01 Mai 2019
O vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, acompanhou a delegação do Brasil que na semana passada participou do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas das Nações Unidas, em Nova York, além de eventos paralelos relacionados aos povos indígenas e reuniões com relatorias e assessorias especiais da ONU.
Em entrevista à imprensa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para falar sobre a agenda junto à comunidade internacional, o vice-procurador-geral foi taxativo quanto à tese do marco temporal, localizada em ação de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF): “5 de Outubro de 1988 não é marco de remoção de direitos dos índios, mas de consolidação, renovação, reiteração”.
Maia foi recebido na ONU pelo Assessor Especial das Nações Unidas para Prevenção ao Genocídio, Adama Dieng, e, posteriormente, pela Relatora Especial das Nações Unidas para Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz.
“Houve oportunidade de chamar a atenção para o momento atual, em que tem ganhado força uma ideologia que expressa exclusão de direitos aos povos indígenas, manifesta um desvalor, estimula avanços sobre suas terras e constrói uma polaridade que os desumaniza”, explica Maia sobre a conversas com Dieng e Victoria.
Sobre o tema de prevenção ao genocídio, o vice-procurador explica que fez referência, ao assessor e à relatora da ONU, “às situações em que comunidades indígenas foram vítimas de ataques genocidas, esclarecendo o perfil dos agressores e o perfil das vítimas, no contexto brasileiro”.
O Poder Judiciário brasileiro reconheceu ter ocorrido, em apenas dois casos, genocídio de populações indígenas. Massacre da Boca do Capacete, envolvendo os Tikuna, e o Massacre de Haximu, em que garimpeiros brasileiros mataram índios Yanomami, em território venezuelano, e depois retornaram ao Brasil.
“A responsabilização do Estado brasileiro, em tais casos, se revela pela proteção insuficiente, não aparelhando suas agências a identificarem os problemas potenciais, nem agirem para a efetiva proteção territorial e das comunidades indígenas”, explica Maia que participou do evento paralelo A responsabilidade na Prevenção de Genocídios para a sobrevivência dos Conhecimentos Tradicionais.
Sobre a responsabilidade de proteger do Estado brasileiro, assunto tratado na ONU, o vice-procurador explica que “o Brasil precisa ter agências e órgãos estruturados, com pessoal, recursos financeiros e técnicos, e capacidade de atuação para impedir que terceiros violem direitos dos índios”.
A entrevista com o vice-procurador-geral da República Luciano Maia é de Renato Santana, publicada por Conselho Missionário Indígena - Cimi, 30-04-2019.
Como o senhor avalia a participação, junto às lideranças indígenas, no Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU e seus eventos paralelos?
A ONU é uma organização de Estados que afirma a importância do respeito aos direitos humanos de todos, como condição para a paz e para o desenvolvimento dos povos. Essa organização internacional percebeu que é necessário abrir espaços a organizações não-governamentais, capazes de serem fontes fidedignas de informações e compartilhamento de visões e reflexões, que permitam melhor compreensão da realidade vivida por todas as dimensões concretas das pessoas, no âmbitos dos Estados-partes.
Nesse contexto, ouvir as vozes dos próprios povos indígenas, e das suas organizações e das que lutam pela promoção e defesa dos seus direitos, permitindo um diálogo informado e documentado com os Estados-partes, tem se revelado um caminho seguro para que os direitos humanos dos indígenas sejam assegurados nas leis e nos fatos.
De minha parte, foi edificante estar ao lado de representantes indígenas, e de organizações que as defendem no plano local, em países latinoamericanos, escutando suas vozes, no cenário da ONU como lugar de fala. Compartilhar com a ONU e com outras nações democráticas estas preocupações é permitir ao governo do Estado brasileiro corrigir seu rumo
Qual a importância dos indígenas do Brasil, suas organizações e seus aliados, ocuparem esses espaços de incidência com a comunidade internacional, frente ao revelado pela conjuntura brasileira?
Um governo é um conjunto de forças políticas, desejoso de implementar programas que entende melhor realize o bem comum. Sendo forças políticas vivas, um governo que ascende ao poder muitas vezes que não só fazer diferente, mas fazer o contrário de governos que lhe antecederam.
A ONU é espaço internacional em que o Estado brasileiro – e não apenas o governo daquele momento – é lembrado sobre suas obrigações internacionais para com os demais Estados-partes, e para com seu próprio povo, não em razão de opiniões e políticas de governos, mas em razão de marcos normativos vinculantes.
A conjuntura política do Brasil hoje, em que o governo inaugurado em 1° de janeiro de 2019 discursa contra os índios e seus direitos às terras, que retira da Funai (a maior agência indigenista governamental do mundo) o papel de responsável pela demarcação de terras indígenas, transferindo essas atividades para setor do governo responsável pelo fomento às atividades produtivas diretamente relacionadas às violações dos direitos dos índios (o Ministério da Agricultura), não é só preocupante, mas é expressão concreta de risco agravado à vida e à segurança pessoal dos povos indígenas.
Compartilhar com a ONU e com outras nações democráticas estas preocupações é permitir ao governo do Estado brasileiro corrigir seu rumo, e evitar danos e até previsíveis atrocidades massivas contra os povos originários do Brasil.
O senhor participou de denúncias que resultaram em condenação por crime de genocídio no Brasil. Sabemos também que a 6 CCR, nos últimos anos, tem se dedicado a estudar o tema. Qual a responsabilidade do Brasil frente a estas situações, à legislação internacional, e quais medidas o MPF está tomando quanto a prevenção?
O Poder Judiciário do Estado brasileiro reconheceu ter havido crime de genocídio em dois casos emblemáticos, condenando os responsáveis nas penas previstas na Lei 2.889/1956. O primeiro a ser denunciado foi o chamado Massacre da Boca do Capacete, vitimizando índios Tikuna, que lutavam pela demarcação de suas terras. O segundo, do qual participei, foi o Massacre de Haximu, em que garimpeiros brasileiros mataram índios Yanomami, em território venezuelano, e depois retornaram ao Brasil.
Ambos os casos revelam que, no contexto brasileiro, as vítimas são comunidades indígenas que têm seus territórios invadidos por não índios, em razão do interesse econômico sobre bens e riquezas ali encontrados (garimpo de ouro e diamantes, madeira, e mesmo as terras, a serem tomadas para a agricultura e pecuária).
A responsabilização do Estado brasileiro, em tais casos, se revela pela proteção insuficiente, não aparelhando suas agências a identificarem os problemas potenciais, nem agirem para a efetiva proteção territorial e das comunidades indígenas.
O senhor se reuniu com o Assessor Especial das Nações Unidas de Prevenção de Genocídio? Como o MPF pode contribuir com a interculturalização dos fatores de risco, elaborados pelo escritório de prevenção?
Reuni-me com o Assessor Especial (das Nações Unidas) para Prevenção ao Genocídio, Sr. Adama Dieng e com sua assessoria, e posteriormente com a Relatora Especial (das Nações Unidas) para Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz. A ambos expliquei que a ida de representante do Ministério Público Federal, credenciado por organizações não governamentais, expressava a posição que a instituição adota aqui no Brasil: está ao lado dos povos indígenas e das minorias, e tem dever constitucional de defender seus direitos e interesses legítimos.
Ainda, a Procuradoria-Geral da República, tanto pela palavra direta da Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, quanto pela 6a Câmara de Coordenação e Revisão (Povos Indígenas e Populações Tradicionais) e Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), tinha assumido voluntariamente o dever de dar seguimento, no âmbito interno, doméstico, das recomendações dos órgãos internacionais de monitoramento dos direitos humanos, de modo a tornar efetivo o respeito pelo Estado brasileiro às obrigações previstas nos tratados.
Especificamente sobre o tema de prevenção ao genocídio, fiz referência às situações em que comunidades indígenas foram vítimas de ataques genocidas, esclarecendo o perfil dos agressores e o perfil das vítimas, no contexto brasileiro.
Houve oportunidade de chamar a atenção para o momento atual, em que tem ganhado força uma ideologia que expressa exclusão de direitos aos povos indígenas, manifesta um desvalor dos mesmos, estimula avanços sobre suas terras e constrói uma polaridade que os desumaniza.
Esses fatores se enquadram nas situações que apontam para o agravamento de riscos de ocorrência de violações massivas contra os índios, exigindo adoção de medidas de alerta precoce e resposta rápida por parte das instituições democráticas, estando a 6a Câmara à frente da implementação de um tal mecanismo em seu âmbito, em estreita articulação com as organizações e comunidades indígenas, e outras agências de promoção e defesa dos direitos humanos.
A Procuradora-Geral da República, recentemente, se pronunciou a respeito das mudanças que a MP 870 promoveu nas demarcações. O senhor abordou este assunto em seus pronunciamentos em Nova York? Há conflito de interesse neste caso? O que esperar a respeito dessas mudanças?
As obrigações internacionais, previstas nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte, têm várias dimensões. Há as dimensões de reconhecer direitos (o Brasil fez isso em sua Constituição e em muitas leis), respeitar (o próprio Estado e suas agências não pode adotar legislação ou política pública que viole o direito), proteger (o Estado precisa estruturar-se em termos de agências e órgãos que tenham pessoal, recursos financeiros e técnicos, e capacidade de atuação para impedir que terceiros violem direitos dos índios), e, finalmente, implementar (no caso dos índios, demarcar suas terras, assegurar desenvolvimento étnico sustentável, garantir os demais direitos sociais – saúde, educação).
A obrigação de demarcar as terras indígenas e de proteger todos os seus bens é da União Federal. A Funai, desde sua criação, vem desempenhando essa função. Hoje a Funai é mais que uma agência governamental indigenista. É a maior agência do gênero no mundo. O conhecimento acumulado a torna respeitada nacional e internacionalmente.
Quando o presidente da República, por ato seu – a Medida Provisória 870 –, retira da Funai essa atribuição, sem dotar o novo órgão com o conhecimento científico, a capacidade técnica, os recursos humanos e materiais necessários, sendo ainda esse novo órgão (Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento), historicamente, o responsável pelo incentivo direto às atividades que mais violam os direitos dos índios, traz para si a responsabilidade direta sobre os destinos dos índios no Brasil, e todos os riscos das violações em massa, em tudo previsíveis, e por vezes já realizados em eventos do passado.
A decisão do ministro deixou claro que, não importa qual seja a agência governamental a responsável, importa que cumpra a Constituição. Esse passa a ser o desafio e o dilema do novo governo.
Durante o ATL, em Brasília, os indígenas pautaram à exaustão a questão do marco temporal e agora a relação desta tese com o caso de Repercussão Geral do STF, envolvendo o processo de uma terra Xokleng. Qual a leitura do senhor sobre a tese do marco temporal? Em que lugar se encaixa o Indigenato nessa discussão?
O Supremo Tribunal Federal reconhece e respeita o instituto do indigenato, que é o reconhecimento de a condição de índio, que antecede ao Estado brasileiro, torná-lo titular dos direitos originários às terras de ocupação tradicional.
O Supremo reconhece e respeita que o marco constitucional dos direitos dos índios é a Constituição de 1934, em que há expressa proteção às terras dos índios. E que todas as demais Constituições que se seguiram alargaram essa proteção jurídica.
Portanto, na predominante, consistente, reiterada, clara jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988 e as leis instrumentalizam a melhor forma de proteção dos direitos dos índios, mas esses direitos antecedem a própria Constituição. 5 de Outubro de 1988 não é marco de remoção de direitos dos índios, mas de consolidação, renovação, reiteração.
A responsabilidade de proteger é a terceira dimensão das obrigações de um Estado: reconhecer, respeitar, proteger e implementar.
Quais são os deveres internacionais do Brasil frente ao princípio de responsabilidade de proteger? E como uma decisão contrária ao indigenato com Repercussão Geral pode configurar como um fator de risco?
A responsabilidade de proteger é a terceira dimensão das obrigações de um Estado: reconhecer, respeitar, proteger e implementar.
O Brasil, para proteger, precisa ter agências e órgãos estruturados, com pessoal, recursos financeiros e técnicos, e capacidade de atuação para impedir que terceiros violem direitos dos índios.
Há, ainda, proibição de retrocesso. Uma decisão governamental contrária ao indigenato – aos direitos dos índios às terras de ocupação tradicional – evidenciaria não reconhecimento de direitos, configuraria forma agravada de desrespeito aos direitos dos índios, e serviria de incentivo à violação por terceiros.
As consequências para os índios e para o Estado brasileiro são tão sérias e graves que há uma confiança na integridade das instituições e no papel do Supremo Tribunal Federal, de guardião da Constituição, que não permitirá que se chegue a tal nível de violação.
Qual a análise do senhor a respeito da manifestação da APIB de que o STF se tornou o único espaço onde os povos indígenas podem conseguir um tratamento adequado aos seus direitos entre os Três Poderes da República?
O Supremo Tribunal Federal é guardião da Constituição, e guardião dos direitos dos índios. Uma democracia é qualificada não apenas pelo respeito à vontade da maioria, mas igualmente, e essencialmente, pelo respeito aos direitos fundamentais das minorias. O Supremo tem um conjunto de decisões que confere reconhecimento e respeito aos direitos dos índios, e, portanto, autoriza essa confiança da APIB na mais alta corte do país.
Por outro lado, tem sido possível perceber mudanças no Parlamento, e também ali os índios têm vozes que defendem seus direitos, e se levantam contra abusos e violações. Numa democracia, o Parlamento é o seu pulmão. Deve ser defendido e fortalecido, assim como se deve defender e fortalecer o papel da Suprema Corte.
Repasso ao senhor perguntas que os indígenas têm feito: que órgão demarcará as terras indígenas? Quem publicará os relatórios? Como fica o Decreto 1775? Ele ainda vale? De quem os indígenas devem cobrar a regularização de suas terras?
O presidente da República, com a MP 870, trouxe para si toda a responsabilidade da demarcação das terras indígenas. As primeiras solicitações podem ser dirigidas ao presidente.
Ainda pela MP 870, o Ministério da Justiça tem o dever de defender e proteger todos os bens da União, e terras indígenas são bens da União. Não demarcá-las nem protegê-las contra ataques de particulares é permitir ilegal privatização da coisa pública, com destruição cultural – e por vezes física – dos seus legítimos titulares. Também ao ministro da Justiça podem os índios dirigir-se.
De igual modo, àqueles novos atores, aos quais a MP tornou responsáveis pela demarcação, nomeadamente a quem estiver à frente do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. Finalmente, à Funai. Não importa onde esteja e como esteja, a Funai traz em si uma história tão extraordinária de afirmação e defesa da causa indígena que deve ser resgatada a seu protagonismo de sempre, vencendo as limitações que ocasionalmente lhe estão sendo impostas.
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“5 de Outubro de 1988 não é marco de remoção de direitos dos índios, mas de consolidação”, diz vice-procurador na ONU - Instituto Humanitas Unisinos - IHU