15 Julho 2019
"Putin não tem a mínima ideia do que seja o liberalismo. Mas a crise daquela cultura política existe é um problema muito sério: independentemente das declarações de um autocrata”. Jan Zielonka se considera um "liberal desiludido". Nascido em 1955, na Polônia comunista, quando menino sonhava com uma Europa sem muros e sem governos opressivos. "Eu estava convencido de que o ideal de liberdade poderia tornar a vida melhor não apenas para aqueles que viviam atrás da cortina de ferro, mas também nas periferias pobres de Londres, Paris, Madri. Mas não foi assim”. De Ralf Dahrendorf ele herdou em Oxford um ensino da ciência política que leva seu nome. E àquele mestre do liberalismo é dedicada uma longa carta com um título expressivo, Contrarrevolução. A desfeita da Europa liberal, traduzida na Itália pela Laterza.
A entrevista é de Simonetta Fiori, publicada por la Repubblica, 11-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor Zielonka, o manifesto de Putin sobre a morte do liberalismo, marca o ápice daquela contrarrevolução que você relata em seu ensaio: o avanço de forças declaradamente contrárias à ordem liberal.
Sim, poderia ser lido assim. Mas, na realidade, Putin não entende o que significa democracia liberal e, portanto, o que vem a ser os direitos humanos, os mercados abertos, a informação livre. Francamente, ele é a pessoa menos indicada para dar lições sobre o liberalismo. No máximo, eu o interrogaria sobre despotismo e autocracia.
Mas ao negar o valor do liberalismo produz seu manifesto político antidemocrático. Ninguém mais na Europa tinha se atrevido a uma liquidação tão definitiva.
Isso sim, mas o problema do liberalismo existe mesmo sem Putin. E então temos que nos perguntar por que às elites liberais os eleitores prefiram uma outra classe política que permanece inconsistente no plano da proposta estratégica, mas tira força da nossa fraqueza. Considero estéril insistir numa explicação ideológica segundo a qual nós somos os “iluminados” e todos os outros “dementes” e “manipuláveis”.
Por onde começamos a autocrítica?
Eu partiria da gestão dos fluxos migratórios pela Europa liberal nos últimos vinte anos: imoral e ineficiente. As intervenções militares realizadas no Afeganistão e no Oriente Médio contribuíram para a instabilidade que gerou a migração. E a maior parte do nosso dinheiro foi para autocratas que prometiam controlar os migrantes, aliás com modestos resultados. Mas não aprendemos nada com os nossos erros. Hoje fazemos acordos com outro ditador, Erdogan, e com outros senhores da guerra na Líbia: para enviar homens, mulheres e crianças onde não há esperança nem direitos. Este seria a ajuda humanitária da Europa liberal?
Uma política equivocada. Mas talvez devêssemos nos perguntar se a cultura do liberalismo está equipada para enfrentar os desafios da contemporaneidade.
Creio que sim, mas com a condição de repensar os instrumentos para um mundo em constante transformação. Mais uma vez estou falando de Europa, mas este é o tema do meu ensino. Qual é a última verdadeira reforma da União Europeia? O Tratado de Maastricht, que data de 1992. Desde então, a geopolítica e a economia mudaram radicalmente, e começou a revolução digital, enquanto as nossas instituições europeias permanecem as mesmas. Nada mudou.
A sua autocrítica de liberal desiludido também envolve a classe intelectual.
Nossos estudiosos elaboraram uma infinidade de teorias sobre a integração europeia e não uma única teoria sobre a desintegração. Hoje, nos ajudaria muito para entender como pará-la e, portanto, como resistir à propaganda dos eurocéticos. É possível estudar a paz sem ter estudado a guerra? Não. Assim como não se pode entender a democracia sem ter estudado a autocracia.
O liberalismo foi declarado morto muitas vezes, depois se recuperou. Isso vai acontecer novamente desta vez?
Sim. O impulso político dos atuais grupos dominantes europeus acabou se esgotando, mas o liberalismo não se esgotou como patrimônio de ideias e valores: a liberdade individual e a igualdade, a tolerância e o antirracismo, o domínio da lei e o poder responsável. Eu não acredito que as pessoas aspirem a viver sem direitos. E eu não vejo a fila de pessoas pedindo asilo político na Rússia. Aqueles que votam as forças políticas contra-liberais estão furiosos com as promessas traídas. E fomos nós, liberais, a traí-las. Nós estávamos no poder quando as desigualdades cresceram e as democracias assumiram conotações oligárquicas.
Para restituir a impotência dos liberais hoje, você recorre aos versos de Bob Dylan: "O que eu valho se eu sei e não faço, se eu vejo e não falo ...?" O que os liberais deveriam fazer para inverter o pêndulo da história?
Primeiro recuperar democracia e igualdade, duas estrelas polares abandonadas pela Europa. Nos últimos trinta anos, aqueles que se autodenominavam liberais deram prioridade à liberdade sobre a igualdade. Os bens econômicos receberam mais atenção e proteção do que aqueles políticos. E os valores privados foram mais valorizados do que os valores públicos. Agora precisamos tratar mais de justiça social.
E sobre a democracia, de que forma é possível incidir?
Não há democracia sem transparência. E a opacidade de Bruxelas não é apenas uma caricatura de seus oponentes. Lembro-me de quando a eleição de Junker como presidente da Comissão Europeia foi recebida como o "triunfo da democracia": era o emblema de uma política que havia permitido a evasão fiscal em seu país, o Luxemburgo. E também penso no mundo obscuro do lobby que gira em torno do Parlamento. Então, primeira coisa: a democracia liberal deve ser transparente. Segundo: deve estar mais próxima dos cidadãos. Poderia ser criada uma segunda Câmara do Parlamento Europeu para aqueles que representam a comunidade - Cidades e Regiões - e também para as associações que representam as empresas: melhor ver os empresários defenderem os seus interesses nas salas de auditório do que nos restaurantes de Bruxelas.
Você prevê um período tumultuoso. Por quê?
Levará muito tempo para encontrar um novo caminho. Também porque, dentro dos círculos liberais, uma discussão séria ainda não começou. Vamos pegar como exemplo a economia digital: os banqueiros entenderam perfeitamente como funciona, enquanto eu não vejo igual conscientização na frente das análises. Piketty produziu reflexões interessantes sobre igualdade e desigualdade, mas temo que isso não seja suficiente para a economia.
O que é necessário para superar a crise?
Para sair do neoliberalismo, são necessárias novas visões do capitalismo, da democracia e da integração. Seria preciso analistas do calibre de Adam Smith, pai da economia liberal, ou Karl Marx. Mas isso exige muito tempo. Não pode ser feito por decreto.
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"A igualdade é a única chance do liberalismo". Entrevista com Jan Zielonka - Instituto Humanitas Unisinos - IHU