26 Julho 2018
Os clérigos de maior nível da Nicarágua uniram seus braços e atravessaram à força uma multidão exaltada de simpatizantes do governo, enquanto gritavam: “Assassinos”. Quando chegaram à basílica onde havia mais de dez pessoas presas, alguns dos manifestantes situacionistas irromperam atrás deles.
A reportagem é de Elisabeth Malkin e Frances Robles, publicada por The New York Times, 23-07-2018. A tradução é do Cepat.
No meio do tumulto, alguém feriu o braço do bispo auxiliar da Arquidiocese de Manágua, Silvio José Báez, e arrancou a insígnia de sua batina. Finalmente, os empurrões acabaram e os clérigos retiraram o grupo (paramédicos e missionários franciscanos que estavam ali, refugiando-se da aglomeração).
Báez amenizou a importância do incidente.
“O que a gente está vivendo é muito mais sério”, disse aos repórteres que acompanharam os clérigos.
A Igreja católica está na frente de batalha de um conflito cada vez mais radical entre o governo autoritário do presidente Daniel Ortega e uma ampla oposição que deseja retirá-lo do poder. Em um país onde a Igreja frequentemente esteve envolvida na política, os sacerdotes são testemunhas e também parte da crise que sacudiu a nação durante os últimos três meses e retirou a vida de cerca de trezentas pessoas.
“Nós continuamos sendo pastores e um autêntico pastor da Igreja católica nunca está com os verdugos”, disse Báez. “Sempre estará com as vítimas”.
Nos primeiros dias dos protestos, Ortega apelou aos bispos para que atuassem como mediadores em negociações com a oposição, uma aliança heterogênea de grupos distintos: estudantes, associações de negócios e organizações agrícolas. No entanto, na medida em que o governo intensificou sua repressão contra os opositores, Ortega deixou de tratar os bispos como mediadores neutros, e os simpatizantes do governo desataram ataques contra os religiosos e as igrejas”.
O governo “já declarou a guerra à Igreja”, disse Juan Sebastián Chamorro, integrante da aliança opositora.
Embora a Igreja em geral buscou apagar o equilíbrio entre mediador e defensor, foi Báez quem se tornou o rosto da oposição, com uma forte presença em redes sociais. Esse papel lhe dá a liberdade de denunciar o governo sem reservas.
“Aqui, o que há é um Estado armado contra uma população desarmada”, disse durante uma entrevista no seminário no qual vive nas redondezas de Manágua. “Esta não é guerra civil”.
Nas ruas, a Igreja defende os membros da resistência, inclusive os cidadãos que protegem as barricadas feitas com paralelepípedos para proteger seus moradores da Polícia Nacional da Nicarágua e seu pessoal paramilitar.
Báez, de 60 anos, argumentou que não há contradição entre uma tarefa e a outra.
“Mas, uma coisa que precisa ficar claro é que ser mediadores na mesa de diálogo não nos faz neutros diante da injustiça, diante das violações aos direitos humanos, diante da morte de inocentes”, disse.
A campanha do governo contra os manifestantes se tornou mais violenta nas últimas duas semanas, na medida em que se aproximava o dia 19 de julho, aniversário da Revolução sandinista de 1979, que levou Ortega ao poder pela primeira vez. Quase todo dia, comboios de caminhões Toyota cheios de paramilitares destacados chegavam a comunidades rebeldes do sul de Manágua para derrubar as barricadas.
Os manifestantes morrem todos os dias e muitos outros ficam feridos e são presos, na medida em que a resistência endurece sua postura diante do governo de Ortega e sua esposa, a vice-presidente Rosario Murillo. A maioria dos mortos era de civis, alguns adolescentes, embora também tenham morrido policiais.
Agora, os próprios sacerdotes se tornaram alvos. Ortega dedicou boa parte de seu discurso, no dia 19 de julho, para destacar a Igreja: acusou os bispos de procurar derrubar seu governo eleito e inclusive de usar algumas igrejas para esconder armas.
“Eu pensava que eram mediadores, mas não”, disse. “Estavam comprometidos com os golpistas, eram parte do plano dos golpistas”.
Ortega rejeitou uma proposta dos bispos de antecipar as eleições de 2021 para o próximo ano e qualificou os opositores como terroristas.
Os ataques à Igreja foram crescendo desde que Ortega se referiu a eles, pela primeira vez, há algumas semanas, como aqueles que “nos amaldiçoam em nome de instituições religiosas”.
Dois dias depois, Báez, junto com o arcebispo de Manágua, o cardeal Leopoldo Brenes, e o núncio papal, Waldemar Sommertag, responderam ao chamado para resgatar um grupo de missionários franciscanos e paramédicos presos na basílica em Diriamba, a uma hora ao sul da capital, e se encontraram com a aglomeração furiosa.
Posteriormente, paramilitares assediaram uma igreja no limite do principal campus universitário em Manágua, após atacar e expulsar os estudantes que tinham ocupado o prédio durante dois meses. Os estudantes que se refugiaram na Paróquia de Jesus da Divina Misericórdia, junto com sacerdotes e jornalistas, resistiram uma noite de disparos com armas de fogo até que os bispos conseguiram sua libertação ao amanhecer.
“O Governo da Nicarágua atravessa o limite do desumano e do imoral”, escreveu Báez em sua conta de Twitter em espanhol, inglês e italiano, e finalizou com um pedido: “A comunidade internacional não pode ficar indiferente!”.
Em uma mensagem pastoral publicada no mesmo dia, os bispos somaram sua frustração à ira de Báez, ao declarar que o governo havia mostrado não ter vontade política nas negociações porque se recusava a atender qualquer um dos protestos que pudessem fazer avançar a democracia.
“Os representantes estatais”, escreveram os bispos, “tergiversaram o objetivo principal pelo qual foi instalada a mesa de diálogo nacional”.
Nem todos estão convencidos de que as críticas abertas da Igreja ao governo de Ortega são o melhor para as negociações para uma transição pacífica.
“A Igreja não é um mediador construtivo”, disse Jaime Wheelock, que foi um comandante revolucionário junto a Ortega, “porque alguns querem que Ortega saia”.
Não obstante, María López Vigil, uma ex-freira que escreve frequentemente sobre a Igreja nicaraguense, disse que cresceu o reconhecimento ao fato de que os sacerdotes – muitos dos quais receberam ameaças de morte – estão arriscando suas vidas em nome da democracia.
“Eles oram por nós, intercedem por nós”, disse María José Téllez Flores, de 34 anos, depois que Báez e Brenes falaram, no mês passado, ao povo de Masaya. “Temos a certeza de que eles sempre estarão nos apoiando”.
O envolvimento da Igreja na política nicaraguense é uma história intrincada com décadas de antecedentes. A hierarquia da Igreja conservadora condenou a ditadura de Somoza, mas inicialmente se recusou a aceitar os sandinistas.
Na primavera de 1979, os bispos emitiram uma carta pastoral na qual denunciavam a ditadura de Somoza como uma tirania e, em julho, quando os sandinistas chegaram a Manágua, o arcebispo Miguel Obando y Bravo realizou uma missa para lhes dar as boas-vindas.
Não obstante, o arcebispo e a hierarquia da Igreja se puseram contra o novo governo sandinista quando suas políticas marxistas endureceram. O Papa João Paulo II suspendeu quatro sacerdotes que tinham postos no governo sandinista, depois que se negaram a deixar o cargo.
Durante os anos 1980, o governo de Ortega foi conhecido por extorquir e colocar sacerdotes católicos em posições comprometedoras. O arcebispo Obando y Bravo se tornou o rosto da oposição política civil da Nicarágua, enquanto os Estados Unidos apoiaram uma força militar contra os sandinistas.
Depois de perder a eleição presidencial em 1990 – e enquanto planejava seu caminho de retorno ao poder -, Ortega se aproximou da Igreja católica.
Em 2004, Ortega pediu perdão pelos ataques sandinistas contra a Igreja, durante os anos 1980. No ano seguinte, o cardeal Obando y Bravo casou Ortega e Murillo.
Conforme a eleição de 2006 se aproximava, Ortega deu seu apoio ao chamado da Igreja para impor uma proibição total ao aborto. Com o apoio sandinista, a proibição se tornou lei dez dias antes que as eleições voltassem a colocar Ortega na presidência.
Já no cargo, começou a desmantelar todos os cadeados e contrapesos a seu poder: reconfigurou o poder judiciário, o Congresso e o instituto eleitoral para manter seu controle. A maioria dos críticos viu isso como uma traição, mas o cardeal Obando y Bravo se manteve ao seu lado até morrer, no mês passado.
“Tinham eles sua Igreja que era o cardeal Obando y Bravo”, disse José Alberto Idiáquez, reitor da Universidade Centro-Americana em Manágua. O cardeal “teve um papel importante durante a guerrilha sandinista e Somoza, mas depois ele estava como a serviço deles. Então, eles não precisavam muito dos atuais bispos”, disse Idiáquez.
O restante da hierarquia da Igreja traçou seu próprio caminho, explicou. Em uma carta dirigida a Ortega em 2014, os bispos advertiram que a concentração de poder em suas mãos era um perigo alarmante. “Era uma carta que se você a lê, tem vigência hoje”, disse Idiáquez.
Báez, um estudioso da Bíblia que retornou a Nicarágua há nove anos, de Roma, após viver trinta anos fora do país, tinha outra forma mais direta de se comunicar: as redes sociais. O que inicialmente foi uma forma de “comunicar uma interpretação da realidade, a partir da visão cristã”, adquiriu uma urgência distinta, desde o início dos protestos, ao se tornar uma fonte de notícias e de consolo. As redes sociais também são o lugar onde Báez foi intensamente criticado por dezenas de contas em favor do governo, criadas após o início da crise.
Se um sacerdote diz que uma pessoa jovem foi assassinada, “isso eu transmito e, então, segue não apenas a verdade, mas também o testemunho do sacerdote e, ao mesmo tempo, vai minha solidariedade humana”, destacou Báez.
“Minhas redes sociais me tornaram também um inimigo terrível do governo”, disse.
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O clero da Nicarágua se torna um “inimigo terrível” de Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU