27 Março 2020
"Com a prudência, estamos trabalhando duro. Agora temos que passar para outro nível: pensar, entender, ler o caos e correr o risco de dar a todos alguma certeza: essa é a função dos intelectuais".
As reflexões, em onze pontos, são de Alessandro Baricco, escritor, diretor e intérprete italiano. Autor de Game, seus romances foram traduzidos para vários idiomas. O artigo foi publicado por La Repubblica, 25-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Provavelmente já devo tê-lo contado, mas é hora de repeti-lo. Vem de um belo romance sueco. Tem a rainha que decide aprender a andar a cavalo. Sobe na sela. Então pergunta com desdém ao instrutor de equitação se existem regras. E eis o que ele responde: "Primeira regra, prudência. Segunda, audácia".
Bem, eu diria que, com a prudência, estamos trabalhando duro. Podemos passar à audácia. Temos que passar à audácia.
Se você é médico, não sei o que significa ter audácia neste momento, então não ouso fazer sugestões. Mas sei exatamente o que significa ter audácia, neste momento, para os intelectuais: deixar de lado a tristeza e pensar: isso é entender, ler o caos, inventariar os monstros nunca vistos, dar nomes a fenômenos jamais vivenciados, olhar nos olhos de verdades asquerosas e, depois de fazer tudo isso, assumir o risco mortal de garantir a todos um pouco de certeza. Ao trabalho, portanto, cada um na medida de suas possibilidades e de seu talento. Eu não estou particularmente em forma neste momento, mas nada vai me impedir de escrever aqui algumas coisas que eu sei. É o meu trabalho.
O mundo não vai acabar. Tampouco nos encontraremos em uma situação de anarquia em que vai mandar aquele que se sentava no fundo da sala na escola primária, não entendia nada, mas era grande e gostava de bater em você. Acorde, aquilo é ficção. Vamos voltar para nós. E nós - nós humanos - somos uma espécie de tremenda paciência, inteligência e força: somos pessoas que conseguiram converter a criação em seu próprio parque de diversões, graças a uma das operações mais violentas e cínicas que se possa imaginar; não só, também estamos cientes disso: demos um nome aos despojos de tal pilhagem, antropoceno, e chegamos a ter tanta certeza de nós mesmos que começamos a pensar recentemente em devolver a parte da criação alguma liberdade. Nós somos isso. Desde sempre lutamos contra os vírus. Eles muitas vezes nos colocaram de joelhos. Acontece, porém, que nessa posição desconfortável nos tornamos ainda mais pacientes, teimosos e espertos.
Estamos fazendo as pazes com o Game, com a civilização digital: nós a fundamos, depois começamos a odiá-la e agora estamos fazendo as pazes com ela. As pessoas, em todos os níveis, estão amadurecendo um senso de confiança, costume e gratidão pelas ferramentas digitais que se depositará no sentir comum e nunca desaparecerá. Uma das principais utopias da revolução digital era que as ferramentas digitais se tornariam uma extensão quase biológica de nossos corpos e não próteses artificiais que limitariam nosso ser humanos: a utopia está se tornando praxe cotidiana. Em poucas semanas, cobriremos um atraso que estávamos acumulando devido a um excesso de nostalgia, temor, suspeita ou simples arrogância intelectual. Encontraremos em nossas mãos uma civilização amigável que estaremos mais aptos a corrigir, porque faremos isso sem ressentimento.
Todo mundo notou o quanto sente falta dos relacionamentos humanos, não digitais, nestes dias. Vamos inverter essa certeza: significa que tínhamos muitas relações humanas. Enquanto dizíamos coisas como "a nossa vida agora só funciona através dos dispositivos digitais", o que estávamos fazendo era juntar uma quantidade indescritível de relações humanas. Percebemos isso agora, e é como um despertar de um pequeno lapso de inteligência. Não esqueçam a lição, por favor. Aliás, acrescentem outra: tudo isso está nos ensinando que quanto mais deixarmos a civilização digital se desenrolar, mais assumirá valor, beleza, importância e até valor econômico tudo o que nos mantém humanos: corpos, vozes naturais, sujeiras físicas, imperfeições, habilidades manuais, contatos, esforços, proximidades, carinhos, temperaturas, risadas e lágrimas reais, palavras não escritas, e eu podia continuar por linha e linhas. O humanismo se tornará a nossa praxe cotidiana e a única verdadeira riqueza: não será uma disciplina de estudos, será um espaço do fazer que nunca nos deixaremos roubar. Vejam a fúria com que o desejamos agora que um vírus o tomou por refém, e qualquer dúvida passará.
Uma rachadura que parecia ter se aberto como um abismo, e que estava nos fazendo sofrer, fechou-se em uma semana: a que separava as pessoas das elites. Em poucos dias, as pessoas se alinharam, ao preço de sacrifícios inimagináveis e basicamente com grande disciplina, às indicações dadas por uma classe política na qual não se apostava nenhuma confiança e em uma classe de médicos que até o dia anterior mal podia mostrar alguma verdadeira autoridade mesmo nas questões mais banais, como a das vacinas. Uma classe dominante que nunca teria sido capaz de fazer a reforma de uma escola conseguiu trancar em casa um país inteiro. O que diabos aconteceu? Medo, se dirá: e está certo. Mas não é só isso. Há algo mais, algo que nos ajuda a nos entendermos melhor: apesar das aparências, acreditamos na inteligência e competência, queremos alguém capaz de nos guiar, somos capazes de mudar nossa vida com base nas indicações de alguém que sabe mais que nós. Nossa revolta contra as elites está temporariamente suspensa, mas isso pode nos ajudar a entendê-las melhor: acreditamos na inteligência, mas não mais naquela dos pais; queremos a competência, mas não aquela novecentista; precisamos de alguém que decida por nós, mas imaginamos que não venha de uma casta enfatuada por si mesma, cansada e incapaz de se regenerar. Resumindo. Queríamos uma nova classe dominante, continuamos a querer: podemos esperar, agora não é hora de criar o caos. Mas começaremos a querê-la no mesmo dia em que essa emergência for superada.
É provável que a emergência da Covid-19 acabe se revelando uma virada histórica de imensa importância. Vou tentar explicar desta maneira: é a primeira emergência planetária gerada pela era do Game, da revolução digital, e a última emergência planetária que será gerida por uma elite e uma inteligência de tipo novecentista. Vocês veem a virada? Vocês veem a contradição? Vocês entendem por que neste momento entendemos pouco, nos esforçamos muito, nos desorientamos facilmente? Eles nos desafiaram com um videogame e nós enviamos jogadores de xadrez para lutar. Estamos justamente nos equilibrando entre um mundo e outro. É uma posição muito incômoda. Vocês precisam entender que, mesmo sem um smartphone, oitenta por cento do que veem acontecer ao seu redor não teria acontecido (fluxo de informações, construção de storytelling, marés de medo que vêm e vão, sobrevivência em situação de isolamento quase total, velocidade de decisões ....): e, no entanto, a gestão de tudo isso está nas mãos, inevitavelmente, de uma racionalidade novecentista.
Vou mostrar um caso prático, para nos entendermos. O século XX tinha o culto do especialista. Um homem que, após uma vida inteira de estudo, sabe muito sobre uma coisa.
A inteligência do Game é diferente: uma vez que sabe que precisa lidar com uma realidade muito fluida e complexa, privilegia outro tipo de sábio: aquele que sabe o suficiente sobre tudo. Ou faz com que trabalhem juntas diferentes competências. Ele nunca deixaria médicos sozinhos ditar a linha de resposta a uma emergência médica: imediatamente colocaria ao seu lado um matemático, um engenheiro, um comerciante, um psicólogo e tudo o que parecesse oportuno. Até um palhaço, se necessário. Provavelmente agiriam com um único imperativo: velocidade. E com uma metodologia singular: cometer erros rápido, parar nunca, tentar de tudo. Atualmente, no entanto, nosso proceder segue outros caminhos. Somos guiados, da melhor maneira possível, por uma elite que, por preparação e pertencimento geracional, utiliza a tecnologia digital, mas não a racionalidade digital. Certamente não podemos culpá-la. Mas este é o momento de entender que, se muito do que vos rodeia hoje de manhã lhes parece absurdo, uma das razões é essa. Grandes mestres do xadrez que jogam Fortnite (vencerão, mas vocês entendem que o estilo de jogo às vezes vos parecerá surreal).
Fique em casa, pelo amor de Deus. Tenho que repetir? Ok, repito.
Fique em casa, pelo amor de Deus. Com tudo o que há para ler ...
A emergência da Covid-19 transformou em uma evidência solar um fenômeno que nós vagamente intuíamos, mas nem sempre aceitávamos: há tempo, quem dita a agenda dos seres humanos é o medo. Precisamos de uma cota diária de medo para entrar em ação. Agora, o vírus cobre todas as nossas necessidades e, de fato, quem ainda tem medo dos imigrantes, do terrorismo, de Salvini, dos efeitos dos videogames nas crianças ou do glúten? Mas apenas vinte dias atrás, tínhamos uma grande necessidade desses medos. Nós os cultivávamos como orquídeas. Em alguns momentos de carestia, nos contentamos com uma emergência climática ou uma possível crise do governo (que raro!). Por enquanto sabemos jogar apenas com as peças pretas: se o medo não se move primeiro, nós não temos estratégia. Em vez disso, eu queria lembrar - e fazê-lo justamente agora - que estamos vivos para realizar ideias, construir um paraíso, melhorar nossos gestos, entender algo mais todos os dias e concluir, com um certo gosto, talvez, a criação. O que o medo tem a ver com isso? Nossa agenda deveria ser ditada pela vontade, não pelo medo. Pelos desejos. Pelas visões, santo céu, não pelos pesadelos.
(Essa é delicada. Evite desperdiçar tempo). Atualmente, ninguém deixa de perceber a dúvida sobre uma certa desproporção entre o risco real e as medidas para lidar com ele. Eles podem nos explicar como quiserem, mas o sentimento permanece: uma certa desproporção. Não quero fazer comparações que me levem a comparar as mortes de Covid-19 com aquelas causadas pelo diabetes ou pelos escorregões provocados por pisos encerados. Mas fica a dúvida de que em algum lugar estamos pagando por uma certa incapacidade de encontrar uma proporção áurea entre a extensão do risco e a extensão das contramedidas. Em parte, certamente podemos colocar isso na conta daquela inteligência, aquela novecentista, suas lógicas, sua falta de flexibilidade, sua adoração por especialismos.
No entanto, o assunto não termina aí. Se eu tentar olhar para essa desproporção que tanto nos incomoda e questiona, no final, encontro algo que agora é difícil de dizer, mas como eu disse é o momento da audácia, é preciso dizer. Existe uma inércia coletiva, dentro dessa aparente desproporção, um sentimento coletivo que todos contribuímos a construir: temos medo demais de morrer. É como se o direito à saúde (uma conquista fantástica) tivesse se engessado em um direito impossível por uma vida perene, que, aliás, ninguém pode garantir. Agora, a relação com a morte, e com o medo da morte, é antes de tudo uma coisa individual, uma questão que cada uma gerencia por si próprio (por exemplo, me arranjo muito mal).
Mas, em segundo lugar, o medo da morte também é um sentimento coletivo de que as comunidades humanas sempre tiveram o cuidado de construir, aparar, corrigir e controlar. Por exemplo, a civilização do meu avô, que ainda precisava de guerras para se manter viva, tinha o cuidado de manter uma certa "capacidade de morte". Somos uma civilização que escolheu a paz (em princípio) e, portanto, paramos de cultivar o hábito coletivo de pensar na morte. Como comunidade, a combatemos, mas não a pensamos.
Em vez disso, a maravilha de uma civilização da paz seria justamente poder pensar na morte novamente e aceitá-la, não com coragem, com sabedoria; não como uma ofensa indescritível, mas como um movimento de nossa respiração, uma simples inflexão de nosso movimento, talvez a crista de uma onda que somos e que nunca deixaremos de ser. Não é que um indivíduo sozinho possa frequentemente chegar a certa leveza de sentimento: mas uma comunidade sim, pode fazê-lo.
No passado, as comunidades conseguiam levar milhões de seus filhos a morrer por um ideal, belo ou aberrante, porque uma comunidade não deveria ser capaz de levar todos os seus filhos a entender que a primeira maneira de morrer é ter muito medo de fazer isso?
Muitos se perguntam o que acontecerá a seguir. Uma coisa possível, eu tenho que registrar, é que não haverá um depois. Não no sentido de que todos morreremos, não, claro que não, eu já disse isso. Mas neste sentido: estamos percebendo que somente nas situações de emergência o sistema volta a funcionar bem. O pacto entre as pessoas e as elites é fortalecido, uma certa disciplina social é restabelecida, cada indivíduo se sente responsável, se forma uma solidariedade generalizada, o nível de animosidade cai, etc., etc.
Em suma, por mais absurdo que possa parecer, o carro para de soltar peças quando passa dos duzentos quilômetros por hora. Portanto, é possível que optemos, de fato, por não ficar mais abaixo dessa velocidade: a emergência como cenário crônico de todo o nosso futuro. Nesse sentido, o caso Covid-19 tem todo a cara de ser o grande ensaio geral para o próximo nível do jogo, a missão final: salvar o planeta.
A emergência total, crônica, extremamente longa, na qual tudo funcionará novamente. Não posso dizer francamente se é um cenário almejável, mas não posso negar que tenha alguma racionalidade. Também é bastante coerente com a inteligência do Game, que continua sendo uma inteligência vagamente tóxica, que precisa de estímulos repetidos e intensos, que dá o melhor em um clima de desafio e que, afinal, foi inventada por problem solver, não por poetas.
Última. Não sei, mas é preciso pouco para entender que o que está nos acontecendo vai nos custar muito dinheiro. Muito pior do que a crise econômica de 2009, posso chutar. Gostaria de dizer uma coisa: será uma enorme oportunidade, histórica. Se existe um momento em que será possível redistribuir a riqueza e trazer as desigualdades sociais de volta a um nível suportável e digno, aquele momento está chegando. Nos níveis de desigualdade social que estamos testemunhando atualmente, nenhuma comunidade é uma comunidade: ela finge ser, mas não é. É um problema que mina na base a saúde do nosso sistema, que desengana qualquer hipotética felicidade que possamos ter e devora toda a nossa credibilidade, como um câncer. A dificuldade é que certas coisas não se reformam, não são obtidas com uma melhora gradual, farmacêutica, não melhoram um pouco por dia, em pequenas doses. Algumas coisas mudam com um violento movimento de torção, que dói e que você não achava que poderia fazer. Algumas coisas mudam por um choque bem administrado, para alguma crise convertida em renascimento, para um terremoto vivido sem tremer. O choque chegou, estamos sofrendo a crise, o terremoto ainda não passou. As peças estão todas ali, sobre o tabuleiro, todas podem causar dor, mas estão ali: há um jogo que nos espera há muito tempo. Que absurdo imperdoável seria ter medo de jogá-lo.
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Vírus, chegou o momento da audácia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU