11 Junho 2010
“A discussão sobre a legitimidade do anonimato em esferas ou espaços públicos não é um privilegio da atualidade e marcou calorosas disputas na modernidade”, relembra a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fernanda Bruno. Na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, ela trata da questão do anonimato na Internet. “O anonimato é absolutamente necessário para indivíduos e grupos que vivem em regimes totalitários ou sob censura, para os quais, muitas vezes, comunicar-se anonimamente é uma questão de sobrevivência muito concreta”, opina.
Fernanda Bruno é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, onde coordena a Linha de Pesquisa “Tecnologias da Comunicação e Estéticas” e o CiberIdea: Núcleo de Pesquisa em Tecnologias da Comunicação, Cultura e Subjetividade. É organizadora do livro Vigilância e Visibilidade: espaço, tecnologia e identificação (Porto Alegre: Sulina, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O anonimato na Internet é algo legítimo?
Fernanda Bruno – Sim, o anonimato na Internet é absolutamente legítimo. Tão legítimo quanto a privacidade e a liberdade de comunicação, informação e expressão. É importante ressaltar que, no caso da Internet, esses três aspectos estão entrelaçados e que a quebra do anonimato pode colocar em risco tanto a liberdade quanto a privacidade dos indivíduos e dos dados que hoje circulam na rede.
A discussão sobre a legitimidade do anonimato em esferas ou espaços públicos não é um privilégio da atualidade e marcou calorosas disputas na modernidade. Parte dessa discussão está atrelada à utopia de uma sociedade transparente, a qual tem muitas faces. Para citar uma delas, aquela que paradoxalmente constitui um dos lados mais “sombrios” do “Século das Luzes” é exatamente a que vai defender a ordem social intimamente atrelada a uma visibilidade total, à utopia política de um olhar vigilante. Um dos mais conhecidos projetos dessa utopia é o sonho panóptico de Jeremy Bentham [1]. Conhecidos também são os temores que o anonimato despertou com o surgimento da vida urbana e das massas modernas. Toda uma polícia e uma política de identificação se constituiram na tentativa de distinguir os traços de uma identidade individual nos rostos e corpos indiferenciados e anônimos das multidões urbanas.
Na contracorrente desses processos, toda uma outra linhagem de pensadores e práticas defende o anonimato como um princípio fundamental para o pleno exercício da vida pública e da liberdade em coordenação com a proteção da vida privada. Hoje, tanto o temor do anonimato quanto uma tentativa de ampliar os sistemas de identificação ressurgem com a Internet, mas, seguramente, qualquer tentativa de quebrar o anonimato é muitíssimo mais perigosa para a sociedade do que a sua existência como princípio legítimo e aliado à privacidade e à liberdade.
IHU On-Line – E, em sua opinião, o anonimato na Internet deve ser protegido?
Fernanda Bruno – Sim, deve ser protegido no sentido de garantido, assegurado, sem dúvida. Pois, sem o anonimato, a Internet se torna um espaço de controle e de vigilância potencial. Como bem mostram vários estudos, entre os quais destaco os de Alexander Galloway [2], nossas comunicações na rede são operadas por protocolos que como deixam rastros que podem ser localizados, o que implica a possibilidade do controle.
Entretanto, não há, nesta mesma estrutura e na arquitetura da rede, nada que exija o vínculo de tais rastros a indivíduos especificamente identificados. Ou seja, essa estrutura acolhe e assegura o anonimato, ainda que o número do IP possa ser rastreado. E isso deve ser mantido. Na verdade, a garantia do anonimato é o que, digamos, nos “protege” do controle e do vigilantismo na Internet.
IHU On-Line – Quem não quer o anonimato e por quê?
Fernanda Bruno – A Internet é, desde o seu surgimento, uma rede de comunicação distribuída, baseada no anonimato, apesar de algumas tentativas pontuais contrárias. E, com essa estrutura, ela se tornou o que é hoje, uma rede fundamental e essencial em nossa vida social, política, econômica, cultural, cognitiva etc.
Segurança e interesses comerciais e corporativos são a base de boa parte dos argumentos recorrentes contra o anonimato na Internet. É plenamente legítima e necessária a defesa da segurança na Internet, mas não creio que esta seja inimiga do anonimato, ao contrário. Mesmo porque, em caso de crimes, a quebra do anonimato já está prevista e garantida pela lei.
Mas acho que há pelo menos dois níveis a serem considerados: um primeiro, mais “vital”, no sentido forte do termo, é que o anonimato é absolutamente necessário para indivíduos e grupos que vivem em regimes totalitários ou sob censura, para os quais, muitas vezes, comunicar-se anonimamente é uma questão de sobrevivência muito concreta. Um segundo nível consiste não tanto no anonimato em si, mas em uma série de outros processos que estão articulados a ele na Internet, a liberdade de comunicação e expressão, a privacidade, a possibilidade e abertura em reinventar modelos de partilha de informação, conhecimento, bens etc.
IHU On-Line – Como você vê a relação da fama e do anonimato na Internet?
Fernanda Bruno – Fama e anonimato convivem plenamente e profusamente na Internet, território absolutamente cambiante e marcado pela diversidade. Estamos falando agora não mais do anonimato, digamos “estrutural” ou “arquitetural”, mas no desejo de as pessoas permanecerem anônimas ou conquistarem alguma fama. Por um lado, há um impulso e uma corrida pela fama muito presente em diversos domínios da rede, reproduzindo os ideais da cultura de massas com novas roupagens. Por outro lado, há dinâmicas colaborativas em que sistemas de reputação convivem com o anonimato dos participantes. E há, ainda, processos sociais, políticos, estéticos cujo “pathos” passa pelo anonimato. A mais recente e breve ‘mania’ que chamou a minha atenção neste sentido foi o Chatroulette, onde uma das grandes excitações, à diferença das redes sociais “entre amigos eleitos ou relativamente conhecidos”, é o encontro aleatório com o desconhecido, uma roleta de anônimos interconectados. Não sei se o Chatroulette vai vingar ou não para além de seu sucesso inicial, mas trata-se de um dispositivo interessantíssimo, e é instigante imaginar esse processo coletivo de encontros aleatórios com o desconhecido.
IHU On-Line – Os engenheiros que viabilizaram a Internet fizeram isso pensando no anonimato. Para você, que história social da Internet, enquanto mídia e a partir do anonimato intrínseco, criamos?
Fernanda Bruno – Eu diria que a história da Internet é marcada por uma extrema inventividade, uma grande capacidade de se desviar dos fins que lhes são propostos. E isso desde seu início, em que se desviou dos fins estritamente militares e acadêmicos e, desde então, vem sendo apropriada de múltiplos modos e em muitas direções, constituindo modelos alternativos não apenas de comunicação, mas de produção e circulação da informação e do conhecimento, de sociabilidade, de ação política, social, cultural, assim como dinâmicas alternativas de mercado, trocas etc.
É claro que essa inventividade não se dá num território de plena harmonia, mas num campo de embates e disputas cada vez mais acirrados em que concorrem também modelos centralizados, massificados, corporativos, conservadores etc. Mas de toda forma, na Internet, esses embates são possíveis, enquanto, nas mídias massivas, as relações de força eram muito mais cristalizadas. E, voltando ao anonimato, toda essa inventividade que atravessa a história da Internet, sem dúvida não se deve apenas ao anonimato, mas a múltiplos fatores, atuando de forma conjunta e extremamente complexa. Porém, creio que a Internet estaria muito ameaçada sem ele.
O que há de mais interessante é que a Internet não está encerrada e não pode ser explicada nem pelo gênio de alguns indivíduos, nem pela gestão de certas corporações, nem por ações de um pequeno número de centros. Embora haja tudo isso na rede (egos inflados, grandes corporações, centros), a inventividade que importa e que me parece mais efetiva na história da Internet é essa inventividade distribuída, coletiva, atrelada, entre outras coisas, às redes do anonimato.
Notas:
[1] Jeremy Bentham foi um filósofo e jurista inglês. Juntamente com John Stuart Mill e James Mill, difundiu o utilitarismo, teoria ética que responde todas as questões acerca do que fazer, do que admirar e de como viver, em termos da maximização da utilidade e da felicidade.
[2] Alexander Galloway é professor do Departamento de Cultura e Comunicação da Universidade de Nova York.
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Anonimato na Internet: "absolutamente necessário’. Entrevista especial com Fernanda Bruno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU