pensamento de Francisco em matéria social. É a mais longa das encíclicas do Papa. Boa parte do texto se articula em torno de abundantes citações de manifestações anteriores do Papa, encíclicas, exortações, homilias nas missas em Santa Marta, discursos durante visitas a países, entrevistas à imprensa, até filmes como o de Wim Wenders, citado repetidas vezes. Incorpora também muita coisa de fontes diferentes: documentos de conferências episcopais nacionais, obras clássicas de doutores da Igreja, de São Tomás, teólogos contemporâneos (Karl Rahner), filósofos como o católico Gabriel Marcel e o protestante Paul Ricoeur, sociólogos como Simmel, frequentes referências a pronunciamentos de seus predecessores.
O documento é o resultado de uma extensa compilação de tudo o que Francisco havia ensinado antes, enriquecido de contribuições de fontes múltiplas, articulado de modo harmonioso num conjunto coerente qualitativamente superior a suas partes.
Atualíssima, a encíclica estava sendo escrita quando o mundo se viu surpreendido pelo advento da pandemia, que “não é um castigo de Deus”, mas a realidade que geme e se rebela pelo dano que causamos à natureza. Vem à mente, lembra o Papa, o verso de Virgílio sobre as lágrimas das coisas. A pandemia evidenciou nossa incapacidade de atuar conjuntamente, mostrou que, apesar de toda a hiperconectividade, estamos tão fragmentados que não conseguimos unir esforços. O mundo avançava rumo a uma economia que pretendia reduzir os “custos humanos”, tentando nos fazer crer que bastava a liberdade de mercado para que tudo ficasse assegurado. De repente, o golpe inesperado da pandemia sem controle forçou-nos a voltar a pensar nos seres humanos, despertando por um tempo a consciência de que somos uma comunidade mundial que navega na mesma barca, onde o mal de um prejudica a todos, onde ninguém pode salvar-se sozinho, que unicamente podemos nos salvar todos juntos.
Leonardo Boff – Esta encíclica, como o Papa mesmo afirma, visa a continuar e a aprofundar o “Documento sobre a fraternidade humana pela paz mundial e a convivência comum”, de 4 de fevereiro de 2019, documento assinado conjuntamente com o Grão Imã muçulmano em Abu Dhabi. Mas nota-se o mesmo espírito da Laudato Si’ que procura sempre ser integral, globalizador e aberto à humanidade e não só aos cristãos. O acento não é tanto sobre a ecologia integral, mas especificamente sobre uma alternativa ao modo de viver dominante, alternativa esta baseada na cultura do amor, na irmandade e na amizade entre todos os povos. Nele ressoam as palavras ditas na ONU, especialmente quanto à justiça social mundial e à centralidade dos pobres e vulneráveis. Esta encíclica contém todos os elementos constantes em seus pronunciamentos falados e escritos: a cultura do encontro seja com o Jesus histórico, seja entre todos os seres humanos, a importância que confere à ternura e à gentileza nas relações interpessoais e também a nível político.
Edgard de Assis Carvalho – Em ressonância com a Fratelli Tutti, o discurso da ONU é um apelo para a urgência de se pôr em prática uma política da civilização planetária multilateralista, voltada ao bem comum, à solidariedade, ao convivialismo, ao reconhecimento da igualdade e da fraternidade. O discurso também deixa claro que os estados-nações precisam se voltar para uma governança global capaz de imunizar o planeta contra os ‘vírus da desigualdade’ que se espalham de modo avassalador e incontrolado. Em tempos pandêmicos, a busca de uma vacina eficaz contra a covid-19 é prioritária, mas também é necessário que a sociedade global se conscientize de que a crise social, o mal-estar da cultura e a banalidade do mal têm de ser superados.
Luiz Gonzaga Belluzzo - É importante ressaltar a continuidade e a abrangência dos ensinamentos da Igreja. Essa continuidade e abrangência deve ser buscada na sequência de Encíclicas, desde Leão XIII até Francisco.
Já escrevi que em 2013, o Papa Francisco ofereceu aos cristãos a Primeira Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”. Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII, Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII, a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e esperanças da vida cristã no mundo contemporâneo.
Também em 2013, Francisco lamentou o Espírito desse mundo que reduz o Homem “a uma única das suas necessidades: o consumo e, pior ainda, o ser humano é considerado também um bem de consumo que pode ser utilizado e jogado fora. Inversamente, “a solidariedade, o tesouro do pobre, é considerada contraprodutiva, contrária à racionalidade financeira e econômica”. Isto deve-se “a ideologias promotoras da autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, que negam o direito de controle dos Estados”.
A sabedoria camponesa de João XXIII espraiou seus ensinamentos no Concílio Vaticano II, ao assinar as encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris.
Na abertura da primeira podia-se ler: a Santa Igreja, apesar de ter como principal missão a de santificar as almas e de fazê-las participar dos bens da ordem sobrenatural, não deixa de preocupar-se ao mesmo tempo com as exigências da vida cotidiana dos homens, não só no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, mas também no que se refere à prosperidade e à civilização em seus múltiplos aspectos, dentro do condicionalismo das várias épocas. Interessante esse “dentro do condicionalismo das várias épocas”.
Na Pacem in Terris, Roncalli escreveu: O progresso da ciência e as invenções da técnica evidenciam que reina uma ordem maravilhosa nos seres vivos e nas forças da natureza. Testemunham, outrossim, a dignidade do homem capaz de desvendar essa ordem e de produzir os meios adequados para dominar essas forças, canalizando-as em seu proveito.
E, ao nos dispormos a tratar dos direitos do homem, advertimos, de início, que o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência sanitária, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade.
Na encíclica Fratelli Tutti, assim também no discurso das Nações Unidas, Francisco cuidou da defesa do meio ambiente, do ecúmeno, como uma ação coletiva essencial que não se restringe à defesa das condições materiais de vida, mas, sim, enquanto promoção de uma relação amistosa, comunitária e carinhosa entre as criaturas do Senhor, o homem e a natureza.
No evento Economia de Francisco, o Papa lembrou que na Laudato Si' havia enfatizado que “hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente conectado e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e da solução dos problemas estruturais da economia mundial. É necessário, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito ao meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das futuras gerações.”
Agbonkhianmeghe Orobator - Como Laudato Si’, Fratelli Tutti inspira-se na vida e nos ensinamentos de Francisco de Assis. O Papa Francisco reconhece o papel das Nações Unidas e a necessidade de uma comunhão entre as nações bem como uma autoridade global regulada pelo direito. Esta encíclica encontra-se na tradição do Papa Francisco, de uma economia e de uma política centradas na pessoa e que favoreçam a solidariedade, a compaixão, a inclusão e o cuidado dos pobres.
Faustino Teixeira – A Laudato Si' ocupou-se do cuidado da casa comum. É uma encíclica que faz um diagnóstico severo sobre a realidade da terra no tempo do Antropoceno, com todas as consequências nefastas de uma atitude predatória do humano com relação ao seu mundo. À luz do evangelho da criação e de uma espiritualidade do cuidado, Francisco busca sublinhar o significado mais profundo do habitar a terra com respeito, reverência e simplicidade, captando o nexo de inter-relação que dinamiza a cadência da vida. Sublinha o risco de catástrofes imprevisíveis caso o ritmo da aceleração produtivista continue no mesmo frenesi. Propõe uma “conversão ecológica” (LS 217) e uma espiritualidade do cuidado, na linha de Francisco de Assis. Na nova encíclica, Fratelli Tutti, o objeto de atenção é a fraternidade e a amizade social. Enquanto o foco da primeira encíclica centrava-se mais no campo da relação de cuidado com o ambiente, na nova encíclica o foco é mais social e político, abordando as exigências de uma fraternidade nova, distinta da “globalização da indiferença” que está em curso. São encíclicas que se complementam. A mensagem de vídeo endereçada à ONU, em setembro de 2020, vai na mesma linha de seu pensamento, presente nas encíclicas.
Retoma a ideia de uma “solidariedade baseada na justiça”, em linha de tensão com o ritmo frenético de “atitudes de autossuficiência” que desenham a plataforma de muitos governos no mundo atual. Ali aparecem sua preocupação com o mundo afetado pelo coronavírus; os efeitos tremendos que estão ocorrendo no mundo do trabalho, numa incerteza vinculada ao processo contínuo de robotização; a cultura do descarte e a violação visível dos “direitos fundamentais”. Retoma também sua preocupação social com os últimos, os desprezados do mundo, os excluídos, os migrantes e os deslocados da “música” da globalização. Aproveita igualmente a nobre ocasião para questionar o “nominalismo declamatório” da ONU, com sua escassa capacidade de cumprir suas promessas. Denuncia várias situações de devastação e flagelos, como os que vêm ocorrendo na Amazônia, acarretando graves prejuízos aos povos originários. E conclama os governos a uma responsabilidade única: “Não devemos impor às gerações futuras o fardo de assumir os problemas provocados pelas gerações precedentes”. Foi um discurso incisivo, destinado a provocar um “repensar o futuro” da casa comum.
IHU On-Line – Que saídas a Encíclica Fratelli Tutti aponta para este momento de mudança epocal que vivemos?
Rubens Ricupero – O primeiro capítulo da encíclica, “Sombras de um mundo fechado” (parágrafos 9 a 55 inclusive), oferece um retrato sombrio de algumas tendências desfavoráveis à fraternidade, de uma história que parece estar caminhando para trás. Sonhos de integração que se frustram, conflitos anacrônicos que se reacendem, “ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos”, o descarte de seres humanos, a obsessão de cortar custos trabalhistas, a globalização sem rumo humano, a pandemia, a cruel exploração dos migrantes. O Papa devota várias páginas à “ilusão da comunicação”, os movimentos digitais de ódio e destruição. Sem citar nomes, descreve um comportamento que se aplica a Trump, Bolsonaro e outros: “Aquilo que até poucos anos atrás não podia ser dito por ninguém sem o risco de perder o respeito de todo o mundo, pode hoje ser expresso com toda crueza até por algumas autoridades políticas e permanecer impune”. Retomando o que dissera em ocasião anterior, assinala que “estão em jogo no mundo digital imensos interesses econômicos capazes de realizar formas de controle tão sutis como invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático.
O segundo capítulo, “Um estranho no caminho” (parágrafos 56 a 86), é todo dedicado à Parábola do Bom Samaritano, eixo indispensável para compreender o desenvolvimento do tema da fraternidade. Indo além de mera descrição asséptica da realidade, antes de indicar algumas linhas de ação, o Papa devota parcela considerável da encíclica a uma homilia magistral sobre a parábola. Não como ensinamento de ideais abstratos, mas como uma “pergunta crua, direta, determinante: com quem te identificas (na parábola)?” Diante do sofrimento, há apenas uma saída: ser como o bom samaritano. “Qualquer outra opção termina ou do lado dos salteadores, ou do lado dos que passam ao largo, sem se compadecer da dor do homem ferido no caminho.”
Encontram-se contidos na parábola todos os temas preferidos de Francisco: a exclusão, a marginalidade das periferias da existência, a indiferença da globalização, a insensibilidade perante os migrantes, os refugiados, os vencidos da vida. A questão fundamental é: “Quem é o meu próximo?” Para muitos, no passado e no presente, o próximo é o que está mais perto, o mais semelhante a nós, o parente, o amigo, o da mesma nacionalidade. Jesus inverte os termos: em vez de nos convidar a dizer quem está mais perto de nós, nos interpela para que, nós mesmos, nos aproximemos dos outros. Devemos sair de nós para irmos perto daquele que sofre, que precisa de ajuda, não importa se pertence ou não ao nosso círculo. Aqui, o Papa exclama: “Às vezes me assombra que, com tal tipo de motivação, a Igreja tenha levado tanto tempo para condenar de modo contundente a escravidão e outras formas de violência”. Agora, não temos mais desculpas.
Este capítulo é o mais solidamente bíblico e evangélico do documento, todo ele estruturado por reflexões tiradas da moral de Jesus e da moral dos Evangelhos.
O terceiro capítulo (parágrafos 87 a 127), “Pensar e gerar um mundo aberto”, consiste numa meditação magnífica sobre o amor, a necessidade para o homem de sair de si mesmo, de se realizar na entrega, no encontro com os demais. O amor tende a uma comunhão universal, que deve integrar a todos, a amizade social é a condição de um amor aberto ao mundo inteiro. Uma pessoa que nasce em situação desvantajosa, em família extremamente pobre, necessita muito mais de um Estado ativo do que outros mais favorecidos. Uma sociedade que se rege apenas pelos critérios de mercado e de eficiência não tem lugar para os desavantajados. “Enquanto o nosso sistema econômico e social produzir uma só vítima e haja apenas uma pessoa descartada, não haverá uma festa de fraternidade universal.” Os dois elementos essenciais da construção de uma sociedade fraterna são: a benevolência, querer o bem do outro, promover os valores, não só os bens materiais, também os valores da moral, da bondade, da fé, da honestidade, e a solidariedade, termo que provém de sólido, de nos tornarmos responsáveis da fragilidade dos outros, de cuidar dos frágeis de nossa família, de nossa sociedade, de nosso povo. Para tanto, é preciso repropor a função social da propriedade a fim de que todo ser humano possa viver com um mínimo de dignidade.
Francisco vai buscar nas origens do cristianismo os ensinamentos de São João Crisóstomo, que afirmava: “não partilhar com os pobres os próprios bens é roubar aos pobres e tirar-lhes a vida. Os bens que temos não são nossos, mas deles”. Ou de São Gregório Magno: “Quando damos aos pobres as coisas indispensáveis, não lhes damos nossas coisas, mas lhes devolvemos o que é deles”. O Papa reafirma com força o princípio do uso comum dos bens criados para todos, lembra que o cristianismo nunca reconheceu o direito de propriedade como absoluto ou intocável, e sim como um direito secundário derivado do destino universal dos bens criados, o que deve ter consequências no funcionamento da sociedade. O desenvolvimento não deve se orientar à acumulação de bens de uns poucos, o direito da liberdade de empresa não pode estar acima dos direitos dos povos, da dignidade dos pobres ou do meio ambiente.
O capítulo quarto (parágrafos 128 a 153), “Um coração aberto ao mundo inteiro”, é praticamente todo dedicado a um dos temas centrais do pontificado de Francisco: as migrações e o dever de acolher migrantes e refugiados. Começa por reconhecer que o ideal seria evitar que as pessoas tivessem de emigrar, por meio da criação de empregos e prosperidade nos países de origem. Ao mesmo tempo, é preciso respeitar o direito de procurar vida melhor em outro lugar. É preciso buscar nos países de destino um equilíbrio entre a tutela dos direitos dos cidadãos e a garantia do acolhimento e assistência aos imigrantes. Para quem foge de crises humanitárias, é indispensável que se adotem certas medidas práticas: facilitar a concessão de vistos, abrir corredores humanitários, assegurar alojamento, possibilidade de trabalho e formação, favorecer a união das famílias, tutelar os menores, promover a inserção social. A sociedade deve adotar o conceito de “cidadania plena” e renunciar ao uso discriminatório da palavra “minoria”. A solução definitiva necessita vir de uma governança global em matéria de migrações que promova a colaboração internacional em torno de projetos de longo prazo, em nome de um desenvolvimento solidário gratuito que permita pensar nos países como formando de fato uma só “família humana”.
O capítulo quinto (parágrafos 154 a 197), “A melhor política”, talvez surpreenda pela ideia elevada que o pontífice faz da verdadeira política, de certo modo retomando a atitude dos filósofos gregos. Perpassa pelo capítulo um sopro de utopia criadora. Começa por colocar no centro da política orientada ao bem comum a ideia de povo. Distingue claramente o populismo que instrumentaliza o povo para fins egoístas de perpetuação no poder do tipo autêntico de liderança capaz de captar os anseios populares genuínos e canalizá-los como força construtiva de desenvolvimento nacional. A melhor política é também a que fomenta o trabalho, que possibilita a cada ser humano a realização de seu potencial e de sua dignidade. No momento em que o debate público no Brasil é dominado pelo tema da assistência emergencial e da renda cidadã, vale meditar na sabedoria e verdade das palavras do Papa: o trabalho é a melhor ajuda para o pobre, o melhor caminho para uma vida digna. Por isso, insiste em que “ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre uma solução provisória para resolver urgências. O grande objetivo deveria ser sempre garantir-lhes uma existência digna através do trabalho”. Nessa altura, Francisco analisa em várias páginas os “valores e limitações das visões liberais”, concluindo que “o mercado sozinho não é capaz de resolver tudo, embora nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se de um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas”. Condena a especulação financeira, declara que: “a fragilidade dos sistemas diante da pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado”. É necessário fazer retornar a dignidade humana ao centro das coisas e “sobre esse pilar se deve construir as estruturas sociais alternativas de que precisamos”.
A partir do parágrafo 170, a encíclica se ocupa do poder internacional, lamentando a ocasião desperdiçada da crise financeira de 2007/2008 para “repensar os critérios obsoletos que continuam a reger o mundo”. Considera indispensável o amadurecimento de instituições internacionais mais fortes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria, e a defesa dos direitos humanos elementares. Propugna por uma reforma da ONU e da arquitetura econômica e financeira internacional no sentido de dar conteúdo concreto ao conceito de família de nações. Para tanto, não se pode permitir que essa autoridade seja cooptada por alguns poucos, que haja imposições culturais ou menoscabo das liberdades básicas de nações mais fracas devido a diferenças ideológicas.
Nesses pontos, Francisco toma partido claro em favor do fortalecimento de uma ordem internacional baseada em normas jurídicas, no Direito Internacional, nos direitos humanos, num momento crítico em que se assiste à erosão gradual desses valores, devido às violações frequentes e impunes perpetradas pelas grandes potências. Embora não mencione explicitamente os responsáveis, não é difícil identificar a quem se refere quando diz que temos de evitar “a tentação de apelar ao direito da força mais do que à força do direito”, citação do Papa São João Paulo II. No mundo atual, dos quatro centros de poder internacional, três – os Estados Unidos de Trump, a China do presidente Xi, a Rússia de Putin – são governados por pessoas de vocação autocrática, que se orientam nas relações internacionais sobretudo pelo estreito interesse egoísta nacional, acima de qualquer consideração do direito ou dos interesses dos menos poderosos. Somente a União Europeia adere ainda ao ideal do multilateralismo. Nesse contexto, é mais que bem-vindo o apelo do Papa ao recurso incansável às negociações, aos bons ofícios, ao arbitramento, aos métodos pacíficos da Carta das Nações Unidas, denominada de “verdadeira norma jurídica fundamental”, isto é, de uma espécie de Constituição mundial.
Encerra o capítulo uma inspirada meditação sobre o “amor político”, a política como uma das formas mais preciosas da caridade, atitude necessária para a edificação de uma “civilização do amor”. Encontra-se aqui uma das mais belas e tocantes passagens da encíclica, quando se fala da necessidade de que também haja na política espaço para amar com ternura. “Que é a ternura? É o amor que se faz próximo e concreto. É um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos [...] o caminho que percorreram os homens e mulheres mais valentes e fortes [...] os menores, os mais débeis, os mais pobres, devem nos enternecer” em meio à atividade política.
O capítulo sexto (parágrafos 198 a 224), “Diálogo e Amizade Social”, examina os caminhos, os meios, as maneiras de construir uma nova cultura: o diálogo, o encontro, a busca do consenso fundamentado na verdade, da paz social, que exige um trabalho artesanal, o reconhecimento do outro no seu direito de ser ele mesmo, de ser diferente. Francisco valoriza neste capítulo os aportes de culturas diversas, das culturas dos povos originários, das culturas populares indígenas. Fecha essa parte uma exortação ao retorno à amabilidade, à gentileza. Sobressai um belo elogio às pessoas que cultivam a gentileza: elas se convertem em estrelas em meio à escuridão. Afirma o Papa que “a gentileza é uma libertação da crueldade que penetra às vezes nas relações humanas”. O cultivo da amabilidade não é um detalhe menor, uma atitude superficial, mas facilita a busca de consensos.
O capítulo sétimo (parágrafos 225 a 270), “Caminhos de reencontro”, trata dos caminhos para cicatrizar as feridas e gerar processos de reencontro. Perdão, ensina o Papa, não significa impunidade, mas sim justiça e memória, perdoar não é esquecer, é renunciar à força destrutiva do mal e ao desejo de vingança. Não se deve jamais esquecer a Shoah, os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, as perseguições, o tráfico de escravos, os massacres étnicos. Não se avança sem memória. Francisco toma posição igualmente em duas situações extremas que podem se apresentar como soluções em circunstâncias dramáticas, sem que se perceba que são falsas soluções que não resolvem os problemas e agregam novos fatores de destruição: a guerra e a pena de morte. Rejeita os critérios desenvolvidos em séculos passados para permitir a guerra justa. Exclama: “Guerra nunca mais!” Reafirma com veemência também a condenação da pena de morte como “inadmissível”.
O capítulo oitavo (parágrafos 271 a 287), “As religiões ao serviço da fraternidade no mundo”, dá ênfase à contribuição que as religiões podem trazer à fraternidade humana. Reivindica e reafirma a identidade cristã, exige liberdade religiosa para todos e para os cristãos nas regiões em que se encontram em minoria. Valoriza a ação de Deus nas demais religiões, não rechaça nada do que pode existir nelas de santo e verdadeiro. Condena os fanatismos, todos os tipos de fundamentalismos, não admite violências, discriminações em nome da fé. Reafirma o documento de Abu Dhabi, no qual Francisco e o Grande Imã declaravam que: “as religiões não incitam nunca à guerra, não instigam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo, nem apelam à violência e ao derramamento de sangue. Essas desgraças são fruto do desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões [...] Deus, o Onipotente, não precisa ser defendido por ninguém e não deseja que seu nome seja utilizado para aterrorizar as pessoas”.
A encíclica se fecha com a evocação do Bem-aventurado Charles de Foucauld, que, no coração mais profundo do deserto do Saara, desejando ser o irmão de todos, o “irmão universal”, como dizia, só conseguiu ser o irmão de todos quando se tornou o irmão dos últimos, dos abandonados no deserto. Seguem-se duas orações finais: uma oração ao Criador e uma oração cristã ecumênica.
Depois deste longo resumo comentado, que ainda assim capta ínfima parcela da riqueza de sabedoria da encíclica, cabe apenas uma palavra. Num mundo órfão de lideranças à altura dos desafios, onde os chefes dos mais poderosos países da terra encarnam o que há de pior na natureza humana, Francisco confirma em definitivo que representa hoje a consciência moral e intelectual da humanidade, a última esperança de que se continue a defender a dignidade da pessoa e a fraternidade de todos os seres humanos.
Leonardo Boff – As saídas são fundadas em valores derivados da irmandade universal, do amor e da amizade, da solidariedade, começando sempre a partir de baixo (nº 78), articulando o local com o universal (nº 141) e dando ênfase à região, o que em ecologia se chama de biorregionalismo (nº 151). Mas o que mais suscita é esperança, pois a sua descrição objetiva do que ele chama de “sombras densas” nos provocam até desalento e muita preocupação acerca das capacidades nossas de fazer as mudanças necessárias. O Papa adverte: “Se alguém crê que só se tratava de fazer funcionar melhor o que já fazíamos ou que a única mensagem é que devemos melhorar os sistemas e as regras existentes, está negando a realidade” (nº 7). Ele oferece uma alternativa ao paradigma dominante, exatamente uma cultura do encontro ilimitado, a fraternidade e a amizade universais vividas concretamente. Belamente nos convoca: “Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos e filhas desta mesma Terra”.
Edgard de Assis Carvalho – A ideia de que todos somos irmãos é de extrema complexidade e requer uma reforma do pensamento. Para isso, a educação tem de superar os limites das fragmentações disciplinares e se empenhar numa visão unitária de mundo que religue natureza e cultura, razão e imaginação. Só assim será possível construir um mundo aberto e plural. A fraternidade é, ao mesmo tempo, aberta e fechada e basta ampliar o olhar e perceber que oásis de fraternidade se encontram por toda parte. São eles que sinalizarão as novas vias para o futuro, baseadas na necessidade do outro, no amor universal, na universalização dos direitos humanos. Na proposição 215 que se encontra no capítulo seis – “Diálogo e Amizade Social” – Francisco se refere ao Samba da Bênção, composta por Baden Powell e Vinicius de Moraes em 1967, que expressa o dever de fraternidade que perpassa toda a encíclica: “A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros na vida”.
Luiz Gonzaga Belluzzo - Se não estou enganado, já disse aqui em outra ocasião que os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do Papa e incrustada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz, com razão, que no cristianismo primitivo e no judaísmo, a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.
Depois da encarnação, o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela Ressurreição. Já disse Francisco na Evangelii Gaudium: “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços.”
Pois, a parábola do Bom Samaritano ocupa uma posição central na Encíclica Fratelli Tutti. Central por sua simplicidade em invocar um episódio da vida concreta e não recorrer a “ideais abstratos” ou “funcionalidades moralistas”.
“Conta Jesus que havia um homem ferido, estendido por terra no caminho, que fora assaltado. Passaram vários ao seu lado, mas… foram-se, não pararam. Eram pessoas com funções importantes na sociedade, que não tinham no coração o amor pelo bem comum. Não foram capazes de perder uns minutos para cuidar do ferido ou, pelo menos, procurar ajuda. Um parou, ofereceu-lhe proximidade, curou-o com as próprias mãos, pôs também dinheiro do seu bolso e ocupou-se dele. Sobretudo deu-lhe algo que, neste mundo apressado, regateamos tanto: deu-lhe o seu tempo. Tinha certamente os seus planos para aproveitar aquele dia a bem das suas necessidades, compromissos ou desejos. Mas conseguiu deixar tudo de lado à vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu tempo.”
Agbonkhianmeghe Orobator - Esta encíclica indica uma fraternidade autêntica que cria uma família de nações, baseada na hospitalidade e na gratuidade assim como no direito de todos os povos, comunidades e grupos nas esferas privada e social.
Fratelli Tutti promove uma mudança a partir da política perigosa, como o populismo, o nacionalismo e o neoliberalismo, para uma política saudável que serve o bem comum e anima-se pela caridade como o seu “coração do espírito”.
A fraternidade universal e a amizade social conectam o local e o global numa relação mutualmente benéfica. Isso significa que o diálogo promove o respeito à diferença de opiniões e pontos de vista e que se anima pela busca comum da verdade, do bem comum, do serviço aos pobres e da paz com base na verdade.
Tal cultura do diálogo e encontro transcende as diferenças e divisões e estabelece uma preferência de amor pelos pobres, vulneráveis e pelos menores [de nossos irmãos].
Finalmente, Francisco faz um novo chamado ao perdão e à reconciliação, à eliminação da guerra e da pena de morte.
Faustino Teixeira – Francisco reconhece que o momento é difícil e o tempo da humanidade é obscuro. Ele fala que “a história dá sinais de regressão” com “conflitos anacrônicos que se consideravam superados”, bem como a ressurgência de “nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT 11). É o tempo onde pondera o egoísmo sobre a visão comunitária. Indica claramente que não há saída individual, mas uma saída dinamizada pela força da comunidade. Pontua que os caminhos de abertura envolvem o “amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais” (FT 143). Indica a importância de uma iracúndia sagrada contra os donos do mundo e em favor dos mais excluídos, num apelo radical de desaceleração. Reconhece que agora é “a própria realidade que geme e se rebela“. Estamos hoje diante de uma Terra que não é só mãe, mas também “intrusa”, para utilizar uma expressão de Isabelle Stengers. Está também presente na encíclica o desejo de escutar os povos originários, que viveram ao longo do tempo muitas situações-limite, e suas críticas ao progresso em curso têm uma plausibilidade bem real. São eles que carregam, com outros grupos excluídos, os sonhos necessários de um cuidado particular. Seus sonhos não são ilusões, mas “frequentemente mais humanistas que a da cultura moderna dos povos desenvolvidos” (FT 220).