28 Fevereiro 2011
“Do meu direito autoral não abro mão.” Declarações como esta do cantor e compositor Caetano Veloso demonstram que ainda há muita confusão na discussão do direito autoral na internet, constata o diretor da Campus Party Brasil. “Não existe nenhum movimento que obrigue autores a liberarem suas obras por meio de licenças Creative Commons ou qualquer outro tipo de licença”, esclarece em entrevista concedida à IHU On-Line, por telefone.
Na opinião de Marcelo Branco, manifestações como a de Caetano tem o objetivo enquadrar a internet e remetem ao Projeto de Lei do deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MB), que ficou conhecido como AI-5 Digital. “A reação de artistas tradicionais em defesa da ministra Ana de Hollanda revelou uma discussão ainda pior do que a retirada do selo do Creative Commons do site do Ministério. Revelou uma defesa, de certa forma, do Projeto de Lei do Azeredo, o AI-5 Digital, que quer punir e criminalizar com até três anos de cadeia quem estiver baixando músicas pela internet”.
A revolução tecnológica propiciada pela internet exige mudanças na atual lei do Direito Autoral, a qual, segundo Branco, deve “admitir aos avanços da internet e descriminalizar as práticas de compartilhamento de arquivo P2P”. Marcelo Branco lembra ainda que o Brasil é um dos países que mais consome música nacional, entretanto, a balança de pagamentos de royalty de direito autoral do país é desproporcional. “O Brasil paga dois bilhões de dólares anuais porque as empresas donas dos direitos dos autores brasileiros são estrangeiras”.
Marcelo D`Elia Branco foi por três anos diretor da Campus Party Brasil. Consultor para sociedade da informação, ele é fundador e membro do projeto Software Livre Brasil e também ocupa o cargo de professor honorário da Cevatec- Peru, além de ser membro do Conselho científico do programa internacional de estudos superiores em software livre na Universidade Aberta de Catalunha. O seu blo pode ser acessado
link http://softwarelivre.org/branco.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua reação diante do posicionamento da ministra da cultura, Ana de Hollanda, no início do ano, em relação à retirada do selo do Creative Commons do sítio do ministério? Qual é o valor simbólico deste ato?
Marcelo D`Elia Branco – Fiquei surpreso com a iniciativa do Ministério da Cultura. Nesta ocasião estava acontecendo a Campus Party, o maior encontro de internet do Brasil, e eu e diversos ativistas participamos de uma ação de crítica à posição da ministra, no Twitter.
A atitude dela foi incompreensível em função do acúmulo que o governo brasileiro tem em relação a esse tema. A posição brasileira em defesa das licenças flexíveis foi construída ao longo dos anos pela sociedade civil. Por isso, acredito que a retirada da licença Creative Commons foi um erro político cometido por alguém que está chegando ao Ministério, não domina o tema e tem um histórico de defesa ao direito autoral e ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).
Desde o acontecimento, tenho lutado para que, de várias formas, se possa informar ou formar a ministra sobre o histórico do Creative Commons. É pouco provável que vai haver um retrocesso no governo Dilma em relação ao tema do direito autoral. A retirada do selo (da licença) Creative Commons tem um valor simbólico de enfrentamento com as políticas do governo Lula. Na prática, isso não significa que o Ministério tenha alguma posição referente ao direito autoral, até porque essa questão será discutida em todos os âmbitos do governo. De qualquer modo, esse ato demonstra que ainda há posições conservadoras e reacionárias em relação ao direito autoral na internet.
IHU On-Line – O senhor acompanhou as declarações de Caetano Veloso a favor do direito autoral e a discussão que isso gerou no Twitter? Como interpreta a manifestação dele? O que suas declarações demonstram?
Marcelo D`Elia Branco – A manifestação de Caetano Veloso, publicada em O Globo, criticando a internet, chamou minha atenção. Ele disse: “Do meu direito autoral não abro mão”. Há uma enorme confusão em relação a essa discussão do direito autoral na internet. Não existe nenhum movimento no Brasil que obrigue autores a liberarem suas obras por meio de licenças Creative Commons ou qualquer outro tipo de licença.
O que está em discussão, quando se retira a licença Creative Commons do site do Ministério da Cultura, é saber qual será o destino dos conteúdos produzidos por funcionários públicos do ministério, pagos com dinheiro público. O selo Creative Commons no sítio do Ministério não significa que será preciso enquadrar os artistas, obrigando-os a aderirem ao Creative Commons. Pelo contrário, diz respeito ao conteúdo produzido por jornalistas e postados online.
Nova polêmica
A retirada do selo do sítio do Ministério abriu uma discussão ainda pior, que se manifesta em declarações de artistas como Caetano Veloso, os quais acham que é preciso enquadrar a internet. Isso remete para o Projeto de Lei do Azeredo, o AI-5 Digital. Quando Caetano deu aquela declaração, ele não estava polemizando sobre a retirada da licença Creative Commons do sítio do MinC. A reação de artistas tradicionais em defesa da ministra Ana de Hollanda revelou uma discussão ainda pior do que a retirada do selo da Creative Commons da internet. Revelou uma defesa, de certa forma, do Projeto de Lei do Azeredo, o AI-5 Digital, que quer punir e criminalizar com até três anos de cadeia quem estiver baixando músicas pela internet. De certa forma, quando Caetano diz “no meu direito autoral ninguém mexe”, subentende-se que é preciso enquadrar os internautas. Ele está querendo uma lei igual a do Azeredo, a qual foi altamente condenada pela sociedade brasileira.
Quem não quiser dividir suas obras e mudar a licença, não mude. A discussão principal deve ser em relação a políticas públicas, ou seja, o que o poder público vai fazer com seus conteúdos. Ele vai estimular políticas públicas na velha indústria decadente, continuar financiando o modelo de grandes gravadoras estrangeiras ou vai incentivar as licenças livres e o cenário de uma nova cadeia produtiva dos tempos da internet?
Se o Caetano não quiser que suas músicas sejam divulgadas, ele que guarde sua obra em uma caixinha. Ninguém vai obrigar os músicos a aderirem às licenças Creative Commons.
IHU On-Line – Qual é o maior problema da Lei do Direito Autoral no cenário da internet?
Marcelo D`Elia Branco – Só tem uma forma de impedir a circulação de música na internet: instaurando a quebra da privacidade indiscriminada. Para saber se o João está baixando uma música que está no computador da Maria, será preciso quebrar a privacidade do João e da Maria. Do contrário, não tem como saber. Então, o tema do direito autoral na internet precisa ser encarado como uma nova realidade, o compartilhamento precisa ser descriminalizado e não criminalizado.
A atual lei do Direito Autoral foi construída no século passado e não reflete a realidade do século XXI. Mantê-la é um grande retrocesso democrático.
IHU On-Line – Como o senhor vê o debate sobre a reforma do direito autoral no Brasil? O que dificulta mudanças?
Marcelo D`Elia Branco – Antigamente, o autor produzia um bem intelectual e, para que esse material chegasse ao público, era necessária uma indústria intermediária, com uma logística de distribuição cara, baseada na lógica industrial. Nesse modelo, o autor não se beneficiou porque teve de vender o seu direito autoral para a indústria intermediária. Então, dizer que no período anterior à internet o autor tinha direito sobre a sua obra é mentir. O autor precisava do intermediário para que sua obra chegasse ao consumidor. Tanto é verdade, que hoje muitos artistas não são donos de suas obras.
Com a chegada da internet, não existe mais necessidade da indústria intermediária. A cadeia produtiva da fábrica não existe mais e não tem sentido ela continuar intermediando a relação entre artistas e públicos e faturando com isso. No Brasil, 51% das vendas de CDs são destinadas à indústria intermediária. Então, não tem sentido o direito autoral construído para uma lógica industrial ser automaticamente reinterpretado da mesma forma em um cenário em que não existe mais a indústria intermediária.
É claro que a mudança da lei do Direito Autoral se faz urgente para atualizar, sob o ponto de vista legal, as práticas comuns e que são produtivas para os artistas.
IHU On-Line – Nessa nova conjuntura, qual é o papel do Ecad? A ministra declarou também que o Ecad não precisa de supervisão estatal. Como o senhor vê essa declaração?
Marcelo D`Elia Branco – O Ecad é o dinossauro de tudo isso, tem um histórico de corrupção, não faz uma boa gestão dos direitos dos autores e não os repassa como deveria. A instituição é ameaçada por esse cenário já que nunca trabalhou em prol dos artistas e, sim, sempre foi favorável às gravadoras.
Na discussão do direito autoral, temos de diferenciar quais são os interesses dos artistas e qual o interesse das gravadoras e da indústria intermediária. O Ecad arvora como representante dos artistas, mas quando pergunto para eles como é a relação com a instituição, respondem que não tem interesse. Então, o Ecad pode ser útil para um pequeno grupo de artistas que se beneficiou com a era pop-star. Aquele artista que pede no camarim dez toalhas, 20 garrafas de champanhe francesa e vive como um ser superespecial está com os dias contados. A tendência agora é os artistas viverem dignamente com seus direitos autorais, fazendo shows e divulgando suas obras.
O Ecad tem de ser fiscalizado e deveria perder o monopólio. É absurdo que exista uma única entidade de arrecadação. O Ecad herda essa visão getulista. Os autores deveriam ter a opção de escolher qual a sua entidade arrecadadora e não nascer com o Ecad à tira colo.
IHU On-Line – Em que consistiria, hoje, uma reforma na Lei de Direito Autoral, considerando o avanço da internet, da cultura e da revolução tecnológica?
Marcelo D`Elia Branco – Em primeiro lugar, admitir os avanços da internet e descriminalizar as práticas de compartilhamento de arquivo P2P. Essa é uma troca de pessoa para pessoa sem fins lucrativos. É o mesmo que eu fazia quando comprava um vinil e, depois de escutá-lo, saia com ele pela rua, ia até a casa do meu amigo e escutava com ele. Então, quando se faz troca de música P2P pela internet, as pessoas não estão baixando as músicas de um servidor central ou aderindo à pirataria. São músicas de pessoas que estão em casa e as disponibilizam por meio de dispositivos de compartilhamento de arquivo.
A cópia única para fins de estudo deve ser contemplada pela nova lei do Direito Autoral. É preciso que as pessoas tenham o direito de tirar cópias de livros para estudarem. A cópia Xerox ainda é considerada crime no Brasil. Obras em extinção também devem ser disponibilizadas sem fins comerciais. Estas medidas fazem parte da ideia de flexibilização na lei do Direito Autoral, que é uma visão moderna e necessária do Direito e deve ser aplicada em países em desenvolvimento como o Brasil.
Pablo Ortellado diz que o Brasil é um dos poucos países do mundo que consome mais música nacional do que música estrangeira. No entanto, a balança de pagamentos de royalty de direito autoral do Brasil com o exterior é extremamente desproporcional. O Brasil paga dois bilhões de dólares anuais porque as empresas donas dos direitos dos autores brasileiros são estrangeiras. Então, o país não se beneficia com essa indústria cultural antiga.
A ministra Ana de Hollanda já teve o primeiro encontro com os membros da cultura digital. Parece que a reunião foi boa e a tendência é que a discussão sobre direito autoral continue sendo tratada da forma que vinha sendo discutida no governo Lula. Não tem como uma ministra quebrar uma política brasileira, internacional. O Brasil defendeu a ideia da flexibilização do direito autoral na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, em Genebra, no ano de 2003, abriu uma agenda na Organização Mundial de Propriedade Intelectual chamada Agenda de Desenvolvimentos e quer rediscutir a questão do direito autoral e da propriedade intelectual.
O governo tem uma política bem consolidada neste sentido e Dilma, quando candidata à presidência, teve um encontro com Larry Lessig, criador das licenças Creative Commons no mundo, onde eles trocaram várias ideias. Ele disse para a presidente que o Brasil pode ter a lei do direito autoral mais avançada do mundo. Dilma repetiu a frase dele em uma mesa de debate na Campus Party. Nós esperamos que isso aconteça.
IHU On-Line – A partir do momento em que a base tecnológica do governo, dos veículos de comunicação e do público é a mesma, o que muda, política e socialmente?
Marcelo D`Elia Branco – Esse é o grande debate. Muda muito. Até onde essa mudança irá chegar, não sabemos, mas temos de discutir. É obvio que se a plataforma de mídia é a mesma, exige-se uma comunicação mais horizontal não só para que o público possa criticar as propostas do governo, mas para que, principalmente, possa construir junto as novas propostas do governo.
IHU On-Line – Os brasileiros aderiram ao software livre? Como vê a adesão no país?
Marcelo D`Elia Branco – O Brasil tem sido um dos países do mundo onde o software livre é mais discutido. No mundo dos servidores e das empresas, ele tem avançado bastante. A batalha é chegar no usuário final e em torno disso há uma nova discussão: o acesso a computadores com software livre. De qualquer modo, ele ganhou bastante espaço no meio técnico: tudo que faz a internet funcionar é software livre: WordPress é software livre, as plataformas dos blogs funcionam a partir dele. Então, o desafio é que o usuário abra mão do MS Office e do Windows. A internet pouco a pouco vai superando essa ideia.
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Lei do Direito Autoral deve acompanhar evolução da internet. Entrevista especial com Marcelo D"Elia Branco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU