13 Fevereiro 2020
O que é felicidade? Possivelmente, essa é uma das perguntas mais repetidas ao longo dos séculos. Para Emanuele Felice (Lanciano, Itália - 1977), trata-se de uma questão fundamental, que contribuiu para o devir histórico de diferentes sociedades, especialmente a partir do momento em que o homo sapiens abandonou definitivamente sua vida de caçador-coletor e se estabeleceu em sociedades agrícolas e pecuárias.
Buscando aprofundar o assunto, Felice escreveu Historia económica de la felicidad (Editora Crítica), um extenso ensaio onde não apenas abordou o progresso econômico e tecnológico do homem, mas também a relação que tal evolução sempre teve com o desenvolvimento ético e cultural das sociedades, juntamente com a própria ideia de felicidade que imperava em cada uma delas.
A entrevista é de Luis H. Goldáraz, publicada por Libertad Digital, 12-02-2020. A tradução é do Cepat.
O homo sapiens é um animal feliz?
(Risos). Bem. O homo sapiens é o animal que teve que comer o problema da felicidade. Ou seja, é o único que elaborou essa ideia. Um conceito imaginário que outros não têm. Um ideal. E, de fato, o ideal concreto que tem, em cada momento, de como ser feliz condiciona sua vida. Os demais animais não possuem o pensamento simbólico que permite elaborar esses conceitos. Mas, por outro lado, acredito que a aspiração humana à felicidade, como se fosse uma obrigação coletiva, é uma utopia. Outra coisa é que reconheçamos o nosso direito de sermos felizes.
O que é felicidade?
O objetivo do livro é justamente responder a essa pergunta. Eu queria colocar o conceito de felicidade fora de estereótipos estendidos, e colocá-lo em uma relação exclusiva com a história do desenvolvimento econômico da humanidade. Ou seja: a conquista da noção de felicidade como um direito, como uma possibilidade de realização. Isso é a felicidade. Nesse sentido, o desenvolvimento econômico é um fator que pode ou não nos dar essa possibilidade. E não me refiro a uma mera possibilidade material, mas também cultural. Porque o desenvolvimento econômico foi o que nos deu a oportunidade de sermos livres, por exemplo, quando antes não éramos. As principais mudanças sociais, também éticas, foram uma consequência, em parte e também causa, desse desenvolvimento. O certo é que, sem esse desenvolvimento, não poderia ter se materializado. O livro analisa essa relação.
No livro, se intui uma lacuna entre o entendimento da felicidade como uma questão do indivíduo ou como uma questão coletiva.
Sim. Aqui, seria necessário fazer duas diferenciações. A felicidade é individual. E, de fato, quando o homem buscou uma felicidade coletiva, como no caso do nacional-socialismo ou do comunismo, ou de diversos movimentos religiosos ao longo da história, acabou protagonizando distopias terríveis. Nesse sentido, meu livro se posiciona claramente dentro do marco do humanismo liberal, que entende que a felicidade é principalmente uma questão do indivíduo.
No entanto, também é preciso ser consciente de que se trata de uma coisa que raramente se obtém vivendo sozinho. A felicidade tem um componente fundamental baseado nas relações humanas. Então, dizer que a felicidade é uma questão de cada indivíduo não quer dizer que seja uma questão individualista ou egoísta. Por isso é tão importante o discurso sobre os direitos humanos. Se a felicidade fosse apenas um prazer individual, já teríamos resolvido o problema. Todo aquele que quisesse poderia tomar um comprimido e pronto. O que acontece é que não é tão simples. Acredito que é necessário buscar um equilíbrio, e que essa é uma tarefa que corresponde a cada pessoa.
Mas é realmente necessário o desenvolvimento econômico na felicidade individual? É verdade que traz melhorias e bem-estar, mas mesmo assim, o homem continua sempre parecendo insatisfeito. Não se pode ser feliz independentemente das circunstâncias econômicas ou históricas?
Sim, isso está claro. A felicidade é como um horizonte que se afasta toda vez que o homem tenta se aproximar. Mas também existem coisas mais concretas. Hoje, o ocidente vive com melhoras materiais evidentes em relação aos séculos passados, mas viu as desigualdades aumentarem, o que levou a um aumento geral da infelicidade. Existem estudos que apontam para o aumento do número de mortes “por desespero” - isto é, suicídios, mas também mortes relacionadas ao alcoolismo e o abuso de drogas - em países tão desenvolvidos como os Estados Unidos. E essas repercussões estão relacionadas à ideia de felicidade que impera nas sociedades ocidentais atualmente.
Olha, eu neste livro sou crítico a essa visão neoliberal, mesmo que eu me encontre dentro do marco do humanismo liberal. E também sou crítico à sua visão de felicidade. Você pensa em Dubai e como lá se autodenominam como a cidade mais feliz do mundo, mesmo que não defendam os direitos humanos. É uma visão consumista de felicidade, na qual a única coisa que conta na vida é o enriquecimento individual. Lá, no Oriente, essa visão não foi capaz de levar os direitos humanos, e aqui, no ocidente, aumentou as desigualdades, o que gerou um aumento da infelicidade.
É verdade que nunca existe a felicidade perfeita, mas também é verdade que quando uma sociedade avança em termos marcadamente desiguais, surgem problemas. É necessário que exista o direito de ser feliz, mas se alguém vive em uma sociedade em que prevalece a ideia de que a felicidade está relacionada à renda individual, mas que na qual, ao mesmo tempo, o elevador social não funciona como deveria, porque existe obstáculos para poder prosperar com o esforço próprio, como se pode aspirar a ser feliz?
Mas somos tão determinados pela cultura? O indivíduo não pode conquistar uma série de noções próprias sobre felicidade, longe do que impera em sua sociedade, que lhe permita conceber uma vida mais ou menos plena, apesar de suas circunstâncias?
O que acontece é que isso é apenas aparente, porque tudo está relacionado. Se não houvesse um desenvolvimento econômico e cultural, jamais haveria desaparecido a escravatura no Ocidente, por exemplo. Se não tivesse havido o barco a vapor, necessitaríamos de pessoas para remar. Se quer comer, precisa viver ancorado ao trabalho no campo. Caso contrário, sempre pode ficar quieto e morrer de fome.
O avanço tecnológico é fundamental para o bem-estar. Mas outra coisa que temos que entender é que para alcançar a felicidade, não conta apenas o bem-estar material, embora seja verdade que é um fator de influência. O que acontece é que também é necessário o desenvolvimento de liberdades políticas e relações humanas. E tudo isso deve acontecer de forma conjunta.
O problema hoje em dia é que existem duas maneiras de entender a felicidade: aqueles que pensam que a única coisa que conta é o crescimento econômico, e aqueles que pensam que isso é apenas parte de uma visão do ser humano mais ampla. Esse é o grande desafio que existe hoje dentro da estrutura capitalista: aqueles que defendem um capitalismo autoritário - a distopia neoliberal e anarcocapitalista - e aqueles que atribuem uma importância necessária aos direitos humanos.
Por fim, meu livro é uma análise histórica, mas chegando na atualidade se encontra justamente com essa encruzilhada: o problema da necessidade de governar o desenvolvimento econômico com base nos direitos humanos, entre os quais se inclui o direito de cada indivíduo de buscar sua própria felicidade.
No livro, você classifica as diferentes “distopias” históricas que concebem a felicidade como algo coletivo. Coloca o nacional-socialismo como um exemplo de distopia expansiva e o comunismo como um exemplo de distopia humanitária. Também menciona a distopia neoliberal. Na sua revisão histórica, aponta o grande fracasso de todos elas quando se trata de garantir os direitos humanos. Centrando-se nas duas primeiras, que explicação confere ao fato de que as utopias humanitárias ainda tenham uma boa recepção em certos setores da população?
Nota para o leitor: A diferenciação que Felice faz entre distopias humanitárias e expansivas se refere a uma maneira de entender o próprio desenvolvimento histórico da humanidade. As expansivas, como o nacional-socialismo, estão imbuídas de um certo darwinismo e bebem da noção do “super-homem” nietzschiana. Consideram que existem algumas raças superiores às outras e concebem a felicidade humana como o momento futuro em que a raça superior, o super-homem, dominará a terra. Com essas premissas, consideram necessário o extermínio das raças inferiores e a expansão territorial da raça superior.
As humanitárias, como o comunismo, por outro lado, consideram todos os homens iguais e estão centradas em exterminar as desigualdades. No entanto, em sua concepção coletiva da humanidade, acabam renunciando à individualidade das pessoas e negando a liberdade em favor de uma igualdade utópica que, de fato, nunca chega a se materializar. Ambas as visões terminam, na prática, afastando-se dos direitos humanos, subtraindo valor da vida humana e justificando genocídios, assassinatos e repressões.
Sim, é possível que você tenha razão. Mas acredito que vê dessa maneira porque é europeu, e o nacional-socialismo aconteceu muito mais perto de onde vive agora, portanto, percebe com mais nitidez sua crítica que a crítica ao comunismo. O comunismo cometeu crimes enormes, mas principalmente na Rússia, na China e no Camboja. Em outros países também, embora talvez não tão enormes. O que quero dizer é que os crimes do comunismo, comparáveis aos do nacional-socialismo, estão menos dentro do nosso mundo. Se perguntar a um ucraniano, no entanto, perceberá muito mais o medo do comunismo.
Claro, mas eu me referia à outra coisa. Hoje em dia, com a cultura predominante no ocidente, não é mais fácil que as pessoas aceitem antes a visão distópica humanitária do que a expansiva?
Sim, eu entendo você, sim. Em certo sentido, sim. Porque o conceito de felicidade do comunismo é conciliável com a visão cristã. Pode ser vendido como uma forma de defender os pobres e os despossuídos. A do nacional-socialismo não. É outra coisa, distinta. Então, sim, em certo sentido, devido à profunda cultura de onde viemos, que é de raízes cristãs, uma visão humanitária distópica pode ser mais facilmente aceitável do que uma expansiva. Pode parecer menos grave, talvez. Mas, francamente, eu não sei. Não estou seguro. Pode ser.
Sobre esta questão, acredito que não podemos ignorar nosso próprio viés quando se trata de perceber a realidade. E é fato que os crimes do nacional-socialismo ocorreram muito mais perto de nós, no coração da Europa, enquanto os do comunismo aconteceram na Sibéria e na China, chegaram menos até nós. Também houve crimes comparáveis motivados pela visão distópica neoliberal, mas igualmente distantes de nós. Quem fala sobre o extermínio que os belgas praticaram no Congo, por exemplo? O mesmo acontece com o comunismo: seus crimes estão muito distantes.
Falando em distopia neoliberal, até que ponto ainda não somos conscientes dela e dos riscos que isso acarreta?
O problema dessa visão é que, ao priorizar apenas o desenvolvimento econômico, acaba desmerecendo outras questões igualmente importantes para o bem-estar dos indivíduos. Falo, por exemplo, do meio ambiente e dos próprios direitos humanos. É um problema muito sério. A verdadeira encruzilhada dessa distopia é o que mencionamos há pouco: o fato de que tornem o desenvolvimento econômico e tecnológico absolutos, mas deixam de lado os direitos humanos. Em última instância, essa visão distópica pode acarretar consequências nefastas para a sobrevivência da humanidade.
O que acontece é que, por outro lado, o debate sobre todas essas distopias, também as expansivas e as humanitárias, é mais complexo. Reconheço isso no livro: os próprios direitos humanos não deixam de ser uma invenção. Não existem necessariamente. Não nascemos com direitos, mas os inventamos porque nos ajudam a viver juntos, buscando uma certa prosperidade e paz com base na tolerância. Ao final, porém, são ideias tão inventadas quanto as noções sobre a felicidade baseadas em raça, igualdade e enriquecimento pessoal.
Eu, da minha parte, penso que a invenção dos direitos humanos nos ajudou, efetivamente, a viver melhor e a resolver nossos problemas. E é por isso que acho que é mais desejável do que as outras invenções sobre a felicidade humana.
No livro, menciona o aumento da desigualdade como uma das fontes de infelicidade no mundo liberal capitalista de hoje. Mas é realmente possível erradicá-la? Não é uma fonte de infelicidade precisamente ter obsessão por essa impossibilidade?
Não, não é possível erradicá-la, é claro. E essa é a utopia humanitária de que estávamos falando. Por isso sou tão crítico ao comunismo. É óbvio que sempre haverá um componente de desigualdade. O importante é criar um mundo em que essas desigualdades que sempre existirão não impeçam as pessoas de se realizar. Essa é uma das questões centrais do pensamento liberal. Desde a sua criação.
Contudo, acho que agora o pensamento liberal se desvia um pouco desse problema. Por exemplo, entre os primeiros liberais, muitos criticaram a desigualdade que a renda poderia gerar. A posse de terras hereditárias. Defendiam, por exemplo, os impostos sobre as heranças, a fim de garantir o financiamento de serviços básicos para os mais desfavorecidos. Nesse sentido, existe um espírito liberal que acredita que os excessos da desigualdade podem sufocar o crescimento econômico e a realização pessoal. É algo que o pensamento liberal não deveria deixar de lado.
Outra crítica ao capitalismo neoliberal que se exprime em nossos tempos é a da insatisfação: o círculo vicioso pelo qual as pessoas estão continuamente criando necessidades que tão logo não somos capazes de saciar.
Concordo com essa crítica, em termos gerais. Mas é uma questão complexa. Muitos dos que a exprimem, defendem depois superar o capitalismo. Eu não tenho isso tão claro. Acredito que o direito à liberdade de empresa e à liberdade econômica deve ser um dos direitos humanos fundamentais. Por fim, é a política democrática que deve se encarregar de complementar esses diferentes direitos. Ou seja, eu não defendo a superação do capitalismo, defendo governá-lo. Mas, em termos da história da humanidade, o paradoxo da felicidade consumista é um problema, sem dúvida.
E não apenas do ponto de vista do consumidor. Também gera insatisfação por não responder às próprias expectativas e por não se sentir reconhecido socialmente. Questões mais ideais que materiais.
Certo, certo. A felicidade humana tem uma dimensão relacional. No livro, falo sobre a curva “u” invertida. Tem a ver com isso. Por fim, o tempo é o que é, e uma pessoa que vive exclusivamente focada no trabalho pode acabar sem relações sociais, por exemplo, e colher exatamente o oposto do que esperava. Também pode chegar a se sentir realizada, não nego. O que acontece é que não há uma fórmula matemática da felicidade. O importante é garantir o direito das pessoas em buscar sua própria felicidade. Tem que haver a possibilidade de escolher como vivemos nossa vida. Ter facilidades para mudar, ao longo de nossa existência. É isso o que eu digo.
Para finalizar. Após a revisão histórica que faz no ensaio, e vendo o processo de evolução tecnológica sem precedentes em que estamos agora, para onde estamos indo?
(Risos). Hoje, temos grandes oportunidades graças ao desenvolvimento econômico. A inteligência artificial, por exemplo. Estamos desenvolvendo coisas de enorme potencial para o futuro. Mas, se esquecermos que os direitos humanos precisam ser garantidos e protegidos o tempo todo, podemos chegar a um mundo onde a liberdade individual se perca. Não sei.
Nesse momento, há mais facilidade para controlar as pessoas, e inclusive seria possível criar desigualdades geneticamente. Pode ser assustador o mundo que virá, se esquecermos os direitos fundamentais de cada pessoa. Embora tampouco é necessário ser pessimista. Eu acredito, e digo isso no livro, que a evolução econômica, que foi enorme, também melhorou a dimensão ética do ser humano. Ou seja, hoje apreciamos mais a vida humana. Também a dos animais. E do meio ambiente.
Ao contrário do que se acredita, hoje temos uma sensibilidade mais desenvolvida justamente porque temos uma vida mais aprazível. Não estamos tão acostumados ao sofrimento das pessoas ou dos animais e, por isso, podemos apreciar mais. Mas é claro que a evolução ética é lenta, ao passo que a evolução tecnológica é cada vez mais vertiginosa. Por isso, existe o risco de um abismo ser gerado entre uma e outra. E acredito que o significado da política democrática liberal deve se encaminhar para buscar unir essas duas dimensões. Tentar fazer com que o progresso tecnológico e econômico não se separe da ética.
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XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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“O grande desafio de nosso tempo é não permitir que o desenvolvimento tecnológico se desligue da ética”. Entrevista com Emanuele Felice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU