As alternativas criadas pelas redes de colaboração vão produzir uma humanidade mais livre ou uma sociedade da vigilância e da precarização do trabalho? Entrevista especial com Marcelo Branco

A internet aponta possibilidades de transformação, mas o futuro dependerá das disputas sociais e políticas, diz o fundador e membro do projeto Software Livre Brasil

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 04 Agosto 2020

O uso crescente da internet e das tecnologias de informação neste período de isolamento social tem potencializado discussões que já estavam na ordem do dia antes da pandemia, como a disseminação de fake news e campanhas de ódio nas redes sociais, a vigilância eletrônica e venda dos dados dos usuários para o mercado de Big Data, a precarização e as transformações no mundo do trabalho, a ampliação das aulas a distância e a disputa entre o uso de software proprietário ou software livre. 

Ao analisar todas essas temáticas, Marcelo Branco, fundador e membro do projeto Software Livre Brasil e um entusiasta da internet, diz que a discussão em torno do desenvolvimento de novas tecnologias não deve se restringir à discussão de se empresas e serviços ficarão obsoletos, mas, sim, “se as novas alternativas criadas pelas redes de colaboração, por novos aplicativos, vão produzir uma humanidade mais livre, com mais direitos, que seja mais respeitada na sua integridade como ser humano ou se, ao contrário, vão produzir uma sociedade da vigilância e da precarização do trabalho”. A responsabilidade das consequências sociais positivas ou negativas dessas transformações não é da internet ou das tecnologias em si, mas das disputas sociais e políticas em curso. “A internet aponta as possibilidades da mudança, mas a disputa social e política que temos de fazer nesse período histórico está relacionada ao modo como estão se desenvolvendo essas novas possibilidades a partir de iniciativas políticas de grandes corporações, como Uber ou aplicativos para entrega de mercadorias, que vêm sendo bastante utilizados”, argumenta.

Nesta entrevista, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, Branco afirma que apesar de todo o potencial transformador da internet, a “vigilância em massa continua sendo o principal problema político global que estamos vivendo” e a educação é uma das áreas em que a coleta de dados está em expansão. Ele comenta ainda o boicote de grandes empresas ao Facebook e ao YouTube, como uma reação às campanhas de ódio disseminadas nas redes sociais. Apesar de as iniciativas serem “positivas”, adverte, as empresas agiram de forma “unilateral”, o que contraria os princípios do Marco Civil da Internet. “O boicote unilateral por parte das empresas, sem passar por uma decisão judicial, é preocupante. Se hoje isso é feito em relação aos conteúdos de ódio, amanhã poderá ser feito em relação a qualquer tipo de conteúdo”, menciona.

Marcelo D’Elia Branco (Foto: Arquivo pessoal)

Marcelo D’Elia Branco é profissional de Tecnologias da Informação e Comunicação - TICs. É cocriador do Fórum Internacional de Software Livre, do Conexões Globais e foi por três anos diretor da Campus Party Brasil. Ativista pela liberdade do conhecimento e novas formas de participação via Internet. Trabalha com estratégias para as redes sociais.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Há muitos anos o senhor aponta a vigilância em massa como um dos grandes problemas da nossa era. Hoje, com a ampliação do uso de tecnologias por conta da pandemia, que riscos e ameaças vê nesse sentido?

Marcelo Branco – A vigilância em massa continua sendo um problema atual e, talvez, o principal problema político global que estamos vivendo neste momento. Claro que, com a pandemia, a nossa vulnerabilidade enquanto cidadãos diante da coleta de dados, armazenamento e uso desses dados de forma escusa, é maior. Estamos cada vez mais utilizando as tecnologias da informação para nos comunicarmos nas nossas relações pessoais e as escolas estão expondo os dados de navegação privados das crianças em plataformas como Google e outras plataformas privadas usadas na área de educação.

A educação talvez seja o lugar de maior aprofundamento dessa coleta de dados e espionagem em massa, que agora estão sendo feitas com grande intensidade. Nesse sentido, os riscos da vigilância em massa, da nossa pouca privacidade e os riscos do uso desses dados por parte das empresas para fins políticos ou comerciais só se aprofundaram com a pandemia. A pandemia colocou a vigilância como o tema ético central a ser discutido neste momento. Então, sem dúvidas, a pandemia aumentou a vigilância em massa e os problemas graves que já existiam.

IHU On-Line - Como o senhor interpreta o crescimento e a expansão de empresas de tecnologia neste momento de pandemia? O que isso significa?

Marcelo Branco – Sempre fui um otimista em relação à internet e às possibilidades de novas formas de relacionamento, mas, nos últimos anos, eu andava menos otimista em função do uso da internet para a vigilância em massa e para a propagação de fake news. Eu pensava: onde fracassamos? Estava pessimista, mas com a pandemia, meu otimismo em relação à internet voltou, porque hoje, se ainda somos seres humanos sociáveis e nos relacionamos, é graças à internet. Não poderíamos imaginar como seria a nossa vida neste momento sem a internet.

Se, por um lado, existe o problema da vigilância em massa, por outro, não há dúvidas de que a internet é o principal espaço de troca de afetos e de relacionamentos. As possibilidades de educação que surgem via internet também são bastante promissoras e positivas. Nesse sentido, é natural que as empresas de tecnologia sejam as que cresçam bastante, porque a nossa vida enquanto seres humanos sociáveis está dependendo da tecnologia neste momento. Não é possível encontros físicos, abraços, reunir pessoas nas praças, nas escolas e nem os encontros com os amigos, por isso a internet está facilitando a nossa vida e somos humanos sociáveis graças a ela. Todos os serviços que utilizamos, mesmo de forma gratuita, fazem parte dos negócios das grandes empresas de tecnologia e é natural que elas cresçam. Há uma tendência de elas continuarem crescendo no próximo período.

IHU On-Line - Algumas pesquisas indicam que inúmeras empresas e quase 70% das secretarias de Educação e instituições de ensino têm parcerias com uma das duas grandes empresas de tecnologia, Google e Microsoft, para serviços de tecnologia da informação. Os críticos alertam para o risco do acesso aos dados dos usuários e das instituições por estas empresas e para o risco da venda desses dados. De outro lado, algumas instituições não optam pelo uso de software livre porque têm uma preocupação em relação à segurança das informações dos usuários e porque não se sentem seguras em relação ao suporte, documentação etc. Como o senhor vê esse quadro?

Marcelo Branco – O uso do Google e de plataformas da Microsoft para educação a distância é um perigo à nossa privacidade. Isso porque os dados de navegação das crianças, dos professores e o comportamento de toda a comunidade escolar diante da plataforma são armazenados por essas grandes corporações, e são vendidos para o mercado de Big Data. Esse é um grande problema que estamos enfrentando.

Se tivéssemos optado por uma plataforma de software livre, isso poderia não acontecer, já que o software livre nos garante maior privacidade e segurança. No uso do software proprietário, por não termos acesso ao seu código-fonte – já que nenhuma auditoria é feita por especialistas –, não é possível comprovar se existe quebra de privacidade ou se existem falhas de segurança. Somente a empresa que vendeu o produto fechado pode afirmar isso, mas não há como comprovar. No software livre ocorre o contrário: qualquer falha de segurança ou de privacidade pode ser investigada por qualquer especialista que fizer uma auditoria no código-fonte. Através desse procedimento, é possível comprovar se há falta de privacidade, falha intencional ou não no software, uso ou não de “porta dos fundos”. O software livre não garante segurança absoluta nem privacidade absoluta, mas é a única forma de podermos auditar essas garantias a partir do código-fonte disponível. Já com o software proprietário isso não é possível.

IHU On-Line - Há muitos anos o senhor defende o uso de software livre. Quais são as vantagens de investir nesse modelo em vez de investir em programas de grandes companhias de tecnologia?

Marcelo Branco – A grande vantagem de investir em software livre é que ele permite a criação de uma indústria de desenvolvedores locais em contato com desenvolvedores e a tecnologia de ponta do mundo inteiro. Ou seja, não significa um desenvolvimento local isolado do que acontece no mundo inteiro. Pelo contrário, as práticas colaborativas do software livre demonstram isso. Nesse sentido, o investimento em software livre permitiria que empresas regionais, locais e nacionais pudessem ser alternativas de plataformas para a educação a distância. Além disso, o software livre permite que o conhecimento fique no local: as pessoas e empresas que desenvolveram a plataforma acumulam conhecimento porque têm o código aberto, que pode ser estudado, pode ser pesquisado, adaptado e modificado. Ou seja, existem inúmeras vantagens no uso do software livre em relação ao uso do software proprietário, principalmente em relação a empresas locais e regionais.

IHU On-Line - Alguns pesquisadores brasileiros defendem que é preciso repensar as políticas institucionais no sentido de construir políticas de tecnologia da informação, de Educação Aberta, Acesso Aberto e Ciência Aberta para os desafios atuais e futuros, especialmente tendo em vista novas ondas de pandemia e a necessidade de estudar e trabalhar a distância. Quais são as vantagens dessa proposta e como ela poderia ser implementada no Brasil?

Marcelo Branco – Estou de acordo com esses pesquisadores brasileiros de que é preciso repensar as políticas institucionais para construir políticas de tecnologia da informação. A educação aberta é um caso importante. Não dá para permitir que a educação no Brasil seja feita em cima de plataformas fechadas. O código-fonte que temos no software livre é a linguagem. Então, como podemos educar as pessoas negando o acesso à linguagem? Quando implementamos plataformas proprietárias nas áreas pública e privada, estamos negando o direito à linguagem, ao conhecimento de como aquilo foi feito. É óbvio que essas iniciativas em relação a plataformas abertas para a educação, em relação à ciência aberta, são desafios atuais, e se não avançarmos nesse sentido, teremos um futuro muito comprometido. O futuro do nosso país, do nosso estado e das cidades depende de que estejamos acompanhando o que acontece no mundo inteiro, mas ter o conhecimento específico é importante.

IHU On-Line - Desde o surgimento da internet, havia uma expectativa de que a rede pudesse ser um ambiente colaborativo, que possibilitasse o desenvolvimento de novas atividades, inclusive, em relação ao trabalho. Apesar das inúmeras vantagens e facilidades que a internet possibilitou aos usuários, alguns teóricos chamam a atenção para o fato de que grandes corporações lucram muito com suas empresas, e inúmeros trabalhos que dependem de aplicativos continuam desenvolvendo atividades precarizadas. Politicamente, como é possível pensar alternativas a esse cenário?

Marcelo Branco – O ambiente colaborativo, a possibilidade de novas formas de colaboração, novos serviços, continua, porque a internet segue oferecendo essa perspectiva. É óbvio que a revolução digital causa um abalo em várias formas de serviços, e assim formas de fazer as coisas que existiam antes vão deixar de existir; isso é natural na evolução da humanidade. A discussão que se faz não é sobre o problema de a internet tornar determinadas práticas, empresas ou serviços obsoletos e construir novas alternativas. A discussão se dá justamente em pensar quais são as novas alternativas: se essas novas alternativas criadas pelas redes de colaboração, por novos aplicativos, vão produzir uma humanidade mais livre, com mais direitos, que seja mais respeitada na sua integridade como ser humano ou se, ao contrário, vão produzir uma sociedade da vigilância e da precarização do trabalho. A responsabilidade disso não é da internet. Ela aponta as possibilidades da mudança, mas a disputa social e política que temos de fazer nesse período histórico está relacionada ao modo como estão se desenvolvendo essas novas possibilidades a partir de iniciativas políticas de grandes corporações, como Uber ou aplicativos para entrega de mercadorias, que vêm sendo bastante utilizados.

O trabalho precarizado dos entregadores de aplicativos é uma realidade dolorosa, mas isso não é resultado única e exclusivamente da tecnologia e da internet, mas, sim, de decisões humanas tanto do poder privado quanto do público. De todo modo, é natural que formas de funcionamento da sociedade e alguns tipos de serviços, inclusive a educação, vão mudar bastante; isso é inevitável em função da internet. A discussão que se faz é como podemos trabalhar para que essas mudanças sejam para um benefício da maioria da humanidade, para que ela seja mais livre, tenha mais conhecimento e mais democracia e não o contrário, como tem sido hegemonizado por esses grupos e corporações.

IHU On-Line - Que diferenças e semelhanças há na atuação e expansão das empresas de tecnologia americanas GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) e chinesas BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi)? O que a disputa internacional entre esses grupos representa?

Marcelo Branco – A disputa entre as empresas de tecnologia chinesas e americanas faz parte da disputa pela geopolítica da economia global que temos acompanhado com a briga de Trump com a China e da China com Trump, e isso se reflete na indústria de tecnologia. Não que um dos campos dessa disputa seja melhor do que o outro, pelo contrário: se as empresas e corporações norte-americanas são as que mais nos vigiam, as que mais quebram a nossa privacidade e transformam os nossos dados em mercadoria, as empresas da China também fazem isso. Além disso, a China não é um bom exemplo de liberdade digital e de expressão. É uma disputa entre dois campos do mal. Não torço para que nenhum deles vença essa batalha.

IHU On-Line - O serviço de inteligência americano alega que a empresa chinesa Huawei, uma das líderes na tecnologia 5G, pode ser usada pelas autoridades chinesas para monitorar o tráfego de comunicações e dados dos países que aderirem à tecnologia da empresa. Como o senhor vê esse tipo de alegação? Vê riscos no fato de os países aderirem à internet 5G de uma única empresa?

Marcelo Branco – O Serviço de Inteligência americano alega que as empresas chinesas podem usar a tecnologia 5G para nos vigiar e nos controlar, mas isso já é feito pelas empresas norte-americanas. Então, a alegação do Serviço de Inteligência é verdadeira mas, por outro lado, também é verdadeiro que as empresas e corporações americanas também têm esse objetivo. Nenhum dos dois é mocinho nesse cenário e, claro, existem riscos vindos de ambos os lados, que hegemonizam a disputa de mercado de telecomunicações e tecnologia da informação.

IHU On-Line - Nas últimas semanas, várias empresas suspenderam a publicidade em algumas redes sociais, como o Facebook, o Twitter e o YouTube, por conta da propagação de conteúdos racistas nas redes sociais, participando da campanha Stop Hate For Profit (Pare de lucrar com o ódio, em tradução livre), exigindo que as empresas tomem medidas em relação às mensagens divulgadas nas redes. O que esse boicote indica?

Marcelo Branco – Esta é uma das lutas mais importantes e vitoriosas no período em curso porque, por mais que as empresas tenham tomado medidas contra as campanhas de ódio disseminadas através das plataformas sociais, essas medidas sempre foram muito tímidas. É através das plataformas do Facebook e do WhatsApp, principalmente, que essas campanhas de ódio e de distribuição de fake news em relação a vacinas e à saúde são disseminadas. Existe uma cobrança muito grande das sociedades e dos governos para que providências sejam tomadas. As iniciativas existem, tanto por parte do Facebook quanto do Twitter, mas elas são insuficientes.

As campanhas de boicote aos patrocínios aferidos pelas plataformas eletrônicas a publicações de ódio, principalmente no YouTube, têm sido importantes porque tocam no que as empresas mais sentem: o bolso. Vejo como positivo o fato de grandes empresas terem deixado de anunciar nessas plataformas, porque elas providenciarão uma melhor forma de lidar com a questão do ódio. Por outro lado, esse tema traz uma preocupação muito grande, porque no Marco Civil da Internet está determinado que a iniciativa de retirar conteúdos do ar não pode partir das plataformas; quem deve retirar o conteúdo do ar é o poder público, via decisão judicial. Então, quando as empresas começam a retirar conteúdo sem nenhuma ordem judicial, sem decisão do poder público, mesmo que sejam para essas causas que estamos falando, elas estão agindo de forma unilateral, o que contraria os princípios do Marco Civil da Internet. Defendemos que é o poder público, através do judiciário, que tem o poder de retirar determinado conteúdo do ar, mas, de outro lado, ele não tem feito nada. Temos registro de denúncias de campanhas de ódio e distribuição de fake news que, inclusive, ajudaram na eleição do presidente da República, feitas pelos grandes meios de comunicação, e não há nenhuma ação até agora partindo do poder público.

Então, o poder público e suas instituições têm sido mais ineficientes do que as corporações no sentido de coibir as publicações que violam as legislações e os nossos direitos. De todo modo, o boicote unilateral por parte das empresas, sem passar por uma decisão judicial, é preocupante. Se hoje isso é feito em relação aos conteúdos de ódio, amanhã poderá ser feito em relação a qualquer tipo de conteúdo.

IHU On-Line – Como as pessoas têm lidado, em geral, com a disseminação de conteúdos falsos na internet? Está sendo mais fácil identificar esses conteúdos?

Marcelo Branco – Parece que algumas pessoas estão saindo da deep web, do mundo obscuro da internet, mas, ao mesmo tempo, várias opiniões e ações têm ajudado as pessoas a refletirem sobre os processos em que se envolveram. Acompanho vários grupos de Facebook na esfera política e observo que as fake news continuam sendo distribuídas de forma bastante intensa, mas já estamos no pico da curva daquilo que seria a disseminação das fake news sem nenhum juízo de valor. Ou seja, as pessoas começaram a ter mais consciência sobre as redes de fake news e distribuição de notícias falsas. A liberdade de expressão continua permitindo isso, e eu continuo acreditando e sou otimista em relação ao futuro da internet.

Nós vamos conseguir vencer essa fase de obscuridade que vivemos nos últimos anos, que foi diferente daquele período inicial do nosso sonho de uma internet libertária, das revoluções que poderiam sair a partir do uso das plataformas da internet, da melhoria da qualidade de vida da população, das novas formas de relacionamento mais intensas, ou seja, a internet não como algo que nos isolasse, mas como uma plataforma que ajudasse a nos encontrarmos e trocarmos afeto. Neste momento, sou muito otimista em relação a esse retorno da internet positiva e dessa virada na curva de consciência das pessoas em relação à propagação de notícias falsas.

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