13 Junho 2019
Professor da USP mostra como a ciência vem definindo as causas humanas das mudanças climáticas no livro 'O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra'.
A entrevista é de Rodrigo Petronio, publicada por O Estado de S. Paulo, 08-06-2019.
Sob quaisquer pontos de vista, a alteração global do clima e as transformações pelas quais a Terra tem passado no último século estão entre as questões mais relevantes do mundo atual. As causas naturais ou humanas dessas transformações são objeto de controvérsias. Mas poucos são capazes de negar que essas transformações existam. Determinar os origens multifatoriais dessas mudanças profundas demanda uma articulação de praticamente todos os ramos do conhecimento, da geologia à biologia, da matemática à física, da filosofia às ciências sociais, da arqueologia à semiologia.
Por isso, para definir as causas antrópicas (humanas) dessas mudanças, cientistas e pesquisadores de todo mundo têm se dedicado a um novo ramo transdisciplinar do conhecimento: a Ciência do Sistema Terra. Caso as motivações humanas dessa transformação venham a se confirmar em todas suas evidências científicas, a Terra como um todo estaria entrando agora em um nova época biogeológica: o Antropoceno. Ou seja: um período definido pela marca indelével do homo sapiens neste pequeno planeta perdido nos confins do universo.
José Eli da Veiga é um dos maiores representantes brasileiros desse conceito e dessa ciência nascente e concedeu uma entrevista exclusiva ao Estado. Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP) e docente ao longo de trinta anos da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da mesma universidade, acaba de publicar pela Editora 34 um novo livro que se intitula justamente: O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra. Trata-se de uma obra que nasceu clássica. Um marco nacional e internacional sobre esse debate. Mas qual a definição específica de Antropoceno? Qual fatia temporal esse conceito recobre? Quais critérios são utilizados para a sua mensuração? Aqui começam os pontos de divergência.
Estamos então no Éon Fanerozoico, na Era Cenozoica, no Período Quaternário, na Época Holoceno e na Idade Contemporânea. Essas datações são feitas a partir de testes biofisioquímicos e configuram um ramo da geologia: a estratigrafia. Os estratótipos são camadas biogeológicas de estratigramas que deixam marcas desses diversos tempos da vida e da Terra. Essa datação é estabelecida de acordo com regras rígidas da Comissão Internacional sobre Estratigrafia. Esses levantamentos têm apresentado evidências suficientes para definir que o impacto do sapiens na Terra está colocando fim ao Holoceno e gerando essa nova época biogeológica: o Antropoceno. Se o Comitê Executivo da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS) ratificar essas análises, teremos a oficialização dessa nova época.
O termo foi empregado pela primeira vez em 2000, por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química (1995). Em 2008, a Comissão Estratigráfica da Sociedade Geológica de Londres decidiu considerar a formalização dessa nova época. Contudo a demonstração empírica dessa transformação ainda continua suscitando ajustes conceituais. Teríamos evidências suficientes da intervenção humana para demarcar esse nova época? Seria uma época ou apenas uma nova idade, como a moderna e contemporânea? Um dos desafios dessa nova ciência é conseguir integrar duas temporalidades: a geológica e a humana.
Os defensores da Grande Aceleração (J. R. McNeill e Peter Engelke) não têm dúvidas sobre os signos da intervenção humana na Terra. Algumas evidências estratigráficas revelam que algumas das alterações produzidas desde 1945 são inéditas e jamais vistas nos últimos 500 milhões de anos. Isso mesmo: nas últimas décadas a Terra tem sofrido alterações que nunca sofreu em meio bilhão de anos. Para demarcar a força dessa civilização tecnológica, George Ter-Stepanian cunhou o termo Tecnoceno. Este, porém, não conseguiu substituir a amplitude e a abrangência do termo Antropoceno.
Alguns autores têm se preocupado em pensar o Sistema Terra de um ponto de vista efetivamente global. É o caso de Kate Raworth, criadora da Teoria Doughnut. A teoria cujo modelo visual tem a forma da famosa rosquinha. E contempla três matrizes para o desenvolvimento: uma base social, um espaço seguro e justo para a humanidade, dentro de uma economia regenerativa e distributiva, e um teto ecológico. Na segunda metade dos anos 1980, a NASA promoveu um simpósio e deu ensejo ao Diagrama de Bretherton, concebido pelo matemático homônimo e um dos mais completos modelos de compreensão sistêmica de todos os fatores envolvidos na dinâmica da Terra.
Essa visão sistêmica da Terra foi inaugurada no início dos anos 1970 a partir de uma intuição fornecida por Carl Sagan a James Lovelock e a Lynn Margulis, criadores da Teoria Gaia. A hipótese central seria de que a vida na Terra tem uma finalidade (telos): a manutenção do equilíbrio (homeostase). Algumas observações têm negado essa premissa. Diferente do proposto por Lovelock-Margulis, a biomassa da Terra não cresceu. Atingiu um ápice entre 1 bilhão e 300 milhões de anos. E se estabeleceu. A diversidade da vida tampouco. Manteve-se estável nos últimos 300 milhões de anos.
Contra essa versão otimista da autopoiesis (auto-regulação), baseando-se em estudos sobre extinções em massa e na hipótese de uma iminente sexta extinção (Elizabeth Kolbert), Peter Ward criou a versão oposta: a Teoria Medeia. Por causa de um efeito colateral do processo de evolução, a vida seria inimiga da vida. Haveria uma assimetria entre a mudança das espécies e a permanência da biosfera. Durante o último período da Era Paleozoica (Permiano), há 250 milhões de anos, 90% das espécies marinhas e 70% do total da biota morreram. Gigantescos volumes de magma lançados por vulcões produziram uma multiplicação descontrolada de bactérias anaeróbicas assassinas.
Abordagens como essas ensejam visões catastrofistas. Em 2003, Martin Rees propôs que não passaria de 50% a chance de continuarmos neste planeta até 2100. Em 2017, o eminente cosmólogo Stephen Hawking gerou apreensão coletiva ao dizer que a humanidade teria não mais do que 30 anos de sobrevida na Terra. O mesmo ocorre com as visões neomalthusianas (William Vogt e Paul Ehrlich) que reeditam a teoria do Thomas Robert Malthus (1766-1834), reverendo que definiu o seguinte axioma: a resposta à abundância é mais abundância. Como protozoários e moscas-da-fruta, os humanos devem consumir todos os meios-circundantes (Umwelten) e devem se multiplicar até os recursos da Terra se esgotarem e, junto com eles, a possibilidade da vida.
Essas expectativas fatalistas também estão ligadas a crenças sobre demografia. O Grupo da Universidade de Leeds defende que a Terra não pode suportar mais de 7 bilhões de humanos. Ecólogos como Erle Ellis e Ted Nordhaus combatem essa fixidez da capacidade de suporte humano. Recorrem às lacunas dessa equação, inapta a incorporar fatores tecnológicos, sociais e políticos incomensuráveis, ou seja, especificamente humanos. Contudo, se levarmos em consideração que o sol deve se extinguir apenas daqui a 5 bilhões de anos, não deixam de parecer ociosas essas investigações sobre a erradicação iminente dos seres vivos.
Eli expõe essas controvérsias com clareza e uma miríade de referências bibliográficas atuais. Mas se coloca mais próximo de Toby Tyrrell. Baseado no conceito de coevolução, este procura uma terceira via de compreensão entre o fatalismo de Medeia e o otimismo de Gaia. Para Eli, o grande desafio dessa nova ciência seria conceber uma teoria global capaz de contemplar uma quádrupla evolução: do planeta (geosfera), da vida (biosfera), da natureza humana (antroposfera) e do processo civilizador (tecnosfera).
Atualmente, os estudos apenas oscilam entre a biosfera e a geosfera, a estrutura do planeta e a estrutura da vida. Não conseguem integrar o impacto humano e técnico em um modelo conceitual complexo. Seria preciso criar padrões de previsibilidade que transcendam os aspectos físicos e contemplem a indeterminação do comportamento humano e das tecnologias. Outra dificuldade inerente às pesquisas sobre o Antropoceno é conseguir isolar as variáveis antropogênicas primárias e as interações entre sistemas biofísicos complexos não-humanos. Em outras palavras: compreender em que medida algumas das consequências detectadas têm sua origem em um impacto estritamente humano ou em outras variáveis naturais.
Mas quando falamos em Sistema Terra, o que queremos dizer? O que é um sistema? A origem da teoria geral dos sistemas se encontra na obra de Niklas Luhmann, Humberto Maturana, David Rousseau e, sobretudo, em um artigo de Ludwig von Bertalanffy de 1950. As relações complexas parte-todo estão pressupostas nas teorias sistêmicas. E a visão sistêmica pode ser aplicada a qualquer ciência, ser ou fenômeno. Essas abordagens sistêmicas são ligadas a alguns conceitos atuais como emergência, coevolução, complexidade e indeterminação.
Todos esses conceitos são desenvolvidos por Eli na parte final, a mais densa do livro. O conceito de emergência é nuclear em todas as ciências, naturais e humanas. Um de seus precursores é a teoria das catástrofes do matemático francês René Thom (1932-2002), desenvolvida também pelo pensador francês Jean-Pierre Dupuy. Outra é a análise dos percursos não-lineares de sistemas dissipativos e fora do equilíbrio, realizada pela filósofa belga Isabelle Stengers e pelo russo Ilya Prigogine, Nobel de Química em 1977. Como a teoria dos sistemas, o conceito de emergência define os seres e fenômenos não a partir de suas qualidades inerentes, mas a partir das qualidades que emergem das relações entre esses mesmos seres.
Um átomo, por exemplo. O átomo não é uma unidade substancial. O átomo é um sistema constituído de partículas cujas interações não podem ser separaras da observação. Ele tem qualidades que tampouco são intrínsecas a suas partes. São qualidades emergentes de acordo com a natureza das interações das partes. Por sua vez, as partículas subatômicas têm mais propriedades do sistema do que o sistema tem das partículas. O todo depende das partes. E cada parte altera o todo. A organização sistêmica do átomo transforma a própria natureza de seus componentes atômicos. Entendido assim, o átomo passa a ser concebido como sistema e não apenas a partir da natureza da soma de seus constituintes elementares. Uma teoria geral dos sistemas seria uma ciência transdisciplinar capaz de descrever todos as dinâmicas não-lineares, interações e feedbacks envolvidos na gigantesca massa de interações e reticulações que compõem a Terra.
Nesse sentido, as teorias sistêmicas e o conceito de emergência se conectam à teoria da complexidade cujos expoentes são Edgar Morin e Michel Serres. A integração entre pensamento sistêmico e pensamento complexo foi proposta por William Ross Ashby a partir de uma renovação da cibernética (ciência da informação). A etimologia do termo viria de complexus: diversos elementos entrelaçados e que devem ser compreendidos sob todos os seus ângulos e pontos de vista. Morin recorre à imagem da tapeçaria: não podemos conhecer a gênese de um tecido sem percorrer todos e cada um de seus fios. A teoria da complexidade combate três tipos de erro: o pensamento parcial, o pensamento binário, de tipo ou-ou que não concebe as alternativas e-e, e o pensamento linear.
A complexidade é a tentativa de determinar as leis oriundas de uma multiplicidade de interações e de fatores. As leis dos processos complexos decorrem de um número elevado de interações entre partes que geram propriedades emergentes. Morin pensa os processos complexos a partir de três operadores: holograma, recursividade e dialogismo. O primeiro é uma imagem que possui em cada um de seus pontos a quase totalidade da informação do objeto representado. O segundo é a capacidade dos efeitos de um circuito serem a causa do próprio circuito. O terceiro é a identificação de duas lógicas opostas que se parasitarem e produzem sua autoexclusão.
Joachim Schellnhuber chega a definir a consolidação da teoria dos sistemas como uma nova revolução copernicana. O Brasil tem aos poucos se posicionado nesse marco da complexidade sistêmica por meio de nomes como Ricardo Abramovay, Lucia Santaella, Edgar de Assis Carvalho, Jorge de Albuquerque Vieira. Se essa revolução se consolidar como se espera, o trabalho de José Eli da Veiga será um dos pioneiros e um dos mais substanciosos dessa revolução. Não se trata de colocar a Terra de novo no centro do sistema solar. Nem de revogar a posição central do Sol nesse mesmo sistema, como querem algumas tristes e inesperadas superstições do século XXI. Essa nova revolução se baseia em compreender a Terra como um processo integrado de tantas nuances e de tanta complexidade que será como se a estivéssemos vendo pela primeira vez.
O seu livro tem dois objetivos. Primeiro: mapear o debate em torno do Antropoceno, uma nova época geológica definida por meio do impacto do humano sobre a Terra. Segundo: descrever a constituição do Sistema Terra, uma nova ciência transdisciplinar capaz de mobilizar quase todos os ramos do conhecimento para compreender essas alterações antropobiogeológicas em toda sua abrangência e complexidade. Como o senhor descreveria para os leigos esses dois termos: Antropoceno e Sistema Terra?
O termo Antropoceno surgiu da necessidade de esclarecer e enfatizar que a Época atual é marcada por alterações da Terra determinadas – pela primeira vez em 4,5 bilhões de anos – por impactos ambientais globais de uma única espécie. Isto é, pelos modos de vida dos humanos, mais do que qualquer outro vetor. Fenômenos que consideramos altamente positivos – como o progresso e a prosperidade conquistados ao longo de milênios de processo civilizador – sempre tiveram muitas contrapartidas artificializadoras negativas, mas a escalada global desses impactos é bem recente e mal começa a ser destrinchada pelos cientistas. Foi o que motivou a emergência, há apenas três ou quatros décadas, da abordagem conhecida como Ciência do Sistema Terra, que o livro a apresenta como uma auspiciosa “promessa”. Sugerindo, ao mesmo tempo, que talvez tivesse sido muito mais correto chamá-la de Ciência do Complexo Terra. Mas tudo isso esbarra numa grande confusão epistemológica, já que nos últimos setenta anos evoluíram simultaneamente – e de forma bem confusa – muitas teorias “dos sistemas” e “da complexidade”.
O senhor enfatiza que os impasses teóricos, inerentes à constituição do Sistema Terra como ciência, em nada invalidam as evidências dos fatores antrópicos (produzidos pelo humano) presentes no aquecimento global. Muitos dos chamados ecocéticos, que negam o papel dos humanos nas alterações climáticas, apoiam-se nessa indeterminação conceitual para minimizar ou mesmo invalidar essas evidências. A despeito da incomensurabilidade de diversas variáveis, que o senhor destaca na obra, quais evidências antrópicas do aquecimento global o senhor considera irrefutáveis?
Quem lida com a cultura científica só pode ter horror ao termo “irrefutável”. Afinal, a ciência é um movimento baseado na constante refutação de “certezas” que, em grande parte, eram necessariamente provisórias. Mas esse movimento também vai deixando sempre mais clara a distinção entre um estoque de evidências consolidadas e o fluxo de novos conhecimentos discutíveis, alguns até bem controversos. No que diz respeito especificamente às modernas alterações climáticas, as dúvidas foram perdendo o sentido na medida em que o painel científico criado pela ONU em 1988 (IPCC) foi produzindo sólidos relatórios, que sintetizam inúmeras publicações de resultados científicos em periódicos de primeira linha dos anos anteriores. Com isso, os chamados “negacionistas” (talvez também “ecocéticos”, como está na pergunta) poderiam ter direito a algum crédito até o final do século passado. Porém, nas duas últimas décadas foram se reduzindo e se isolando num bando de alucinados. Houve recente ressurreição desse tipo de picaretagem – extremamente favorecida pela atual onda política reacionária – mas nem assim os negacionistas conseguirão um mínimo de respeito no âmbito da comunidade científica mundial.
Além de ter 28 livros publicados, o senhor é colunista do 'Valor Econômico', da revista 'Página 22' e da Rádio USP. Qual o papel da divulgação científica nos dias de hoje? Quais cuidados especiais o divulgador de ciência deve ter ao abordar esses fenômenos relativos ao Sistema Terra e ao Antropoceno?
Como nosso País é especialmente ingênuo sobre o papel estratégico da Ciência & Tecnologia (C&T), o trabalho de educação científica – e, portanto, de divulgação – tem ainda mais importância do que em sociedades culturalmente menos atrasadas. No caso do Antropoceno, é muito importante separar bem o debate científico de suas repercussões naquilo que o geógrafo Jamie Lorimer (Oxford) classificou como Zeitgeist, novas ontologias, ficção científica e até provocação ideológica. Ao redigir o livro O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra minha principal preocupação foi justamente a de realçar apenas o que existe de científico na proposta e nos debates sobre o Antropoceno.
Emergência, coevolução e complexidade. Poderíamos dizer que estes três conceitos são as chaves para a unificação dos campos de conhecimento do Sistema Terra? As universidades brasileiras têm se ocupado de estudos em torno desses conceitos na proporção em que deveriam?
Começando pelo fim, a resposta não poderia ser mais negativa. Afora raríssimas e honrosas exceções – como é o caso, por exemplo, de um destacado programa de pós-graduação do INPE voltado ao “Sistema Terrestre” – tais estudos ainda não mereceram a devida atenção da mirrada comunidade científica brasileira. Já as três noções mencionadas no início – emergência, coevolução e complexidade – têm sido bem mais contempladas. Mas infelizmente tudo continua muito precário, tanto aqui como em todo o mundo. Além disso, o livro mostra que essa precariedade ainda vai precisar de muito tempo para ser superada.
O senhor define a ciência do Sistema Terra como aquela responsável por unificar todos os processos da Terra em uma “quádrupla evolução”: do planeta, da vida, do humano e da civilização. Por ora, as teorias sistêmicas operam apenas em duas dessas esferas: a biologia (vida) e a geologia (planeta). O senhor é otimista em relação à consolidação dessa abordagem quádrupla em breve?
Consolidação em breve? De jeito algum! O que o livro procura mostrar é que existem sérios problemas epistemológicos que dificultam demais o avanço dessa quádrupla abordagem transdisciplinar. Quanto a ser ou não “otimista”, prefiro pensar e agir seguindo aquele velho conselho de Romain Rolland (prêmio Nobel de literatura em 1915): sempre tentarmos combinar o pessimismo da razão ao otimismo da vontade.
Em termos populares e do senso comum, o Sistema Terra acabou sendo identificado nas últimas décadas a duas grandes imagens: a imagem de Gaia (James Lovelock, Lynn Margulis, entre outros) e a imagem de Medeia (Peter Ward, entre outros). Ou seja: uma imagem de uma vida-Terra que tende ao equilíbrio e uma imagem de uma vida-Terra que tende à destruição. Em que medida essas imagens de mundo nos ajudam a ter uma melhor compreensão do Antropoceno? Em que medida essas imagens dificultam ainda mais uma clara compreensão do Antropoceno, gerando mistificações e problemas políticos, econômicos e pragmáticos?
Primeiro, uma retificação. A hipótese Medeia continua ignorada e desprezada. Alguns colegas costumam me dizer que ela “caiu no vazio”... Já a hipótese Gaia, ao contrário, logo se tornou muito popular. Certamente por permitir muitos flertes com vários tipos de esoterismo. O que o livro propõe é olhar para as duas como dois polos simétricos que se alimentam enquanto se opõem. O que poderá eventualmente gerar um avanço pelas veredas intermediárias, com hipóteses que ainda não têm apelações emprestadas da mitologia grega, mas que talvez pudessem ser tornar mais atraentes se evocassem o hinduísmo e serem carimbadas de hipóteses Shiva. Foi o que me sugeriu um leitor atento do livro, a quem aproveito para agradecer. Quanto à segunda parte da pergunta, o principal é dizer que essas imagens podem ajudar a esclarecer as grandes incógnitas da Ciência do Sistema Terra, mesmo que não contribuam para a clara compreensão do Antropoceno. Aliás, a conclusão do livro é que a compreensão do Antropoceno depende apenas de duas disciplinas há muito estabelecidas: História Ambiental e Estratigrafia (parte essencial da Geologia). De qualquer forma, tais imagens não geram quaisquer “problemas políticos, econômicos e pragmáticos”.
A pergunta é muito abrangente e complexa, mas não consigo deixar de fazê-la. Quais agendas políticas o Brasil precisaria adotar para conciliar crescimento econômico e minimização do impacto ambiental?
Duas agendas precisariam ser assumidas. Primeiro, a já subscrita, desde o final de 2015, Agenda 2030, com toda ênfase para os seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Além dela, seria muito recomendável alguma adaptação à nossa realidade das 66 medidas recentemente propostas aos cidadãos franceses por 19 organizações da sociedade civil, no chamado “Pacto 66”.
A demarcação do Antropoceno como período geológico deve ser oficialmente confirmada pela comunidade internacional de estratigrafia (medições biogeoquímicas dos solos) em 2020. Em que medida essa oficialização pode alterar a agenda das políticas públicas globais?
Não se trata de alterar políticas públicas globais, mas sim de reformar a agenda educacional, desde o Ensino Médio. E isso talvez seja uma excelente oportunidade para se repensar toda a “Educação Científica”, direcionando-a prioritariamente para a “Ciência da Sustentabilidade”, tema de meu próximo livro.
Bruno Latour cunhou o neologismo “terranos” para descrever aqueles que habitam a Terra e, ao mesmo tempo, têm consciência de habitá-la. Por oposição, os “terráqueos” comportam-se como alienígenas e colonizadores em seu próprio planeta. Caso houvesse uma guerra entre terranos e terráqueos, quem o senhor imagina que sairia vitorioso?
Deixando de lado tão pitorescas especulações, gostaria de aproveitar a oportunidade criada por essa pergunta para ressaltar que a verdadeira oposição é, sim, ética, mas está ocorrendo entre as pessoas que mais se preocupam com as condições de vida das futuras gerações e aquelas mais predispostas a deixar que tais gerações “se lixem” ou “se explodam”. Mais: não haverá guerra, ou lado vitorioso, pois não se trata de contradição antagônica. Teremos um movimento ondulatório com fases bem reacionárias (como a atual) e períodos dos mais iluministas. Tudo isso pode terminar em inverno nuclear, caso em que o movimento ondulatório seria interrompido por longuíssimo tempo. Todavia, se o uso de armas nucleares puder ser evitado, a capacidade inovadora e solucionadora dos humanos certamente surpreenderá.
Em que medida as colonizações de outros planetas e a exobiologia (ramo da astronomia que estudo da vida em outras galáxias) podem enriquecer ou relativizar as conquistas da ciência do Sistema Terra ou a datação do Antropoceno?
Certamente contribuirão muito para avanços da Ciência do Sistema Terra. Mas a datação do Antropoceno em nada depende das duas variáveis mencionadas.
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'Negacionistas das mudanças climáticas se isolaram num bando de alucinados', diz José Eli da Veiga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU