23 Julho 2018
Escritora Gioconda Belli diz que sandinista se corrompeu e execra apoio do Foro de São Paulo.
Ex-sandinista, a escritora nicaraguense Gioconda Belli, 69, treinou tiros em Cuba sob supervisão de Fidel Castro e viu apenas dois membros de sua célula, entre dez, sobreviverem à luta contra a ditadura Somoza (1936-1979).
A entrevista é de Fabiano Maisonnave, publicada por Folha de S. Paulo, 22-07-2018.
Seu sonho virou tormenta. Rompida com o presidente Daniel Ortega há 24 anos, Belli disse em sua casa, nos arredores de Manágua, que a atual onda de repressão no país, que deixou ao menos 360 mortos em três meses, tem aspectos piores do que o regime que ajudou a derrubar.
Gioconda Belli, escritora, poetisa, ex-guerrilheira sandinista. Foto: Jorge María Peralta | Flickr
“Estão reprimindo gente desarmada. Não é como lutar contra um exército de guerrilheiros”, diz a autora de “A Mulher Habitada” (ed. Record, 2000), que hoje critica os defensores de Ortega na esquerda —entre eles o Foro de São Paulo, que reúne partidos da esquerda latino-americana, como o PT.
A revolução sandinista completa 39 anos. Como vê o país nesta data?
É o 19 de Julho mais infeliz que vivemos. Eu me lembro da alegria do 19 de Julho, do gozo de ser tão jovem e ter pensado que havíamos derrotado uma ditadura de 45 anos. Mas nunca pensamos que estaríamos em outra, que 39 anos depois teríamos de lutar contra uma das pessoas que participaram na luta contra a ditadura.
Incomoda-me ouvir que Daniel Ortega foi o líder daquela luta. Foi uma luta coletiva. Com a derrota eleitoral, questionou-se Ortega no partido, e ele fez uma campanha para acusar todos que não estavam a seu lado e nos isolar das bases, que acreditavam nele. Assim ele começou a dominar o partido e a avançar no poder.
O ex-presidente uruguaio José Mujica disse que o sandinismo é “um sonho que se desvia”. Como vê esse processo?
Em 1994, fui ao último congresso [partidário]. Aí vimos que havia uma desvio grande para o culto à personalidade de Ortega e uma proposta de violência, à qual nos opusemos. Ali o sonho começou a desmoronar. Foi duro. Escrevi um poema: “Que sorte a tua estar morto, Carlos Fonseca [líder guerrilheiro assassinado em 1976] /que sorte que a terra te protege e te cegue”.
Poderíamos ter sido críticos, mas não soubemos administrar o grande presente que nos havia sido dado, conduzir o país. Quando renunciei à Frente Sandinista, em 1994, foi como se alguém tivesse morrido. Quando lutamos, era tão fraternal, perdi tanta gente, tantos amigos.
Penso que é um problema da esquerda. Chegamos ao poder com uma grande unidade e começamos a atuar de uma maneira muito autoritária.
Depois, veio a guerra [contra paramilitares financiados pelos EUA para derrubar o sandinismo, nos anos 80], e esse autoritarismo incipiente achou justificativa. Então começaram a fazer coisas que não negociáramos com ninguém. Começou a ter corrupção, as coisas que se veem no poder. Um modo de vida diferente entre os dirigentes. As mortes da guerra.
A sra. vê semelhança entre a ditadura Somoza e a atual repressão?
Vejo a repressão quase pior do que a [da família] Somoza. Eles agarravam as pessoas seletivamente.
Agora o que temos visto é uma massa de paramilitares armados até os dentes lutar contra gente desarmada. Fizeram um massacre. Em um país de 6 milhões de habitantes, matar quase 400 em três meses é muito mais do que matou [o ditador venezuelano, Nicolás] Maduro, por exemplo.
E a outra parte terrível é descomposição moral. Eles têm incitado as pessoas contra a grande parte da população que protesta, acusam-nos de golpistas, delinquentes, vândalos. Atacam a Igreja Católica, acusam sacerdotes de líderes dos delinquentes. É surreal.
O que diria à Manuela D’Ávila, pré-candidata do PC do B à presidência do Brasil, que cita seu livro “A Mulher Habitada” como favorito mas cujo partido silencia sobre Ortega?
Todas as que queremos o poder na América Latina temos de começar por nós, por aspirar a uma sociedade mais democrática, que use a ética feminina do cuidado para transformar objetivos.
Estou totalmente desiludida com a esquerda brasileira e de outros países. Aqui, a pessoa menos de esquerda é Ortega. É como apoiar [o ditador soviético Josef] Stálin.
A esquerda é humanista. Supõe-se que defenda a felicidade, a justiça, a liberdade. Como apoiar quem promove esse massacre? Só porque ele diz que [a oposição] é de direita? É absurdo. Estamos em outro mundo e eles parecem que não entenderam. Dizer aos que vivemos esta tragédia que somos financiados pelo imperialismo é um insulto à luta contra um corrupto.
A sra. conheceu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Fórum Social Mundial. O que pensa sobre o PT, que participa do Foro de São Paulo?
O Foro de São Paulo é uma desilusão profunda. Foi duro ouvir esse apoio a Ortega, que mudou a Constituição como quis, destruiu o profissionalismo do Exército, abusou da enteada [ele nega], casou-se com o grande capital, deu a um empresário chinês a concessão para criar um enclave chinês na Nicarágua [para construir um canal Atlântico-Pacífico]. Todos os Camponeses aqui protestam há cinco anos e são reprimidos. É isso ser de esquerda?
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'Apoiar Ortega é como apoiar Stálin', diz ex-guerrilheira na Nicarágua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU