23 Julho 2018
Para o premiado escritor nicaraguense, a brutal repressão de Ortega fraturou o país e a única solução é a sua saída.
A entrevista é de Rodrigo Turrer, publicada por O Estado de S. Paulo, 22-07-2018.
Poucos conhecem melhor as entranhas do poder na Nicarágua do que o escritor Sergio Ramírez. Aos 73 anos, ele lutou nas hostes revolucionárias do sandinismo que deram fim à dinastia dos Somozas, em 1979. Foi tão próximo dos líderes da revolução que se tornou vice-presidente de Daniel Ortega, entre 1985 e 1990. Deixou o cargo quando percebeu que a revolução tomava rumos com os quais não compactuava. Em 1996, abandonou a política para se dedicar apenas à literatura. Desde então, não hesita em denunciar o governo de seu ex-parceiro. Nesta entrevista ao Estado, Sergio Ramírez fala sobre o futuro do país, a mudança de rumo de Ortega e a desilusão com a revolução sandinista.
Sérgio Ramirez. Foto: Rodrigo Fernandez | Wikicommons
Sergio Ramírez é escritor, jornalista e advogado. Participou da Revolução Sandinista que derrubou Somoza, em 1979, e foi vice-presidente da Nicarágua entre 1985 e 1990. Deixou a política em 1996. É autor de 54 livros, traduzidos para mais de 20 idiomas – o principal é “Adiós Muchachos”, em que narra a história da revolução e de seus protagonistas.
Quais são as raízes deste movimento na Nicarágua?
O estopim da crise foi a reforma da previdência, mas isso foi a faísca. Havia uma enorme inconformidade represada, após 11 anos de governo de Ortega com um controle social e político intenso. E depois da manobra legal para conseguir um terceiro mandato, este sentimento de inconformidade aumentou. Quando Ortega propôs a reforma e os primeiros corajosos se manifestaram, a repressão foi brutal. Houve mortes, filhos de policiais mortos, filhos de funcionários públicos mortos. Isso causou uma rachadura que Ortega não conseguirá reparar.
O que mudou do Ortega que você conheceu para este?
O que eu conheci era totalmente diferente. Era um homem que não tinha gana de poder eterno, não pretendia controlar tudo, concentrar o poder. Era um homem que ouvia as opiniões divergentes dentro do partido. Não seria capaz de ordenar a repressão de hoje, não era o tirano de hoje. A Frente Sandinista dos anos 80 também era outra. Havia processos internos, debates. Não existia um caudilhismo. A partir dos anos 90, Ortega se tornou uma figura centralizadora e acabou com o equilíbrio no Partido Sandinista.
Sergio Ramírez (esquerda) e Daniel Ortega (direita), em 1981. Foto: contexto.cr
Qual é o plano de Ortega ao comandar essa repressão?
Quando David Frost entrevistou Richard Nixon, questionou porque ele havia feito o que havia feito. Recebeu a seguinte resposta: “Minha mãe viveu 98 anos”. Portanto, ele teria muita vida pela frente. Acho que Ortega acreditava, ainda acredita, que conseguirá manter o poder eternamente. Ele acredita que pode manter o poder ainda por muito tempo, até 2021, colocar sua mulher na presidência e depois voltar. Enfim, governar indefinidamente. Mas há um descolamento entre o que Ortega pensa e a realidade. Ele já não tem o apoio que tinha.
Em comícios e aparições de Ortega vemos milhares de pessoas. A que se deve tal apoio?
Ortega tem muito apoio ainda, sem dúvida, porque tem um aparato repressor grande, e uma máquina estatal que faz com que consiga levar milhares às ruas. Mas as imagens que vemos, de comícios na televisão, são enganosas. Vídeos feitos pelas pessoas nas ruas, postados nas redes sociais, mostram que a correlação de forças se inverteu. Há menos de um ano, não existiam protestos contra ele. Agora, dezenas de milhares vão às ruas protestar e não se calam mais com a dura repressão da polícia, destes paramilitares, gente que cobre o rosto e está disposta a matar por Ortega.
Há risco de uma guerra civil?
Não quero ver isso, porque outra guerra civil seria destruidora. A população e os manifestantes estão mais cívicos. Muitos se lembram das feridas da guerra civil, dos bebês e crianças mortos, das casas queimadas. Ninguém quer isso. Mas a resistência civil, que é legítima, está sendo reprimida sem piedade, a um custo que beira as 300 mortes. Já estamos no meio de um banho de sangue.
O sr. acha que Ortega aceitará novas eleições?
Não. Porque, pelo discurso que adota, ele acredita que está ganhando a guerra. Ele está tentando destruir o diálogo, desacreditar os mediadores, convocou apoiadores de Cuba e da Venezuela. Que ele quer ficar, não tenho dúvidas. Mas a pergunta que não se cala é: pode o país voltar a ser o que era antes de abril de 2018? Não pode. Se Ortega não ceder ao apelo por eleições antecipadas ou se não encontrarmos uma solução democrática, o que não queremos para o país virá: uma guerra civil. A guerra civil veio porque Somoza fechou todas as estradas para a substituição de seu regime. Nos últimos comícios de Ortega, as pessoas usam camisas com os dizeres: “se queda” (fica, em espanhol). Me lembro como se fosse hoje, nos dias que antecederam a queda de Somoza, as pessoas usavam faixas com esta mesma frase: “se queda”.
Como seria o futuro da Nicarágua sem Ortega?
Haveria profunda instabilidade, vácuo de poder, anarquia, e isso é um problema. Eu acredito que a história se repetirá e a política tradicional dos Estados Unidos, que sempre teve peso enorme nos últimos dois séculos, estará presente. A verdade é que este processo doloroso pelo qual estamos passando ocorre porque a repressão de Ortega e sua sede de poder liberaram um gênio do mal da garrafa. Isso tem consequências para toda a sociedade sem distinções de cores políticas. E são consequências imprevisíveis.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘Se Ortega não ceder, haverá uma guerra civil’. Entrevista com Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU