29 Mai 2020
O último relatório da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) indica que, em 25 de maio, o número de casos confirmados de Covid-19 na Amazônia brasileira já ultrapassava 100.000, com 5.531 mortes.
“Com a chegada da pandemia de Covid-19 ao Amazonas, podemos ver, de fato, a fragilidade e deterioração das instituições que atendem à saúde dos povos indígenas”, lamenta o padre salesiano Justino Sarmento Rezende, que se reconhece como Tuyuka e participou ativamente do processo do Sínodo Pan-Amazônico - antes, durante e depois - como assessor da REPAM e, dentro do sínodo, em outubro passado, como especialista em espiritualidade indígena e pastoral inculturada.
A entrevista é de Óscar Elizalde Prada, publicada por Vida Nueva, 27-05-2020. A tradução é do Cepat.
Como a expansão do coronavírus está afetando a vida dos povos indígenas na Amazônia brasileira?
Os municípios do interior do Amazonas não possuem hospitais, nem profissionais suficientes para essa pandemia. Na maioria das comunidades indígenas, atendem à emergência enfermeiros e agentes de saúde. Em muitas outras comunidades, só está presente o agente de saúde indígena. Quando há um médico, deve atender uma grande região e não é suficiente. Muitos indígenas já faleceram. Em casos gravíssimos são levados para Manaus, a capital. Mas lá não têm Unidades de Terapia Intensiva e morrem sem receber a atenção necessária.
Aqui em nossa região do Rio Negro, onde vivemos em 23 aldeias, as famílias estão sendo infectadas pela Covid-19. Diante das limitações que estamos enfrentando, foi intensificado o uso de chá com várias plantas de nossa região, tanto para a prevenção, como para a cura da doença. Estamos alcançando resultados satisfatórios, mas alguns casos mais graves ainda estão sendo encaminhados para o hospital. Alguns superam, outros não.
O governo vem sendo duramente criticado por suas incompreensíveis posições diante da crise do coronavírus...
Toda essa situação se agrava com as decisões do Presidente do Brasil. Não está comprometido com essa pandemia de Covid-19. Ele se preocupa com os interesses dos grandes empresários, com a abertura de comércios e a suspensão do isolamento social que os Estados e municípios estão adotando.
Os estados e municípios, por outro lado, estão mais comprometidos com o sofrimento dos povos. Também sentem como o sistema nacional de saúde é frágil diante do avanço avassalador da Covid-19.
“Os povos indígenas se caracterizam por sua capacidade de resistência”
Em algum momento, previram que a Covid-19 chegaria às comunidades indígenas?
Muitos de nós pensávamos que esse vírus não chegaria às comunidades indígenas distantes das cidades. Infelizmente, chegou, devido aos trânsitos constantes entre as pessoas que vão e vêm das cidades. Para desacelerar seu avanço, foram formados comitês para aumentar a conscientização, controlar e acompanhar o trabalho das pessoas. Isso tem ajudado nossa região. Os povos indígenas se caracterizam por sua capacidade de resistência.
Como estão respondendo as ameaças que, há muito tempo, as populações indígenas do país enfrentam?
A situação de tensão entre os povos indígenas do Brasil, desde que os exploradores atacaram nos litorais, não parou. Nossos antepassados sentiram na pele as enormes diferenças que existem. Sentiram-se ameaçados, caçados e assassinados. Desde então, a situação de perigo é constante e se expressa na perseguição, expulsão do território e assassinato de líderes. São práticas comuns no Brasil. Por isso, nós, povos indígenas, afirmamos que somos indígenas em resistência.
Alguns direitos consagrados na Constituição brasileira de 1988 foram resultado de lutas e persistências, também com o compromisso de pessoas aliadas a causas indígenas. Mas, mesmo com a garantia desses direitos, não faltam projetos de lei que busquem mudar sua implementação, contra o que a Constituição Federal diz sobre povos originários, suas terras, seus costumes, sua educação, suas línguas.
Como são as relações com o governo no momento atual que vive o país?
As tensões dos povos indígenas em relação aos governantes do Brasil, e ainda mais devido ao coronavírus, fazem parte do dia a dia. Diariamente, os discursos do Presidente e de seus ministros causam indignação não apenas em nós, povos indígenas, mas em muitas pessoas que não concordam com essa maneira de ver as pessoas. Diante disso, os povos originários reassumem suas lutas e resistências, que já fazem parte de nossas histórias. A luta continuará.
A destruição da Amazônia também não parou...
Embora o projeto governamental tenha permitido a entrada de empresas de mineração, o desmatamento das florestas, a invasão de terras demarcadas, etc., de nossa parte, os povos indígenas e as instituições que nos apoiam, estamos aqui para mostrar que enquanto estivermos vivos, a resistência será nosso instrumento de defesa da vida. Vivemos assim por mais de cinco séculos. Resistiremos e viveremos por muitos mais séculos.
Qual tem sido o papel da Igreja diante dessas ameaças que os povos indígenas sofrem?
Sou sacerdote há 26 anos e estou bastante comprometido com nossas causas, principalmente no campo da reflexão, da conscientização e da participação no cotidiano das pessoas onde trabalho.
Aqui no Brasil, recentemente, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e os especialistas que foram ao Sínodo da Amazônia emitiram um documento com sérias exigências ao Presidente, para que sejam assumidas as urgências de atenção aos povos da Amazônia, principalmente aos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas e cidades isoladas, bem como aos povos indígenas que vivem nas grandes cidades. No entanto, repercutiu muito pouco, mas é a atitude profética da Igreja.
Sendo profética, a Igreja também é perseguida pelo governo atual. Mas é preciso dizer que, infelizmente, temos no Brasil uma grande parcela de católicos que defendem radicalmente as atitudes e projetos do governo atual. Também, nesse sentido, vivemos uma sensação de compaginar com um projeto de morte.
As decisões dos Padres Sinodais e a exortação pós-sinodal ‘Querida Amazônia’ já tiveram alguma repercussão no Brasil?
Antes que fizéssemos as reuniões para colocar em prática os encaminhamentos do Documento Final do Sínodo da Amazônia, e antes que fosse lançada a exortação apostólica Querida Amazônia, a pandemia de Covid-19 já estava presente no Brasil.
Com o isolamento social que estamos vivendo, vários encontros foram cancelados. No entanto, a nota dos bispos da Amazônia brasileira sobre a situação dos povos e das florestas nos tempos da pandemia de Covid-19 é um documento muito contundente e profético.
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“As tensões dos indígenas com o governo do Brasil por conta do coronavírus fazem parte do dia a dia”. Entrevista com Justino Sarmento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU