16 Abril 2020
"O Brasil é o país que menos tem aplicado testes para detectar a presença do COVID-19, o que equivale a estarmos no meio de uma pandemia, sem avistar qualquer luz no fim do túnel. Estamos no escuro. O desgoverno brasileiro está lavando as mãos, como Pilatos, e entrará para a história como cúmplice da morte de milhares de pessoas." escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
O balanço do Ministério da Saúde do dia 14 de abril de 2020 sobre a COVID-19 no Brasil apontou que o país agora tem mais de 23 mil casos confirmados da doença, mais de 1.300 mortes, sendo 26% dos mortos fora do grupo de risco, 25% com idade abaixo de 60 anos e, pior, com taxa de letalidade bem maior do que a média registrada em outros países. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou que ainda não há comprovação científica sobre se ficará imunizado quem contraiu o novo coronavírus e sobreviveu. Ademais, no Brasil, a falta de testes para constatar se as pessoas estão com a doença COVID-19 é criminosa.
Considerando que o crescimento do contágio comunitário pelo novo coronavírus acontece, não apenas em progressão aritmética (1, 2, 4, 6, 8, 10 ...), mas em progressão geométrica (1, 2, 4, 8, 16, 32, 64, 128, 256, 512, 1024 ...) ou seja, de forma exponencial, se quisermos salvar vidas, temos que agir rápido, antes que aumente muito o número de pessoas infectadas. Essa ação tem componentes individuais que dependem da nossa adesão e consiste em colocar em prática todas as medidas que evitam o contágio: ficar em casa, em quarentena, lavar as mãos com frequência, usar máscara quando tiver que sair de casa, e também componentes coletivos que, infelizmente, dependem dos poderes públicos nos vários níveis para sua implementação. Se o contágio não for barrado logo no início, se for disseminado, será quase impossível impedir que todas as pessoas sejam infectadas e milhares de nossos irmãos e irmãs perderão a vida, momento em que a espada de dor transpassará o coração de milhões de brasileiros/as.
O Brasil é o país que menos tem aplicado testes para detectar a presença do COVID-19, o que equivale a estarmos no meio de uma pandemia, sem avistar qualquer luz no fim do túnel. Estamos no escuro. O desgoverno brasileiro está lavando as mãos, como Pilatos, e entrará para a história como cúmplice da morte de milhares de pessoas. O Brasil testa apenas 296 pessoas por milhão; os Estados Unidos testam mais de 7 mil por milhão e, a Alemanha, 15 mil pessoas por milhão. Parece que nos bastidores o Ministro da Saúde e o antipresidente estão combinados para enganar o povo. Mandetta diz para se fazer ‘isolamento social’ – isolamento físico, sim; social, não! - e o antipresidente desdenha das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Será essa tática para no futuro o desgoverno federal tirar o corpo fora das responsabilidades sobre os milhares de vidas que serão ceifadas? O Ministro da Saúde se reduz a ser um conselheiro do povo, a ficar orientando: ‘Fique em casa, senão no futuro vocês se arrependerão.’ Caso ele fosse sério e responsável, estaria anunciando providências para construir estruturas e equipamentos necessários, com pessoal capaz, para salvaguardar todas as pessoas em caso de doença. Cadê o cancelamento da PEC[2] 95 que cortou por 20 anos os investimentos em saúde? Cadê a ampliação do SUS? Cadê pelo menos 50 milhões de testes para pelo menos 25% da população? Cadê a produção e compra de respiradores artificiais em número necessário para não deixar os hospitais entrarem em colapso? A falta de respiradores é um dos tendões de Aquiles no enfrentamento da pandemia. Cadê compromisso do desgoverno federal com a distribuição de recursos para sustentar todas as pessoas em tempo de pandemia? Só R$600,00 é migalha e, ainda com o efeito colateral de causar aglomeração nas filas em agências da CEF[2] e da Receita Federal para a atualização de CPFs. Cadê aprovação no Congresso Nacional de medidas para obrigar os banqueiros a bancar o custo da pandemia? Cadê a paralisação no pagamento de juros e amortização da dívida pública que está sugando mais de 38% do orçamento do Brasil?
O antipresidente brasileiro, que me nego a citar o nome, lança sempre uma cortina de fumaça como uma tática para ocultar as piores ações ou omissões do seu desgoverno, pois coloca parte da imprensa e do povo para ficar discutindo idiotices intermináveis e, pior, com isso não se discutem questões centrais e imprescindíveis tais como: repasse de mais de 38% do orçamento nacional para pagar juros e amortizações da dívida pública, a devastação ambiental, o envenenamento dos alimentos pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, a latifundiarização do país, a desigualdade social crescente e absurda, a falta de moradia adequada para milhões de brasileiros, o racismo, a homofobia, o feminicídio etc. A jornalista Eliane Brum desmascara esta tática macabra do antipresidente: “Cada vez que se comporta como um maníaco, faz figuras – da política profissional - que até ontem causariam arrepios despontarem como estadistas.”
Grande parte dos milhares de mortos pela pandemia do novo coronavírus terão no seu atestado de óbito “causa mortis: pneumonia ...”, um número menor “causa mortis: COVID-19 por coronavírus”, mas, na realidade, deveria ter “causa mortis: sucateamento e aniquilamento do SUS pela PEC-95, 38% do orçamento do país sequestrado para pagar juros e amortização da famigerada dívida pública, ausência de políticas públicas que garantam acesso à terra, a moradia adequada e ao saneamento básico para todos/as.”
E se os governos de outros países do mundo não tivessem, mesmo com atraso, tomado as medidas orientadas pela OMS para enfrentar a pandemia do novo coronavírus? Morreriam quantos por cento da população mundial, que é 7,7 bilhões de pessoas? Os governos não estão se vergando à implementação de medidas para barrar ou pelo menos diminuir o contágio comunitário do novo coronavírus porque são defensores da vida, mas porque se a maioria dos trabalhadores morrerem, não terão mão de obra barata para trabalhar e produzir para eles.
Bruno Latour assim define a lição posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”[3].
Como crescer infinitamente em um planeta finito? Como é possível tornar sustentável o que, em sua estrutura, é insustentável? Os arautos do capitalismo estão mudos diante dessas perguntas, não têm argumentos sensatos. É óbvio que enquanto houver capitalismo, haverá novos colonialismos, a reprodução do patriarcado e, pior, estaremos correndo, em meio à barbárie, rumo à extinção da espécie humana, pois estará sendo construída a escandalosa concentração de riqueza e poder, uma extrema desigualdade social, a destruição das condições objetivas de vida no planeta Terra e a fatal e iminente catástrofe ecológica final.
A humanidade encontra-se em uma encruzilhada decisiva, provavelmente a última: ou mudamos nossa forma de nos relacionar com a natureza e entre nós desenvolvendo plenamente nossa humanidade, agindo com base na solidariedade e na preservação da vida em todas as suas formas ou seremos extintos do planeta Terra. Como um grande ser vivo, Gaia, o planeta Terra está submetido a queimaduras muito graves. O cerrado, a caatinga, a mata atlântica, o pantanal, a Amazônia e os pampas são os biomas brasileiros que constituem a pele da mãe Terra, mas, covardemente, estão sendo devastados impiedosamente.
Eliane Brum recorda uma estratégia básica da elite dominante: “Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo. [...] O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”[4]. Se voltarmos à normalidade anormal, criada para manter os interesses do capital, “o mundo pós-coronavírus será ainda mais brutal e o colapso climático se aprofundará”, nos alerta Brum. Noam Chomsky nos dá uma dica vital: “Para aqueles preocupados em reconstruir uma sociedade viável dos destroços que restarão da crise em andamento, é bom atender ao chamado de Vijay Prashad: "Não voltaremos à normalidade, porque o problema era a normalidade"[5]. Foi essa ‘normalidade do caos’ que criou as condições para que o novo coronavírus se alastrasse por todo o planeta.
Não, senhores poderosos, não estamos todos no mesmo barco. A maioria da população é formada pelos/as empobrecidos/as e estes/as estão fora do barco, em meio à tempestade. Essa parcela da população que é mais vulnerável não tem condições de manter o isolamento físico e será exposta a essa gravíssima doença: COVID-19. A desobediência civil é e será cada vez mais um instrumento necessário capaz de desarmar a engrenagem de morte em andamento e reconstruir uma sociedade justa economicamente, solidária socialmente, plural culturalmente, sustentável ecologicamente, sem machismo, sem racismo, com vida e liberdade para todos/as[6]
Obs.: Os vídeos abaixo ilustram o assunto tratado acima.
Notas
[1] Proposta de Emenda à Constituição aprovada no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente.
[2] Caixa Econômica Federal.
[3] Cf. Texto citado por Eliane Brum no artigo “O futuro pós-coronavírus já está em disputa”, para El País.
[4] Cf. Eliane Brum no artigo “O futuro pós-coronavírus já está em disputa”, em El País.
[5] Cf. Chomsky: A escassez de respiradores expõe a crueldade do capitalismo neoliberal.
[6] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.
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