27 Agosto 2018
O diplomata vaticano publicou um documento sobre o caso do cardeal homossexual McCarrick com acusações contra a cúpula vaticana dos últimos 20 anos.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada em Vatican Insider, 26-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As autoridades da Santa Sé tinham conhecimento, desde o ano 2000, da existência de acusações contra o arcebispo Theodore McCarrik, promovido no fim daquele ano a arcebispo de Washington e criado cardeal por João Paulo II no ano seguinte: era sabido que o prelado convidava seus seminaristas para dormir com ele na casa de praia. É o que afirma um documento de 11 páginas assinado por Carlo Maria Viganò, ex-secretário do Governatorato e ex-núncio apostólico nos Estados Unidos, que foi afastado do Vaticano e enviado para a sede diplomática de Washington em 2011.
O texto do Viganò está repleto de datas e de circunstâncias, e é claramente dirigido contra o Papa Francisco, do qual o ex-núncio pede a renúncia, porque, na sua opinião, teria removido as sanções existentes contra McCarrick após o conclave de 2013.
O documento repropõe, detalhando-os, boatos e informações que já circularam pelo menos nos últimos dois meses na galáxia midiática antipapal e tradicionalista norte-americana e europeia, tentando descarregar toda a responsabilidade sobre os ombros do atual pontífice.
Viganò afirma que as denúncias do ano 2000, com testemunhos escritos contra McCarrick – acusado de molestar seminaristas e jovens padres adultos – foram regularmente transmitidas pelos núncios apostólicos que se sucederam na sede de Washington, Dom Gabriel Montalvo, antes, e Dom Pietro Sambi, depois. No entanto, esses relatórios ficaram sem resposta.
Viganò culpa por tudo isso o então secretário de Estado, Angelo Sodano – mas também o substituto, Leonardo Sandri, hoje cardeal prefeito para as Igrejas Orientais – que, na sua opinião, teriam acobertado McCarrick. E João Paulo II, que, no ano 2000, aprovou a nomeação para Washington e, no ano seguinte, a inclusão do discutido arcebispo no Colégio Cardinalício.
Viganò escreve: “A nomeação a Washington e a cardeal de McCarrick foi obra de Sodano, quando João Paulo II já estava muito doente? Não nos é dado saber disso. Porém, é lícito pensar isso, mas não acho que ele tenha sido o único responsável. McCarrick ia com muita frequência a Roma e havia feito amigos por toda a parte, em todos os níveis da Cúria.”
Uma segunda rodada de acusações contra McCarrick é datada de 2006. O próprio Viganò escreveu que tinha preparado duas notas detalhadas contra o cardeal, encaminhando-as aos seus superiores – naquele momento, o cardeal secretário de Estado, Tarcisio Bertone (acusado de ter promovido muitos homossexuais para postos de responsabilidade na Cúria e na Igreja). O resultado dessas notas também tardou a chegar, embora Viganò afirme que, em 2009 ou 2010, Bento XVI decidiu impor sanções ao já renunciante McCarrick, impondo-lhe que não vivesse no seminário, não aparecesse ou celebrasse mais em público, não viajasse. McCarrick, no entanto, não levou a sério essas sanções que permaneceram secretas. Basta navegar na web por alguns minutos para perceber que, mesmo após as supostas sanções do Papa Ratzinger, o cardeal estadunidense continuou celebrando em público e proferindo conferências.
Por fim, o último capítulo: em junho de 2013, durante uma audiência privada, a uma pergunta de Francisco sobre McCarrick, Viganò teria respondido ao papa que, contra o cardeal, havia um dossiê cheio de acusações depositado na Congregação para os Bispos. Viganò não afirma ter transmitido naquele dia ou posteriormente documentos ou denúncias contra McCarrick ao novo papa. Mas aquelas poucas palavras trocadas foram suficientes para que ele afirmasse que Francisco não teria se comportado corretamente, mas, de algum modo, teria ajudado o cardeal idoso, que também teria se tornado – afirma ainda o ex-núncio, neste caso sem detalhar nada, nem relatar qualquer fato específico – um conselheiro muito ouvido pelo novo papa para as nomeações episcopais estadunidenses. Não se deve esquecer que, desde 2006, McCarrick não estava mais no cargo, mas era um cardeal arcebispo emérito, sem atribuições.
Para além dos detalhes de um texto que evidentemente se insere nas batalhas pessoais eclesiais de um prelado que nunca digeriu o fato de ter sido afastado do Vaticano por decisão de Bento XVI, e do uso instrumental que foi feito disso na batalha travada pela ala anti-Francisco e dos seus laços na Igreja, na política internacional e na mídia, alguns fatos ainda precisam ser esclarecidos.
O primeiro diz respeito à nomeação de McCarrick a Washington e, principalmente, à sua posterior inclusão no Colégio Cardinalício. No ano 2000, o Papa João Paulo II certamente não estava no fim dos seus dias (ele morreria cinco anos depois), e retratá-lo como cansado, doente e incapaz de tomar decisões parece bastante inapropriado. Deve-se supor que o cardeal Sodano escondia informações decisivas do pontífice. Notícias que chegavam do núncio apostólico em Washington, que, aliás, também podia ter acesso direto ao papa. O cardeal Giovanni Battista Re – que segundo Viganò, como neoprefeito da Congregação para os Bispos, se opôs por escrito à nomeação de McCarrick – era uma pessoa próxima do papa e próxima do poderoso secretário do Papa Wojtyla, Dom Stanislaw Dziwisz. Por que ninguém disse ao pontífice sobre as acusações contra o candidato ao arcebispado de Washington e por que ninguém impediu a sua posterior nomeação cardinalícia?
O segundo fato está relacionado ao período de 2006 a 2013. Viganò assegura que existem sanções secretas contra McCarrick por parte do Papa Bento XVI e ataca o sucessor de McCarrick em Washington, Donald Wuerl, por ter fingido não saber. Essas sanções obrigavam o cardeal molestador de seminaristas adultos e de jovens padres a viver retirado em oração e penitência, sem aparecer ou celebrar em público. Por que McCarrick não obedeceu a essas sanções e continuou fazendo o que fazia antes como cardeal aposentado, celebrando missas e proferindo conferências? Por que ninguém pediu respeito pelas ordens papais e por que ninguém avisou o pontífice sobre essa grave desobediência? E, ainda, por que o Papa Ratzinger optou por manter em segredo essas sanções – obviamente admitindo-se que cada afirmação de Viganò corresponda à verdade – sem nunca torná-las públicas?
Um terceiro fato: neste ano, quando se teve a notícia de uma denúncia concreta de abuso contra um menor por parte de McCarrick – episódio que remonta a quando ele era padre em Nova York – o Papa Francisco obrigou-o a viver retirado e removeu a sua púrpura cardinalícia: a primeira, verdadeira e radical sanção contra o ex-arcebispo, que não tem precedentes na história mais recente da Igreja. Até 2018, ou seja, até a abertura formal da investigação canônica contra McCarrick, as acusações diziam respeito a relações homossexuais com pessoas adultas. Depois, resta saber por que Dom Viganò não divulgou essas informações até hoje, se estava tão convencido de que se tratava de algo da maior importância para a Igreja. E por que, como núncio apostólico nos Estados Unidos, não as colocou por escrito, convidando o novo papa a tomar medidas contra McCarrick, para fazer com que as sanções secretas de Bento fossem finalmente aplicadas, o que, evidentemente, não tinha ocorrido antes.
Nota de IHU On-Line: Na viagem de retorno de Dublin, o Papa Francisco se referiu ao testemunho de Viganò, afirmando:
"Li na manhã de hoje esse comunicado de Viganò. Digo sinceramente isto: leiam-no atentamente e tirem suas conclusões pessoais. Não direi nenhuma palavra sobre isto. Creio que o documento fala por si mesmo. Vocês têm a capacidade jornalística suficiente, com sua maturidade profissional, para tirar suas conclusões".
A íntegra da entrevista do Papa Francisco pode ser vista, em italiano, aqui.
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Ex-núncio nos EUA, Viganò: ''O papa deve renunciar'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU