08 Agosto 2016
Uma velha teoria da esquerda baseava a revolução nas crises: a intensificação das contradições internas do capitalismo abriria caminho para uma alternativa socialista.
Mas, diferentemente da crise de 1929, que originou o chamado Estado de bem-estar social e maior intervenção estatal na economia, o desastre financeiro de 2008 foi sucedido pelo reaparecimento de um populismo de direita - seja na figura de Donald Trump nos EUA, de Marine Le Pen na França ou no plebiscito de saída do Reino Unido da União Europeia, baseado numa retórica nacionalista, antimigração e antielitista.
Na América Latina, bastião do surgimento de governos de esquerda neste século, o panorama não é diferente.
A reportagem é de Inayatulhaq Yasini, publicada por BBC Brasil, 07-08-2016.
Embora Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e Michelle Bachelet (Chile) representem, em diferentes graus, gestões de esquerda, na Argentina Mauricio Macri governa com um projeto de direita, Dilma Rousseff enfrenta, afastada, um processo de impeachment no Brasil e Nicolás Maduro pode ser alvo de um plebiscito revogatório na Venezuela.
Para Costas Lapavitsas, ex-deputado do partido grego de esquerda Syriza e pesquisador da Universidade de Londres, a esquerda não se recuperou da derrota política sofrida no século 20.
"A esquerda perdeu a confiança em si depois da derrota histórica com a queda do muro de Berlim. Sua análise econômica é antiquada, e seus valores históricos não foram substituídos", diz.
Em suma, trata-se de uma crise histórica, política, ideológica e de valores que deixou um grande vazio e uma interrogação nesse campo denominado esquerda.
Fim da revolução
Um dos grandes historiadores da modernidade, Eric Hobsbawm, aponta a queda do muro de Berlim como o fim de um ciclo iniciado no século 18 com a "Era das Revoluções" (Francesa, Americana e Industrial) e que continuou no século 20 com a revolução soviética.
O impacto histórico desse evento teve reflexo claro numa filosofia política que girava em torno da ideia de uma mudança profunda de estruturas econômicas, políticas e institucionais.
O Partido Comunista, poderoso na Itália e na França, influente na Grécia, Espanha e Portugal, é hoje uma sombra do que já foi, e que ainda sobrevive em alguns casos - como na Itália - com novo nome e princípios ecléticos.
O outro ramo da esquerda do século 20, a social-democracia, baseada durante décadas na aposta em uma profunda reforma intervencionista no capitalismo, perdeu o rumo e procurou absorver o neoliberalismo triunfante de outro modo.
Heiner Flassbeck foi assessor do ex-ministro da Economia da Alemanha Oskar Lafontaine, que conduziu, em 1998-1999, o último projeto social-democrata radical na Europa.
"A esquerda não entendeu o novo capitalismo financeiro que esteve no centro da atual crise, porque se tornou conservadora e teme questionar o sistema", afirma ele.
A crise de 2008 se produziu nesse terreno escorregadio e sem utopia revolucionária disponível.
Mal-estar da modernidade
A globalização, que prometia um paraíso do livre mercado no começo dos anos 1990, caiu em grave contradição com o derrocada financeira do final da década passada.
A tímida recuperação que sucedeu o desastre global não reverteu as perdas nos salários médios reais. Exemplos:
Nos Estados Unidos, o salário é 1,2% mais baixo do que antes da crise.
Na Alemanha, único caso de sobrevivência sólida na zona do euro, a queda foi de 2,4%.
No Reino Unido, os salários caíram ano a ano entre 2009 e 2014, na pior retração desde meados do século 19, segundo afirmou a revista The Economist.
Nas economias em desenvolvimento da América Latina, após o boom das commodities, que também não conseguiu eliminar altos níveis de desigualdade, a desaceleração atinge em cheio as classes média e baixa.
"A tragédia é que a direita estava pronta para aproveitar essa crise. A esquerda não estava, porque havia se acomodado às ideias neoliberais dominantes", afirma Lapavitsas.
Limite da opulência
No mundo desenvolvido, o grego Syriza foi a resposta mais radical ao impacto de 2008 e terminou submetido a uma agenda neoliberal sob a pressão do resto da União Europeia.
Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico, Bernie Sanders entre os democratas americanos ou o partido Podemos na Espanha surgiram no calor da crise, mas nenhum deles conseguiu dar o salto de um movimento de protesto a alternativa de poder.
Entre os movimentos sociais, a irrupção do Movimento 15-M na Espanha, também conhecido como Indignados, ou o Occupy Wall Street nos Estados Unidos marcaram protestos de vulto que não se consolidaram com o tempo.
Michael Kazin, professor de História na Universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e editor da revista Dissent, afirma que o nível de bem-estar econômico dessas sociedades limitam o espaço de mensagens alternativas.
"O fato de que muita gente hoje nas sociedades industrializadas tem pequenos computadores nos bolsos simboliza o acesso a um consumo de massa impensável em outras épocas. Na crise dos anos 1930, a maioria não tinha telefone. Isso não muda o fato de que a desigualdade crescente pode ser uma oportunidade para a esquerda", avalia.
Intérpretes
Grandes beneficiários do vácuo ideológico deixado pelo fim da Guerra Fria foram os órgãos de mídia que se tornaram grandes intérpretes do futuro econômico, político e social.
Em 1995, o então líder da oposição trabalhista no Reino Unido, Tony Blair, cruzou metade do planeta para se encontrar com o magnata da mídia Rupert Murdoch, dono da rede Fox, do Wall Street Journal e outros órgãos formadores de opinião.
Muitos viram nesse encontro um pacto com o diabo fundamental da ideia do "novo trabalhismo" que levou o partido ao centro do espectro ideológico na época.
É um processo de longa data. O escritor e jornalista americano Walter Lippmann foi o primeiro a vincular os meios de comunicação, no começo do século passado, a uma "revolução na arte da democracia", que poderia servir para a "construção de consensos".
Com 85% da informação mundial controlada por cerca de dez conglomerados midiáticos, o poder de fogo desses grupos para "gerar consenso" a favor ou contra de um partido, político ou iniciativa é considerável.
Costas Lapavitsas reconhece a existência desse fenômeno, mas aponta limites.
"Sempre voltamos ao assunto da mídia. É um grande problema, sobretudo diante da atual desorganização da esquerda. Mas a realidade é que, na Grécia, a maioria se opunha ao referendo convocado pelo Syriza no ano passado, mas, apesar disso, o partido ganhou com 60% dos votos."
América Latina
O fim da "Era das Revoluções" impactou de forma particular a esquerda da América Latina, que, desde a Revolução Cubana, defendia uma mudança de sistema por via pacífica, caminho exemplificado por Salvador Allende no Chile, ou pelas armas, como no caso de guerrilhas em diferentes países.
Mas, no século 21, para surpresa de muitos, a América Latina pareceu se converter na bússola perdida da esquerda.
Em um curto intervalo, diferentes partidos de esquerda assumiram o poder na Argentina, no Brasil, na Bolívia, no Equador e na Venezuela.
Em muitos desses países, a esquerda encarnou uma reação ao processo de globalização simbolizado pelo Consenso de Washington (desregulação, privatização, abertura de mercados) que, implementado nos anos 1990, não havia gerado os frutos econômicos e sociais prometidos.
Pedro Brieger, diretor do Nodal, portal dedicado à América Latina e ao Caribe, diz que essa nova esquerda representou uma mudança de paradigma.
"São governos marcados pela queda do muro de Berlim e pela crise da esquerda tradicional. Todos têm uma matriz populista muito forte, mas não formam um pensamento homogêneo. Não há uma revolução clássica, como a soviética ou francesa", afirma.
"Não se proíbem partidos nem imprensa de oposição, o aparato judicial não é desmantelado, então, continuam a enfrentar os grandes poderes que seguem coexistindo com eles. A Revolução Cubana, por exemplo, destruiu o Estado de Fulgencio Batista e criou um novo", acrescenta Brieger.
Enquanto o boom das matérias primas e a dinamização do mercado interno por distribuição de renda favoreciam altas taxas de crescimento, o modelo foi possível.
Mas agora, em épocas de vacas magras, está se deteriorando.
"Hoje, o neoliberalismo continua sendo a ideologia dominante em todo o planeta, mas que irá se romper por sua própria rigidez. A esquerda precisa estar pronta para a próxima crise. Não se pode repetir o erro de 2008 ", conclui Lapavitsas.
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Por que a esquerda não se beneficiou da crise econômica mundial? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU